Com a edição da Lei 13.491/2017 os críticos de plantão voltaram a apontar olhares preconceituosos para o Direito Penal Militar e para a Justiça especializada militar. Não surpreendem as manifestações que pretendem deslegitimar as mudanças no conceito de crime militar produzidas pela alteração da redação do inciso II do art. 9 do Código Penal Militar.
Mas, alguns argumentos utilizados na criticas precisam ser esclarecidos. Em especial, importa deixar claro que a proposta de alteração foi apresentada no Senado, por meio do PLS 132, no ano de 2000. A mesma proposta foi objeto de outros projetos de lei e acabou por ser acolhida no mês de outubro de 2017, em um dos projetos. A discussão é antiga e a alteração legislativa chega com muito atraso para corrigir os problemas frequentes, que se apresentam decorrentes do fracionamento do julgamento judicial sobre uma única situação de fato que envolve a atuação concreta de servidores militares.
A incompreensão sobre o Direito Penal Militar, em grande medida, se deve ao discurso equivocado de que o mesmo se presta a tutelar exclusivamente os princípios da hierarquia e da disciplina militares. Desta premissa equivocada decorrem equivocadas conclusões, que normalmente reclamam por restrição da intervenção punitiva aos casos em que exista interesse específicos das instituições militares a tutelar.
Já há muito venho sustentando que muitos operadores do direito militar racionalizam de maneira equivocada as questões relativas à caracterização do crime militar, por se basearem na premissa de que a justiça militar se presta unicamente à proteção dos princípios da hierarquia e da disciplina. (Direito Penal: parte geral, item 8.2.1.5)
A Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e da disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem apenas meios para a realização de seus fins institucionais. Constituem fins das instituições militares da União, conforme o art. 142, a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais, e a garantia da lei e da ordem. Por outro lado, constituem fins das instituições militares estaduais, nos termos do art. 144, a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.
Portanto, nem mesmo para as instituições militares a hierarquia e a disciplina constituem um fim em si mesmo. Constituem meios organizacionais peculiares que podem conferir maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas instituições militares para o atendimento de suas missões constitucionais. Não podem os juízes da Justiça Militar (que ressaltam sua integração ao Poder Judiciário a partir de 1934), em especial, transformar os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão institucional (fins). Ao Poder Judiciário cabe a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, que estão expressos na Constituição e nas leis. Pensar que o Judiciário, no âmbito da Justiça Militar, trabalha para preservar a hierarquia e a disciplina é transformar seus juízes em assessores dos corregedores das instituições Militares.
O próprio Código Penal Militar só tutela os bens jurídicos hierarquia e disciplina em alguns poucos de seus crimes e, por isso, não se pode restringir a lógica da tutela penal militar à proteção desses bens. Um Direito Penal exclusivamente orientado para a tutela da hierarquia e disciplina das corporações militares não é democrático, pois não se presta a tutela direta dos interesses do titular do poder punitivo: o povo.
O Direito Penal Militar regula a intervenção punitiva que objetiva tutelar a qualidade e probidade dos serviços prestados pelas instituições militares em favor da sociedade. A lógica que orienta a Constituição da República e o próprio Código Penal militar, ao distinguir crimes própria e impropriamente militares, é a de que a realização dos serviços militares pode ofender bens jurídicos diversos da hierarquia e disciplina. Fica claro que não interessa proteger apenas a hierarquia e disciplina internas às instituições militares. O Direito Penal Militar se interessa essencialmente por proteger todos os bens jurídicos que possam ser afetados pela realização inadequada dos serviços militares. Nesta perspectiva, não se protege apenas o interesse imediato das corporações militares, mas o interesse da sociedade que é destinatária dos serviços pelas mesmas corporações.
A lógica que sempre ficou evidente pela divisão da parte especial do Código Penal Militar, que é dividida em capítulos que reúnem tipos incriminadores que ofendem preponderantemente determinado bem jurídico e que serve de base para a denominação do respectivo capítulo, continua a orientar a interpretação dos novos crimes militares. Se o crime militar de furto, previsto no art. 240 do CPM, ofende preponderantemente o patrimônio, o novo crime militar de licitação, previsto no art. 89 da Lei 8.666/93, ofende a probidade das contratações realizadas pela Administração Pública militar.
Como se pode facilmente constatar do sistema constitucional brasileiro, as instituições militares, os serviços que tais instituições prestam à sociedade brasileira, o Direito Penal Militar e a Justiça Militar estão inseridas no contexto do Estado Democrático de Direito e sob este prisma devem ser compreendidos. O conteúdo material do crime militar é a conduta socialmente inadequada de militar realizada no contexto de suas atividades e ofende os bens jurídicos portadores de dignidade penal.
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