INCÊNDIOS: QUAIS AS FAGULHAS DA COMBUSTÃO?

03/08/2018

Coluna Garantismo Jurídico

Aos doze dias de julho do corrente ano, no auditório do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, foi apresentado mais um filme pelo projeto Cinema & Direitos Humanos: Incêndios, dirigido por Denis Villeneuve (2010), que se trata de uma adaptação da peça Incendies de Wajdi Mouawad. O debate após o filme foi mediado pelo Coordenador do Projeto, Professor Dr. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, e teve como debatedores o doutorando em Desenvolvimento Regional, Fernando Rieger e a mestranda em Direitos Humanos, Gabrieli de Camargo, ambos graduados na área de Relações Internacionais.

A música que dá início à película é um prelúdio do que a obra tratará, “You And Whose Army?”, da banda inglesa Radiohead, assumindo o pano de fundo de uma das cenas que retratam a maior nudez da vida, quando analisada pela perspectiva agambeniana – momento em que a vítima é objetificada e tem sua preparação para tornar-se carrasco. O filme apresenta-se em contextos segregados, ou seja: ora no presente e no passado. Os enredos são intitulados como: os gêmeos; Nawal; Daresh; o Sul; Deressa; Kfar Ryat; a mulher que canta; Sarwan Janaan; Nihad; Chamseddine.

A obra canadense-francesa retrata não apenas o fim de um ciclo com a morte de Nawal Marwan, mãe dos gêmeos Jeanne e Simon. Simboliza, pois, o início de uma série de questões que se tornam variáveis na vida de ambos, os quais acreditavam, até então, que seu pai estava morto e desconheciam a existência de um irmão. Na abertura do testamento, Lebel, antigo chefe e amigo de Nawal, pronuncia como essa gostaria de ser enterrada: “Enterre-me sem caixão, nua, e sem orações. Meu rosto virado para o chão, de costas para o mundo”. Ainda, essa refere que a lápide com seu nome só poderá ser posta após a entrega das cartas que deixou ao filho desconhecido pelos irmãos e ao pai dos gêmeos.

Jeanne é professora de matemática, e conversa com seu tutor sobre a situação que lhe é posta, o qual lhe aconselha para nunca começar pela variável desconhecida, instigando-a a procurar seu irmão e pai. Nesse momento, Jeanne parte do Canadá para um país no Oriente Médio – que não tem o nome revelado – em busca de respostas. O cenário do país à época dos fatos era de conflito, sobretudo, étnico-religioso de um Estado fictício, mas com semelhanças intensas à guerra civil libanesa e às tensões existentes entre cristãos e palestinos.

Nawal tem berço cristão-árabe e foi acusada de “desgraçar a família” ao se envolver com um filho de refugiado, Wahab. Esse, foi morto por seu irmão e, em seguida, ela se descobriu grávida de Nihad. Sua avó a mandou para Daresh (com o intuito de que ela estudasse e morasse com o seu tio) e o neto, por sua vez, é deixado em um orfanato (antes, o mesmo é tatuado com três pontos verticais no calcanhar direito). Os participantes do partido nacionalista tentam expulsar os refugiados para além da fronteira, uma vez que apoiam as milícias da direita cristã, que ameaçam abertamente os mulçumanos e refugiados. Mesmo cristã, Nawal apoia a paz e não faz parte do referido partido. Quando começam a se intensificar os conflitos étnico-religiosos, a protagonista vai atrás de seu filho, encontrando apenas as cinzas do orfanato em Daresh. Aflita, ela parte para Deressa, com o objetivo de continuar a sua busca.

No caminho, ocorre um ataque contra o transporte em que Nawal se encontra e, nesse momento, mais um incêndio é posto na película. Diante dos horrores dos conflitos armados no seio da guerra civil, Nawal desprende-se de sua posição política humanista e pacifista, passando a ter como missão principal vingar o seu filho pelas práticas dos nacionalistas. Assim, ela assassina o líder da milícia da direita cristã e, por conseguinte, cumpre uma pena de 15 anos em Kfar Ryat, uma prisão situada no sul do país.

No contexto atual, Jeanne descobre que sua mãe fora violentada e engravidou de um jovem torturador, Abou Tarek. Sem esperanças de encontrar o pai, em razão das circunstâncias da guerra, Simon faz a sua parte e busca por pistas do irmão Nihad de Maio. Ele descobre que esse tornou-se parte da milícia e que atuava ativamente como torturador, na prisão Kfar Ryat. “Um mais um, pode ser um?” pergunta Simon, quando sua irmã percebe que Abou Tarek é, na verdade, Nihad de Maio. As variáveis nessa questão acabam por sugerir uma resposta ilógica: um mais um, pode ser um.

Ao final, os gêmeos entregam ao pai e irmão as cartas da mãe Nawal, a prisioneira nº 72, conhecida como a “Mulher que Canta”, a qual expressa nas cartas o ódio que sente pelo sujeito torturador que a estuprou e, concomitantemente, o amor que sente por ele enquanto filho. Portanto, a questão que se coloca é: a corrente do ódio se rompeu? A última carta deixada por Nawal, em Incêndios (2010), responde exatamente isso: 

Meus amores, aonde começa a sua história? Em seu nascimento? Então ela começa no horror. No nascimento de seu pai? Então ela começa em uma grande história de amor. Eu digo que sua história começa com uma promessa, a da ruptura do sentimento de raiva. Graças a vocês, consegui finalmente mantê-la. O fio está rompido.

Importando o contexto da obra para questões contemporâneas, na região do Oriente Médio, pode-se afirmar que os conflitos resultam, sobretudo, dos contrastes étnicos, culturais, religiosos, ideológicos e políticos, devendo-se reconhecer a existência de um verdadeiro estado de exceção que, conforme o entendimento de Giorgio Agamben (2004), transforma-se na regra e ocupa um espaço da normalidade. Nesse contexto, é verificável que os conflitos assumem as relações de poder, bem como as técnicas de dominação, transformando-se em um regime de biopoder, ou seja, em uma forma de governo que se destina a controlar a população através da objetificação da vida. Isso, na perspectiva do filme, se traduz através das figuras da mulher e da criança, consideradas como essenciais para a contínua (re)produção humana que assegura a perpetuidade das guerras.

Nesse viés, vale destacar que o poder da biopolítica é exercido “sobre a ‘população’ enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo”, caracterizando-se como um “poder contínuo, científico, [...] que consiste em fazer viver e em deixar morrer” (FOUCAULT, 2010, p. 207). Partindo dessa reflexão, percebe-se uma cisão excludente na sociedade: de um lado situa-se a vida politizada (bíos) e, do outro encontra-se a vida nua (zoé) do homo sacer. Essa figura do direito romano arcaico, resgatada por Agamben (2010), pode ser representada pela produção da nudez da vida no status dos indivíduos desprotegidos e abandonados à própria sorte diante da violência brutal dos conflitos, os quais desconsideram a dignidade humana e acabam sendo, muitas vezes, motivados e financiados pelas grandes potências.

Nota-se que a ingerência militar dos países neoimperiais, tais como os Estados Unidos, França, Inglaterra e Israel, nos territórios dos Estados-nação considerados frágeis na região do Oriente Médio não possuem casus belli – fato suficientemente grave para declarar guerra ao suposto Estado ofensor – capaz de acarretar a intervenção bélica que agrava os conflitos étnico-religiosos. Talvez, a justificativa por detrás dessas ações esteja na riqueza de tais territórios, especialmente, do chamado “ouro negro”. No entanto, esse fato atribui pouco crédito à racionalidade daqueles que planejam as guerras, uma vez que isso “custa caro demais, a ocupação que elas provocam é desastrosa e todos os benefícios derivados do preço do petróleo são anulados antecipadamente pelos gastos militares” (BAUMAN, 2006, p. 53).

Ademais, não são raras as vezes em que as intervenções armadas durante um conflito se utilizam de uma espécie de slogan ético e humanitário, que a nega a condição e a qualidade humana do “inimigo”. Nesse sentido, ocorre uma verdadeira legitimidade do uso da força, através da intervenção militar por parte das grandes potências, as quais se utilizam do argumento de que estariam contribuindo para a proteção universal dos direitos humanos (humanitarian intervention). Essa realidade contribui, de fato, para a afirmação de um cenário de normalização dos conflitos e da violência nas suas formas mais cruéis e, ainda, impassíveis de regulação jurídica.

Em debate foram apontadas diversas críticas nesse sentido: o determinismo gerado por esse ciclo vicioso da guerra, que não visa mais a anexação de territórios e sim a dominação como modo de existência. Refere-se, portanto, a um domínio sobre o corpo – que detém marcas, insígnias –, a uma guerra permanente, sem meio e sem fim. Ainda, a “descartabilidade da vida” das crianças tidas como impuras – caso do próprio Nihad – que se tornam força motriz, ou seja: verdadeiras máquinas de guerra (crianças-soldado, envolvidas ativamente em conflitos armados). Outrossim, foi alertado acerca do tratamento desumano das mulheres que sofrem nas guerras, como se a finalidade dessas fosse apenas reprodutiva, tendo-se como foco o caso de que Nawal permaneceu algemada, até mesmo, durante todo o trabalho de parto dos gêmeos.

Essas e tantas outras questões foram pauta da discussão riquíssima que o filme Incêndios provoca. Dessa forma, resta evidente que os incêndios a que o título do filme se refere, avançam para a atualidade, de uma forma literal, isto é: eles são metáforas da realidade, uma vez que “qualquer faísca é uma explosão”.

 

Notas e Referências 

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. 

______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 

______. O que resta de Auschwitz. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. 

BAUMAN, Zygmunt. Europa: uma aventura inacabada. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Incêndio // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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