INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA IMPREVISÃO AOS CONTRATOS ALEATÓRIOS  

30/03/2021

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

Sob uma perspectiva liberal, o contrato representa o principal meio de se fazer valer a autonomia da vontade do indivíduo, atribuindo-lhe a faculdade de contratar ou não, tal como a liberdade de se estabelecer o conteúdo contratual. Em contrapartida, celebrado o negócio jurídico, cria-se a obrigatoriedade para as partes cumprirem com o que foi convencionado, desde que dentro dos limites legais. Nesse sentido, compreende-se que o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda).

De acordo com a Teoria Geral dos Contratos, em suma, a celebração de negócios jurídicos contratuais depende fundamentalmente da existência do consentimento entre as partes envolvidas, com fins de interesse patrimoniais, criando, assim, uma relação jurídica obrigacional, da qual decorrem os deveres jurídicos principais – de dar, de fazer ou de não fazer -, bem como, deveres jurídicos anexos resultantes dos princípios da boa-fé objetiva e do princípio da função social[1].

No entanto, sucedendo-se determinados eventos, futuros e imprevisíveis no momento da celebração contratual, pode a prestação da relação jurídica se tornar excessivamente onerosa para uma das partes, desequilibrando essa relação.

É notório que desde o surgimento do capitalismo o mercado sempre necessitou de certo grau de previsibilidade para pautar suas decisões de forma mais segura. Tal fato explica a importância do Estado de direito no período do liberalismo clássico, dado que o direito fornece uma segurança e previsibilidade não observadas nos Estados absolutistas.

Ocorre que nem todos os eventos podem ser previstos no momento das tratativas negociais. De fato, o campo de eventos externos que afetam as relações econômicas é imensurável, podendo acontecer, ainda, em razão de fatos naturais de caso fortuito e força maior. A seca em uma região produtora de grãos, por exemplo, afeta diretamente todos os contratos de compra e venda de safra futura daquela região. De igual forma, o início de uma guerra em uma região produtora de petróleo irá afetar toda a cadeia produtiva que dependa desse material como matéria-prima.

A primeira codificação a prever um sistema de proteção à parte lesada foi o Código de Hamurabi, que vigorou na Mesopotâmia entre 1792 e 1750 a.C. Dentre suas premissas, havia a previsão de que:

“se alguém tiver um débito de empréstimo e uma tempestade prostar os grãos ou a colheita for ruim, ou os grãos não crescerem por falta d’água, naquele ano a pessoa não precisa dar ao seu credor dinheiro algum. Ele deve lavar sua tábua de débito na água e não pagar o aluguel naquele ano”[2].

No direito contemporâneo, importante papel cumpre o artigo 1.195 do Código Civil francês ao introduzir no direito positivo a teoria da imprevisão, permitindo que as partes revejam os termos do contrato, principalmente em razão do preço, nos casos em que se verifique alguma alteração de circunstâncias imprevisíveis ao tempo da conclusão do contrato[3].  

Contudo, mister destacar que tal previsão não se trata de norma de ordem pública, sendo suficiente que uma das partes tenha aceitado assumir um risco de alteração das circunstâncias para que ela não seja aplicada no caso concreto, como é o caso dos contratos aleatórios.

Como define Maria Helena Diniz, “o contrato aleatório seria aquele em que a prestação de uma ou de ambas as partes dependeria de um risco futuro e incerto, não se podendo antecipar o seu montante[4]”. Nesses casos a prestação depende de um evento casual, insuscetível de estimação prévia, sendo, por isso, dotado de incerteza.

Esse risco é elemento intrínseco desse tipo de contrato, sendo que o “risco de perder ou de ganhar pode sujeitar um ou ambos os contratantes; porém, a incerteza do evento terá de ser dos dois, sob pena de não subsistir a obrigação”[5].

Por essa razão, quanto aos contratos aleatórios, não há que se falar na comutatividade de suas prestações ou quebra do equilíbrio contratual, não se aplicando a teoria da imprevisão. Ora, se as partes não assumissem o risco advindo desses negócios jurídicos, tais contratos se classificariam como comutativos, isto é, aqueles que cada contraente, “além de receber de outro prestação relativamente equivalente à sua, pode verificar, de imediato, essa equivalência”[6].

Portanto, verifica-se que em razão da natureza dos contratos aleatórios, nos quais os próprios contratantes assuem os riscos do negócio, não há a possibilidade de aplicação da teoria da imprevisão em razão da constatação de desequilíbrio contratual.

 

Notas e Referências

[1] GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: volume único. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

[2] VIEIRA, Eliasi. Breves considerações sobre a teoria da imprevisão. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/332777/breves-consideracoes-sobre-a-teoria-da-imprevisao

[3] SABRINNI, Fernanda. Teoria da imprevisão no direito francês e as “fissuras” do canal de capronne. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I. Belo Horizonte, v. 21. P. 131-144, jul./set. 2019.

[4] DINIZ, Maria Helena. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 101.

[5] Ibidem, p. 102.

[6] Ibidem.

 

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