Em recente julgado, datado de 01/10/2019, o Supremo Tribunal Federal se manifestou acerca do possível alcance do tipo penal previsto no artigo 215-A do Código Penal[1], conhecido como importunação sexual, inserido no ordenamento jurídico pela Lei 13.718/2018, em situações envolvendo vulneráveis.
Trata-se de decisão inédita no tribunal, que pode servir de fundamento para que os demais tribunais do país se abstenham de desclassificar para esse delito condutas imputadas como estupro de vulnerável. Ademais, o sentido atribuído pelo judiciário importa às análises vindouras de acadêmicos, movimentos sociais e profissionais de diversas áreas.
Assim, o presente artigo pretende discutir os principais argumentos levantados pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em sede do Habeas Corpus 134.591/SP[2], articulando com o que pesquisas no campo das violências sexuais têm debatido sobre a temática.
Percurso do caso até o STF
A Primeira Vara Criminal da Comarca de Igarapava/SP condenou um homem a oito anos de reclusão por estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal[3]), por ter beijado, com inserção da língua, a boca de uma criança de cinco anos de idade.
A defesa do réu apelou ao Tribunal de Justiça, postulando absolvição por falta de provas. Sucessivamente, buscou a desclassificação do delito para a contravenção penal prevista no artigo 61 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (“Importunar alguém, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor”), posteriormente revogada pela mesma lei que tipificou a importunação sexual.
O juízo de segundo grau determinou a desclassificação para contravenção penal diversa, prevista no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais (“Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”), ainda em vigor.
Diante disso, o Ministério Público interpôs recurso especial no Superior Tribunal de Justiça, buscando o restabelecimento da condenação em primeira instância por estupro de vulnerável.
O recurso foi provido por decisão monocrática, mantida pela Sexta Turma do STJ após agravo da defesa.
Em sede de habeas corpus, o acusado/impetrante pleiteou ao STF a suspensão liminar dos efeitos da condenação e o restabelecimento do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O Ministro Marco Aurélio, relator do processo, acolheu o pedido liminar para suspender os efeitos da condenação até o julgamento do mérito do writ, em 23/11/2016.
De antemão, e para não fazer suspense ao leitor mais ansioso, a Turma julgadora, em 01/10/2019, por maioria, revogou a medida liminar anteriormente deferida e indeferiu no mérito a ordem de habeas corpus, com o entendimento de que a conduta descrita se amolda às elementares do estupro de vulnerável.
Os embargos de declaração interpostos contra a decisão foram rejeitados unanimemente, em 27/04/2020, e determinada a “certificação do trânsito em julgado e arquivamento imediato dos autos”.[4]
Considerações sobre o debate no STF
O julgamento do mérito se iniciou em 27/06/2017, portanto antes da tipificação da importunação sexual, oportunidade em que o Relator Ministro Marco Aurélio confirmou o entendimento manifestado na decisão liminar e proferiu seu voto para conceder a ordem e “restabelecer o entendimento constante do acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, desclassificando a conduta do paciente para a versada no artigo 65 do Decreto-lei nº 3.688/1941”.
Seu posicionamento encontrou resistência em outros ministros, manifestada naquela sessão pelo Ministro Alexandre de Moraes, circunscrevendo-se a divergência inicial na possibilidade ou não de desclassificação do crime de estupro de vulnerável para a contravenção penal de “molestação”, cuja pena já se encontrava inclusive prescrita quando da condenação. O Ministro Luís Roberto Barroso pediu vista.
Porém, quando os autos foram novamente levados a sessão de julgamento, em 18/12/2018, havia entrado em vigor a Lei 13.718/2018, de 24/09/2018, que tipificou a importunação sexual, modificando-se a discussão – a partir do voto-vista do Ministro Roberto Barroso, ao qual aderiu o Relator –, para a possibilidade de aplicação do “crime intermediário”.
Merece ser destacado que, para além da análise dogmática acerca da tipicidade dos fatos imputados, existe uma questão de fundo, que se depreende dos argumentos levantados pelos ministros, referente à valoração da quantidade de pena a ser aplicada a um caso em que se questiona a gravidade da conduta que afronta a dignidade sexual de uma pessoa. Ou seja, o que também esteve em debate pelos ministros foi se o beijo dado em uma criança de cinco anos de idade é grave o suficiente para ensejar uma pena de oito anos. Ou, ao contrário, se se trata de uma conduta reprovável, mas não passível de sanção tão severa quanto a estipulada no crime de estupro de vulnerável, sendo, nessa lógica, necessário lançar mão de uma sanção mais branda.
Sobre o crime de importunação sexual cabe uma breve explicação sobre o seu contexto de surgimento. Como menciona o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto, trata-se de um tipo penal que foi aprovado às pressas pelo Congresso Nacional em decorrência da repercussão da prisão em flagrante de um homem em São Paulo, o qual, reiteradamente, entrava em ônibus públicos, roçava o seu pênis em passageiras desacordas ou se masturbava e, em seguida, ejaculava em cima delas.
Este caso ocorreu em agosto de 2017 e teve grande repercussão nas mídias e redes sociais de todo o Brasil.[5]
O episódio que ficou conhecido como “o caso do ejaculador do ônibus” suscitou, à época, profícuos debates; em particular, entre os estudiosos das ciências criminais e da criminologia feminista. Gerou também visões dissonantes nos movimentos sociais, sobretudo após o acusado ter sido liberado vinte e quatro horas após a audiência de custódia, tendo, nos dias seguintes, feito outras vítimas mediante a mesma conduta.
A grande controvérsia que se instaurou naquele momento dizia respeito, assim como nesse caso, ao delito aplicável. Na ocasião, o juiz considerou ter havido contravenção de “importunação ofensiva ao pudor”, cuja pena de multa não autorizava a manutenção da prisão. Portanto, branda demais, na visão de alguns. Ou, conforme defendido por outros especialistas, deveria ter sido considerado crime de estupro, cuja pena, se aplicada, poderia variar de seis a dez anos (talvez severa demais para um ato não reconhecido tradicionalmente como estupro).
Assim, embora esse ponto não tenha sido fortemente explorado nos votos dos ministros, o pano de fundo que perpassa todo esse debate é o que se compreende como sendo violência (s) sexual (is). A respeito disso, ainda hoje não se tem uma solução, pois se fosse fácil emoldurar juridicamente os fenômenos da vida, não existiriam tantas divergências e controvérsias nos tribunais.
Trata-se de discussão que vem sendo feita, com mais intensidade, desde os anos 1990. São inúmeras publicações internacionais e nacionais dando conta de que, antes de se configurarem enquanto crimes, as violências de cunho sexual acontecem em razão das assimétricas relações de poder entre sujeitos e não, como costumeiramente se alega, que ocorreriam em razão da suposta lascívia desenfreada dos agressores.[6]
Pesquisas da área informam que o marcador de gênero influencia no cometimento das agressões[7]. Segundo dados do IPEA[8], em um total de notificações obtidas em 2011, 88, 5% das vítimas de estupro eram do sexo feminino, sendo 70% cometido contra crianças e adolescentes com menos de treze anos de idade.[9]
No que se refere às principais teses debatidas no acórdão, merece atenção o argumento do Ministro Alexandre de Moraes – cujo voto vencedor foi acompanhado pelos Ministros Luiz Fux e Rosa Weber, sendo vencidos os Ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio –, destacando que o estupro de vulnerável se caracteriza em função de uma violência que é sempre presumida em relação a incapazes. Desse modo, os elementos do tipo do artigo 217-A do CP estariam presentes, já que beijar uma criança de cinco anos, introjetando a língua em sua boca, “é questão de poder, é questão de imposição a força”. Moraes foi o único ministro a enfatizar que os crimes sexuais decorrem de relações de poder e de dominação e que, quando cometidos contra menores de catorze anos, não há que se falar de anuência ou falta dela, pois este elemento não deve ser considerado.
Ainda, pontuou que mesmo o laudo psicológico não tendo indicado danos à vítima, crimes sexuais contra crianças e adolescentes muitas vezes só vão desencadear traumas após um longo período. Inclusive, é possível afirmar, na esteira do argumento do ministro, que os traumas podem se manifestar quando a vítima passa a ter consciência de que foi violentada, mediante um repertório de significações construído na fase de maior maturidade.
Já o Ministro Barroso defendeu a tese da necessidade de encontrar um meio termo para a condenação, ao considerar que mesmo em se tratando de uma conduta reprovável, o tipo do artigo 217-A do CP não distinguiria condutas mais ou menos invasivas, de modo que seria adequado que o caminho do meio termo fosse tomado pelo STF, sendo cabível ao caso o tipo do artigo 215-A. Insistiu que a pena de oito anos aplicada ao acusado é severa demais, tendo em vista ser réu primário e de bons antecedentes.
O Ministro Luiz Fux pediu vista, tendo apresentado seu voto na sessão de julgamento do dia 01/10/2019, acompanhando a divergência do Ministro Alexandre de Moraes. A Ministra Rosa Weber também votou no mesmo sentido, encerrando o debate, com uma maioria de três ministros.
O voto do Ministro Fux afirma a necessidade de trazer para a análise da questão a previsão constitucional do compromisso absolutamente prioritário da família, da sociedade e do Estado com a preservação da dignidade, inclusive sexual, das crianças e adolescentes, consoante o artigo 227, caput, da Constituição da República. Com base nesta perspectiva, afirmou que o poder público precisa agir para reprimir severamente tais tipos de violência.
Ressalte-se, contudo, que a aplicação de penas mais severas não é capaz de prevenir ou combater as diversas expressões que as violências sexuais assumem contra crianças e adolescentes, principalmente mulheres. No que se refere a essas potenciais vítimas de abuso, é necessário que o poder público e a sociedade civil coloque em prática as medidas de proteção integral previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, siga as recomendações do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA, especialmente nesse período de confinamento imposto pela Covid-19[10], e, sobretudo, busque educar as crianças sobre limites, violências e também sobre direitos sexuais.
Notas e Referências
[1] “Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.”
[2] HC 134591 / SP, STF, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado 01/10/2019, publicado 11/12/2019.
[3] “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.”
[4] HC 134591 ED / SP, STF, Primeira Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado 27/04/2020, publicado 14/05/2020.
[5] Para maiores informações, ver: PRANDO, Camila. O caso do ônibus e a seletividade dos penalistas. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/o-caso-do-onibus-e-a-seletividade-dos-penalistas>. Acesso em 25 de maio de 2020; ZAPATER, Maíra. Maíra Zapater comenta caso de ejaculação no ônibus [Vídeo]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5B4YgX9FQpY>. Acesso em 25 de maio de 2020.
[6] Vera Andrade, em pesquisa pioneira sobre análise de julgamentos de crimes sexuais na cidade de Florianópolis, na década de oitenta, não pode deixar de ser citada como importante referência para aqueles/as que se debruçam sobre o tema. Ver: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal máximo x cidadania mínima. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2003.
[7] Para maiores debates sobre violências sexuais, desde uma perspectiva atravessada pelos marcadores de gênero, raça e outros, ver: SMITH, Andrea. A violência sexual como uma ferramenta de genocídio. Tradução de Bruna Zoch. In: SMITH, Andrea. Conquest: Sexual Violence and American Indian Genocide. Foreword by Winona LaDuke. Cambridge, MA: South End Press, 2005.
Ver também: DESPENTES, Virgine. Impossível estuprar esta mulher cheia de vícios. In: DESPENTES, Virgine. Teoria King Kong. Tradução Márcia Bechara. São Paulo: n – 1 edições, 2016. p. 27-46.
[8] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
[9] IPEA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília, 2014. [Nota Técnica]. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/21/estupro-no-brasil-uma-radiografia-segundo-os-dados-da-saude-> Acesso em 08 de jun. 2019.
[10] CONANDA. Recomendações do CONANDA para a proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia do Covid-19. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/recomendacoes_conanda_covid19_25032020.pdf>.
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