INCONDICIONALIDADE E ACOLHIMENTO EM TEMPOS DE CRISE: O ENEM E SEU ACERTO AO PÔR EM PAUTA NACIONAL A HOSPITALIDADE INCONDICIONAL

19/01/2020

Sur le chemin de la paix: bienvenue à l’hospitalité à venir!

Camino a la paz: bienvenidos a hospitalidade por venir!

A caminho da paz: bem-vindos à hospitalidade por vir!

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) se iniciou no dia 03 de novembro de 2019, com o primeiro dia do exame. Já no primeiro dia, os participantes, dentre eles, milhões de jovens, tiveram de responder, no todo 90 (noventa) questões objetivas de múltipla escola, compreendendo: 45 (quarenta e cinco) questões de Ciências Humanas e suas Tecnologias, 45 (quarenta e cinco) questões de Matemática e suas Tecnologias; tiveram ainda de redigir um texto dissertativo argumentativo sobre o tema: ‘’A Democratização do acesso ao cinema no Brasil’’ – outro acerto, da prova do ENEM, vale mencionar.

Todavia, o que mais surpreendeu os candidatos – e é compreensível pensar dessa forma –, foi o tema da questão de número 46 (quarenta e seis) do caderno de provas, de cor preta, de Ciências Humanas e suas Tecnologias. De modo contextualizado, embora ainda precário (haja vista a questão não ter sido elaborada de modo adequado), e sucinto, o ENEM trouxe um trecho, adaptado, da obra ‘’Papel Máquina’’ de autoria do filósofo franco-argelino Jacques Derrida. Vejamos:

A hospitalidade pura consiste em acolher aquele que chega antes de lhe impor condições, antes de saber e indagar o que quer que seja, ainda que seja um nome ou um ‘’documento’’ de identidade. Mas ela também supõe que se dirija a ele, de maneira singular, chamando-o portanto e reconhecendo-lhe um nome próprio: ‘’Como você se chama?’’ A hospitalidade consiste em fazer tudo para se dirigir ao outro, evitando que essa pergunta se torne uma ‘’condição’’, um inquérito policial, um fichamento ou um simples controle das fronteiras. Uma arte e uma poética, mas também toda uma política dependem disso, toda uma ética se decide aí.

Derrida, J. Papel-máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004 (adaptado).

Ao fazê-lo, o ENEM não teve outra intenção senão a de provocar uma reflexão – e aqui, ainda que ela tenha sido elaborada de modo precário, cabe o agradecimento e o reconhecimento –, ainda que através de uma questão objetiva (de múltipla escolha), sobre a crise imigratória discutida, a longas datas, pelos filósofos, notadamente pelo filósofo franco argelino Jacques Derrida, em cenário nacional e internacional. Crise esta que deixou milhões de cidadãos do mundo (havemos de lembrar o emblemático termo ‘’Citizen of the World’’ amplamente reproduzido pela Organização das Nações Unidas – ONU, quando ao tratar de imigração, emigração e afins; havemos de lembrar, ainda do termo kosmopolité, ‘’cidadão do mundo’’, trazido por Jacques Derrida) refugiados, exilados, e que tem provocado a comunidade global a repensar a hospitalidade a fim de encontrar caminhos para concretizar o acolhimento, que, cada vez mais, é deixado de lado, jogado ao por vir (aquilo que está por vir).

Não pensou o Papa Francisco de modo diferente – embora tenha o feito sob outra abordagem – quando pensou em convidar os líderes mundiais e jovens a se reunirem no Vaticano em 14 de maio de 2020, para um evento chamado Reinventing the global educational alliance. Nas palavras do Papa:

"Nunca houve tanta necessidade de unir nossos esforços em uma ampla aliança educacional, formar indivíduos maduros capazes de superar divisões e antagonismos e restaurar o tecido dos relacionamentos em prol de uma humanidade mais fraterna.’’ (MARTIN, San Inés. Pope to launch globa educational pact next year. Crux, 2019, tradução minha. Disponível em: https://cruxnow.com/vatican/2019/09/12/pope-to-launch-global-educational-pact-next-year/ . Acesso em: 03 nov. 2019).

Ainda segundo o Papa Francisco:

"Em outras palavras, uma aliança entre os habitantes da Terra e nossa 'casa comum', a qual devemos cuidar e respeita. Uma aliança que gera paz, justiça e hospitalidade entre todos os povos da família humana, bem como diálogo entre religiões". (ibidem)

Não pensou, ainda, de modo diferente, o abade beneditino Bernardo Francesco Maria Gianni, quando propôs um exercício espiritual em Ariccia, Vaticano, momento esse em que o Papa Francisco estava presente, para pensar a hospitalidade, a qual ele compreende ser uma ‘’escola de misericórdia’’. Sua reflexão foi concentrada primeiramente nas portas abertas: “Passem, passem pelas portas, abram caminho para o povo”, de que trata o versículo 10 do Livro de Isaías. Ainda em seus dizeres, profanou:

“Bonita é a imagem de portas abertas, para que toda a humanidade possa finalmente entrar, se encontrar e experimentar a grande promessa de Deus que se torna realidade, o futuro que se torna presença de luz, amor, paz e justiça para todos aqueles que caminham em direção ao rosto do Senhor, guiados por sua Palavra. Contrária a essa perspectiva é a construção de toda forma de muro, barreira e baluarte que não tem dentro de si uma porta hospitaleira e convidativa.’’ (ibidem)

Dizia Bernard de Clairvaux:

“O misericordioso compreende a verdade de seu próximo, conformando-se a ele com simpatia, de modo a viver suas alegrias e tristezas como se fossem suas, fraco com os fracos, pronto para se alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram.” (ibidem)

A Universidade Católica de Pernambuco não fica para trás neste quesito. O Programa Pana, realizado pela Cáritas Brasileira, que atua em Recife em parceria com a instituição, iniciou uma nova fase de suas atividades, acolhendo um grupo de venezuelanos que chegaram na capital pernambucana no final do ano de 2018. Dos 102 (cento e dois) venezuelanos que chegaram na capital pernambucana, no final de 2018, boa parte já conseguiu moradia e agora dão lugar para novos migrantes (isto é, uma vez acolhidos, estão acolhendo outros migrantes). (Carla Júlia Siqueira apud Luíz Antonio Cardoso. Programa Pana acolhe mais de 14 imigrantes venezuelanos na Unicap. BOLETIM, Unicap, 2019. Disponível em: http://www.unicap.br/assecom1/programa-pana-acolhe-mais-14-migrantes-venezuelanos-na-unicap/ . Acessado em: 03 de nov. de 2019).

Durante a vigência do Programa, foram acolhidos, na casa, pela equipe do Programa Pana, pelo IHU e por representantes do Estado, 14 migrantes venezuelanos, dentre eles dois menores. Para melhor acolhê-los, e afim de proporcionar a eles uma nova vida em terras nordestinas, foram oferecidos kits de necessidade básica.

Além disso, importa informar que:

Em cinco meses de atuação, o Programa tem sido um importante instrumento no processo de integração de migrantes na área metropolitana do Recife. Além dos venezuelanos, o PANA atende migrantes de outras nacionalidades. Com o apoio da Unicap, diversas ações foram realizadas tal como campanhas de doações, cursos de português para os migrantes e espanhol para a equipe de atendimento, curso de “Direitos para refugiados e solicitantes de refúgio” e curso “Desenho digital e criação de produtos”, além de diversas ações promovidas pelas áreas de saúde da Católica. (ibidem)

Pois bem.

O tema da hospitalidade emerge do recrudescimento dos conflitos entre Estados e imigrantes ilegais, refugiados, exilados, apátridas, na França e no Mundo. Tema bastante discutido em vários cenários, que reflete num conflito aparentemente interminável, embora ofensivo, cujo principal alvo é a figura do imigrante, figura essa que retrata a própria figura de Jacques Derrida.

À título de uma breve biográfia, Derrida nasceu na Argélia. Tem, pois, experiência como um ‘’estrangeiro’’. Foi influenciado por esta experiência, trouxe-nos, à filosofia, à reflexão, questões sobre este processo de ser ou sentir-se estrangeiro, por um lado, o lado estrangeiro, e ser humano (cidadão do mundo) por outro. Logo no início de um dos textos de sua autoria, no ‘’Cosmopolitas de todos os países, mais um esforço!’’[2], Derrida se intitula cidadão do mundo (kosmopolité). Não esperava o filósofo, todavia, que a sua obra serviria como um apelo revolucionário as mais diversas áreas, em especial o direito internacional. Tampouco esperava o filósofo que a sua obra daria vida ao conceito kantiano de comunidade mundial, ao passo que impulsionaria o clamor de justiça.

Uma vez apresentado, ainda que de modo breve, o autor que nos apresentou a hospitalidade incondicional, voltemos a tratar da hospitalidade incondicional. Que é a hospitalidade incondicional? Que ela diz? Que ela significa?

A hospitalidade pura e incondicional, a hospitalidade em seu sentido inicial e originário, é, para Derrida, uma extensão de sua própria essência, isto é, a hospitalidade. Contudo, embora possua características em comum, advindas do conceito primário (a hospitalidade), que lhe deu origem, a hospitalidade incondicional, ou melhor, a extensão do conceito (primário) hospitaleiro, oferece uma experiência diferente (e evoluída, aprimorada), para com àquela: desprendendo-se da questão repetitiva do acolher o outro, é necessário pensar, agora, o e no outro, como outro-infinito.

Não como uma maneira de condicioná-lo (como bem colocou o ENEM) – não é este o real propósito –, ou impor a ele uma condição, para ser acolhido, mas como um modo de acolhê-lo incondicionalmente: “A pura hospitalidade consiste em acolher aquele que chega, antes de lhe impor condições, antes de saber e indagar o que quer que seja” (DERRIDA, J. Politics and Friendship. A Discussion with Jacques Derrida for Centre for Modern French Thought, University of Sussex. Transcribed by Benjamin Noys, 1997, p. 7, tradução minha)[3].

Nesse sentido, é possível notar que, ao falar sobre a hospitalidade pura, isto é, a hospitalidade em seu sentido próprio, Derrida faz referência a duas principais características da hospitalidade incondicional: a) o não-questionamento e b) não-condicionalidade (incondicionalidade). Isto é, não há que se falar em uma hospitalidade pura quando se trata de um contexto em que o Eu, antes de exercer o ato de acolher, questiona quem será acolhido por ele:

(...) Pois, dado que a contemplação calma, desinteressada das obras de arte, longe de procurar suprimir os objetos, deixa-os ao contrário subsistir tais como são e lá onde estão, o que é captado pela vista não é o ideal em si, mas, ao contrário, persevera em sua existência sensível. A orelha, ao contrário, sem se virar praticamente na direção dos objetos, percebe o resultado desse estremecimento interior do corpo pelo qual se manifesta e se revela, não a figura material, mas uma primeira idealidade que vem da alma. (DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas. Trad. Fábio Landa. São Paulo: Perspectiva, 2008).

Tampouco há que se falar em um contexto em que o Eu cria (e determina) um aspecto condicional para que o outro seja acolhido. O acolhimento é marcado pelo não-impedimento: o outro chega até o eu, o outro chama e o eu escuta seu clamor. Esse movimento abre passagem ao infinitamente outro; o sim do outro é seu acolhimento: o outro permite ser acolhido no momento em que clama.

Percebe-se, então, que o acolhimento parte do interior do Ser, isto é, trata-se de algo que está intrínseco nele. ‘’O sujeito encontra-se diante de uma eleição que o escolheu, precedendo-o, e implicando nela a capacidade de acolhimento’’ (NASCIMENTO, Evando. Pensar a Desconstrução. Trad. Nascimento Evando. São Paulo: Estação Liberdade, 2005, p. 210).

O Eu é sempre, inevitavelmente, acolhedor do outro inesperado, sem horizonte e, por isso, sem figura - pois não importa sua origem e condição (o cidadão-estrangeiro ou não): acolhe-se todo e qualquer recém-chegado (esse é o caráter ilimitado e incondicional da hospitalidade).

À propósito, a hospitalidade é, para Derrida, um dos pilares de toda e qualquer sociedade. Uma vez que, não se pode falar em sociedade, isto é, um agrupamento de indivíduos, sem que haja um princípio de hospitalidade. É que, deixar de remeter a importância singular da hospitalidade, significa querer negar a existência do outro, sabendo da existência deste. Destarte, deixar de remeter a importância singular da hospitalidade incondicional é querer ver o outro sem percebê-lo. A hospitalidade, quando pura e incondicional, se define pelo acolhimento sem reservas do outro que chega, pois não importa sua origem e condição (o cidadão-estrangeiro, ou não): acolhe-se todo e qualquer recém-chegado (este é o caráter ilimitado e incondicional da hospitalidade), que pode ser tudo (pois é outro-infinito), inclusive a figura do imigrante.

À guisa de encerramento, fica registrado e reconhecido, ainda que o tema não tenha sido trabalhado de modo adequado, que o ENEM foi feliz ao pôr, no caderno de provas de Ciências Humanas e suas Tecnologias, uma questão sobre a hospitalidade incondicional (derridiana). Quando o fez, além de trazer à tona uma temática discutida em cenário nacional e internacional, provocou milhões de jovens a repensarem, ainda que num tempo curto, a hospitalidade e a sua incondicionalidade intrínseca (o dever singular moral e ético da hospitalidade, de que tanto falava Jacques Derrida).

Verdade é que, a descolonialidade, de que tentou tratar o ENEM, é um sonho, talvez um desafio – um dos mais difíceis, talvez –, quem sabe um caminho até o Outro. O outro que, embora não se destine a viver em mim, para mim, por mim, é aquele com o qual convivo – e não há-de-ser visto de outra forma.

Ainda à título de arremate, ainda que inconcluso, e cientificamente precário, não podemos deixar de mencionar que, a hospitalidade é um dos principais temas ao tratar da justiça: só é possível pensar em um mundo justo a partir do acolhimento de outrem. Não se trata, todavia, de negar a hospitalidade ou de, em querendo, condicioná-la, mas sim de repensá-la, a fim de transcender as barreiras (os condicionamentos), que tornam-na irrealizável, não-concretizável.

 

Notas e Referências

[1] Este tema trata-se de uma pesquisa realizada, no prazo de 1 (um) ano, na Universidade Católica de Pernambuco, no Programa de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC-UNICAP), quando figurava como bolsista, sob a orientação do Prof. Me. Manoel Carlos Uchôa de Oliveira, que buscou estudar o tema: ‘’Justiça como hospitalidade: a experiência da alteridade como problema jurídico político’’, e que foi apresentada no dia 7 de novembro de 2018, na instituição de ensino primeiramente indicada.

[2] Título original: ‘’Cosmopolites de tous les pays, encore mi effort!’’

[3] ‘’Pure hospitality consists in welcoming whoever arrives before imposing any conditions on him, before knowing and asking anything at all, be it a name or an identity ‘paper’.’’

 

Imagem Ilustrativa do Post: 313/365 // Foto de: Lua Pramos // Sem alterações

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