Improbidade Administrativa por omissão do dever de lançar crédito tributário

11/08/2018

            Extrai-se da dicção dos arts. 3º e 142, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, que o servidor fazendário não dispõe de margem de discricionariedade para apurar, constituir e exigir o crédito tributário, sendo tais ações estatais pautadas pelo princípio da vinculabilidade da tributação, vedada, portanto, a adoção de critérios de conveniência e oportunidade.

            Tendo em conta essa premissa, labora com negligência o agente do Fisco que não adota, sem justificativa razoável, providências acautelatórias dos interesses do Estado para que dada receita ingresse nos cofres públicos.

            Com efeito, é criticável a conduta de servidor fazendário que se abstém de suas atribuições fiscalizatórias sem justa causa, em afronta à lealdade institucional.

            Nesse contexto, se a autoridade fiscal descuidar das cautelas necessárias para viabilizar a arrecadação, como, por exemplo, não confrontar as informações apresentadas pelo contribuinte com os dados ou indicadores fornecidos por unidades especializadas da própria Administração Tributária, pode praticar ilícito administrativo disciplinar, por violação ao Estatuto da entidade de direito público a que se encontra vinculado, e, até mesmo, ato de improbidade administrativa, previsto no art. 10, X, da Lei nº 8.429/92.

            Fábio Medina Osório manifesta entendimento receptivo à constitucionalidade da improbidade culposa:

“Os tipos culposos da improbidade descendem já da própria Constituição Federal. Nesta, não há restrição alguma à improbidade culposa. Ao contrário, há reforço no sentido da necessária proteção dos valores 'eficiência' ou economicidade', ao abrigo da moral administrativa e de princípios expressos nos arts. 37 ou 70 da CF. Forte no princípio democrático, a LGIA optou pela eleição da improbidade culposa como modalidade de ilícito. […]

Já manifestamos entendimento quanto à constitucionalidade da improbidade culposa, […] basicamente porque, desde uma perspectiva conceitual, a improbidade não se confunde com desonestidade […]. Se assim é certo, também outras condutas, que não as dolosas, podem ser catalogadas como ímprobas”.[1]

            À evidência, a proibição de “agir negligentemente na arrecadação de tributo” é direcionada a todos aqueles que tenham responsabilidade funcional pela arrecadação tributária. Marino Pazzaglini Filho comenta que “é negligente, na espécie, o agente público que, por inércia, passividade, incúria, inação, reveladora de falta de probidade, não cumpre (podendo) seu dever funcional de concreta e eficiente arrecadação de receitas públicas”.[2]

            Por outro lado, reputa-se imprescindível a presença de prejuízo ao erário para que se possa cogitar da tipificação especificamente no art. 10, X, da Lei nº 8.429/92.

            A propósito, uma questão se coloca: é possível cobrar, do agente fazendário negligente, o prejuízo aos cofres públicos, a título de ressarcimento?

            Pedro Roberto Decomain distingue:

“Se a cobrança, em virtude da negligência do agente, vem a ser tornada impossível (porque ocorreu prescrição, ou porque o devedor se tornou insolvente, por exemplo), então efetivamente essa negligência causa prejuízo aos cofres públicos e a indenização devida pelo próprio agente deverá alcançar o montante daquilo que haveria de ter sido cobrado e pago, mas não foi. O agente faltoso será então o responsável por esse ressarcimento.

Se a cobrança vier a ser apenas parcialmente bem-sucedida, o prejuízo a ser ressarcido consistirá na diferença entre o que era devido e aquilo que efetivamente foi pago”.[3]

            Na mesma linha, José Antonio Lisbôa Neiva ensina que, caso não haja a reposição do prejuízo pelo contribuinte ou responsável tributário, “caberá ao agente arcar com o ressarcimento do dano em razão de sua conduta ímproba. Se o pagamento for parcial, a condenação na ação de improbidade também será parcial”.           

Por sua vez, merece destaque a circunstância de a exação não recolhida estar sujeita a uma causa extintiva da obrigação, na relação direta do beneficiário pela falta de recolhimento e a pessoa jurídica. Exemplifique-se com uma hipótese em que o imposto deixou de ser arrecadado, por atuação indevida do agente [...], restando inviabilizada a sua posterior cobrança pela pessoa jurídica interessada, após a constatação do ilícito, por decadência ou prescrição tributária (CTN, art. 156, V).[4]

            Pois bem, acerca do exemplo da autoridade fiscal que não lança tributos, deixando fluir a decadência e permitindo a ocorrência de perda na arrecadação,

“Neste sentido Wallace Paiva Martins Junior (MARTINS JUNIOR, 2002, p. 255) assevera que:

'A primeira parte do inciso X do art. 10 censura a negligência na arrecadação de receita tributária [...], que permite a ocorrência de perda patrimonial. Constituindo os tributos […] a principal fonte de financiamento das atividades desenvolvidas pelas entidades referidas no art. 1º, não tolera a lei a atuação comissiva por omissão (não agir é também agir contrariamente à lei) dolosa ou negligente, de forma a permitir evasão de receita pública, por qualquer expediente que seja útil, como a […] ausência ou morosidade na cobrança de tributos [...]”[5]

            Assim, pode cometer ilícito administrativo disciplinar e, se for o caso, ato de improbidade administrativa, o servidor fazendário com atribuição funcional de arrecadação que deixar de lançar crédito tributário, concorrendo para a decadência.

            Em outra leitura aceitável, Silvio Antonio Marques vislumbra que pode responder por improbidade administrativa, na modalidade de retardar ou deixar de praticar ato de ofício (art. 11, II, Lei nº 8.429/92), “o agente público responsável pelo setor de arrecadação que deixar de lançar crédito tributário da Fazenda Pública, ocasionando a decadência”.[6]

            Na eventualidade de a cobrança omitida pelo funcionário negligente ser afinal providenciada administrativamente por iniciativa de outros agentes, em procedimento de repetição de fiscalização, e a receita tributária efetivamente ingressar nos cofres públicos, a conduta do servidor desidioso ainda poderá ser enquadrada residualmente, para fins de improbidade, no art. 11, caput, da Lei nº 8.429/92, por intolerável ruptura ao dever de lealdade institucional, sem prejuízo da independente repercussão disciplinar.

“Mas poderá ocorrer também que, descoberta a negligência e tomadas providências administrativas e judiciais, inclusive eventualmente providências penais no sentido da sua apuração, a dívida venha a ser cobrada por iniciativa de outros agentes e o dinheiro efetivamente venha a ingressar por inteiro nos cofres públicos.

Nesse caso, a rigor, já não se poderá mais falar em prejuízo patrimonial, o que leva à conclusão de que, em hipótese como essa, já não se pode mais enquadrar a negligência como ato de improbidade administrativa da categoria daqueles previstos pelo art. 10. Segundo o caput do artigo, o prejuízo para o Erário será a tônica. Como na hipótese não terá havido prejuízo, parece mais razoável que se enquadre a conduta não como ato de improbidade administrativa daqueles do art. 10, mas sim como ato de improbidade administrativa daqueles do art. 11, já que certamente terá ocorrido ruptura com o dever de lealdade do agente para com a entidade administrativa. Referido dever lhe impunha providenciar a cobrança, que foi omitida. O crédito somente não se perdeu pela iniciativa de outros, uma vez descoberta sua desídia inicial [...]”[7] 

            Logo, é perfeitamente possível a caracterização de ato de improbidade administrativa ainda que ausente a comprovação de prejuízo ao erário, a teor do que expressamente dispõe o art. 21, I, Lei nº 8.429/92. Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a lesão aos princípios da Administração Pública não exige prejuízo ao erário.[8] 

            Entretanto, cumpre pontuar entendimento da Corte Especial do STJ de que “é indispensável para a caracterização de improbidade que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou, pelo menos, eivada de culpa grave nas do artigo 10” (AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 28/09/2011). Se bem que em recente julgado a 2ª Turma manifestou-se no sentido de que a mera culpa é suficiente para a configuração da improbidade administrativa:

O entendimento do STJ é no sentido de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11, e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. (AgRg no AREsp 654.406/SE, Rel. Ministro Herman Benjamim, Segunda Turma, julgado em 17/11/2015, DJe 04/02/2016)[9] 

            Na esteira dessa discussão, em 25 de abril de 2018, passou a viger a Lei nº 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), resultado do Projeto de Lei nº 7.448/2017, e cujas alterações naturalmente redundarão num tensionamento interpretativo[10] entre Poder Executivo e Ministério Público. Dentre as novidades implementadas – aliás, de duvidoso fortalecimento democrático –, foi inserida a noção de “erro grosseiro”[11] no art. 28, de modo a abrandar a responsabilização pessoal do administrador público em seu processo decisório.

            É sabido que os servidores públicos aderem espontaneamente a uma especial relação de sujeição com a Administração, ao decidirem assumir seus cargos. Tratando-se de um ambiente profissional – numa área sensível como a Administração Tributária –, os deveres de informação do agente fazendário são mais acentuados.

“[…] as chamadas relações submetidas a um Direito Administrativo disciplinar, que tem objetivos específicos na preservação da boa ordem administrativa, que trata de relações especiais de subordinação necessárias ao bom funcionamento da organização administrativa. […] Na hipótese de agentes públicos vinculados ao Estado, […] estes somente podem atuar ou deixar de atuar com suporte em uma legalidade permissiva. […] Agentes públicos, no desempenho de atribuições públicas, amparam suas ações ou omissões na legalidade. Se não o fazem, há, desde logo, uma tipicidade proibitiva resultante da ilegalidade comportamental. A tipicidade é consequência da violação da legalidade administrativa.

[…] A legalidade é menos formal no campo disciplinar, pois o agente público possui deveres legais específicos, obrigações inerentes à qualidade de funcionário público. A finalidade da medida repressora, no terreno disciplinar, […] é assegurar o bom funcionamento administrativo, a organização institucional. […] Aos funcionários públicos […] são impostas obrigações positivas, que, descumpridas, podem gerar responsabilidade disciplinar. [...]”[12]

            Conclui-se que é censurável, uma vez respeitado o devido processo legal, a conduta de servidor fazendário que se abstém de suas atribuições fiscalizatórias sem justificativa razoável, em procedimento que se afaste dos padrões comportamentais normais vigentes na Administração Tributária a que se encontre vinculado, concorrendo para potencial prejuízo aos cofres públicos.

Casos de expressivo crédito tributário reclamam mais detalhado monitoramento correcional.

 

Notas e Referências

[1]     Fábio Medina Osório. “Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública: corrupção: ineficiência”, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2013, pág. 227

[2]     Marino Pazzaglini Filho. “Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal”, Atlas, 6ª edição, 2015, págs. 101/102

[3]     Pedro Roberto Decomain.  “Improbidade administrativa”, Dialética, 2ª edição, 2014, pág. 146

[4]     José Antonio Lisbôa Neiva. “Improbidade administrativa: legislação comentada artigo por artigo: doutrina, legislação e jurisprudência”, Impetus, 5ª edição, 2013

[5]     Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3085>. Acesso em: 06 ago. 2018.

[6]     Silvio Antonio Marques. “Improbidade administrativa: ação civil e cooperação internacional”, Saraiva, 2010, pág. 122

[7]     Pedro Roberto Decomain. “Improbidade administrativa”, Dialética, 2ª edição, 2014, pág. 146

[8]     REsp 1036229/PR Recurso Especial 2008/0047830-6 Relator(a) Ministra Denise Arruda – Órgão Julgador – Primeira Turma Data do Julgamento 17/12/2009 Data da Publicação/Fonte DJe 02/02/2010

[9]     Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-10/interesse-publico-alteracao-lindb-revoga-parcialmente-lei-improbidade>. Acesso em: 06 ago. 2018.

[10]   Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-24/contas-vista-pl-7448-desequilibra-equacao-entre-custos-riscos-escolha-publica>. Acesso em: 06 ago. 2018.

[11]   Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-14/opiniao-artigo-28-lindb-questao-erro-grosseiro>. Acesso em: 06 ago. 2018.

[12]   Fábio Medina Osório. “Direito administrativo sancionador”, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2009, págs. 364/365

 

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