Impenhorabilidade e fraude à execução: quando o direito social à moradia é relativizado pela má-fé processual  

08/05/2020

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

A proteção ao direito à moradia encontra amparo no art. 6º da Constituição Federal e compõe o rol dos direitos sociais do cidadão.

Não obstante, por se tratar de direito social, a legislação protege amplamente a moradia, vez que é responsável por promover a dignidade da pessoa humana. Portanto, com a finalidade de coibir a frustração de tal direito, o legislador optou por criar uma lei específica que protege o imóvel residencial, caso o seu proprietário venha a responder por dívida em certas ações.

A Lei 8.009/90, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, logo em seu primeiro artigo informa que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Vale ressaltar que a impenhorabilidade do bem de família apenas se sujeita à relativização em casos específicos determinados por lei, como, por exemplo, pensão alimentícia, dívida com trabalhador doméstico ou débitos do próprio imóvel, reforçando a ideia de que a lei 8.009/90 precisa ser vista através de uma ótica social, valorizando a moradia digna, independente do estado civil da pessoa em que nela resida.

Com o passar do tempo, a jurisprudência necessitou incrementar a lei, e, atualmente os tribunais entendem que o imóvel do residente solo ou  o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência da sua família, não são suscetíveis de penhora.

Apesar da impenhorabilidade do imóvel familiar estar intimamente relacionado à direito fundamental, existem ocasiões em que tal “blindagem legal” deve ser relativizada, por exemplo, quando no curso de processo judicial, o devedor aliena o imóvel e não emprega o produto da alienação no pagamento da dívida executada.

Quando o devedor executado vende o bem de família e utiliza o produto da venda para destinação distinta da proteção de sua moradia, ocorre a descaracterização do imóvel que outrora servia como abrigo da família deste devedor, implicando, assim, o desvio do valor econômico do bem e afastando o credor do alcance da satisfação do crédito. Neste caso, a fraude à execução deverá ser acolhida, pois consiste em desviar do credor o dinheiro da venda.

A fraude à execução é ato atentatório à dignidade e à administração da justiça, muito mais grave do que a fraude pauliana. Na fraude contra credores o prejudicado direto é o credor; na fraude à execução o prejudicado imediato é o Estado-juiz, ensejando declaração pura e simples, da ineficácia do negócio jurídico fraudulento, em face do processo executivo[1].

Assim, relacionam-se estritamente a disciplina da fraude contra execução e a responsabilidade patrimonial os atos dispositivos do devedor que ocorrem no curso de uma relação processual. Nesse caso, como parece conveniente, a fraude adquire superlativa gravidade. O negócio não agride somente ao circuito potencial de credores. Ele compromete paralelamente, a própria efetividade da atividade jurisprudencial do Estado, reclamando reação mais severa a esta, e recebe o espírito de fraude contra a execução.[2]

A execução é terreno fértil para a prática de condutas contrárias à boa-fé. Por essa razão, o legislador elegeu a fraude como ato atentatório à dignidade da justiça, passível de condenação em multa no âmbito civil e, ainda, possibilitando a queixa-crime ao lesado, conforme o art. 179 do Código Penal.

Em 2009, o STJ pacificou entendimento, no sentido de que o bem que retorna ao patrimônio do devedor, por força de reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da impenhorabilidade disposta na Lei nº 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado[3]

Porém, passados dez anos, em 2019, o Tribunal da Cidadania ao julgar um Agravo Interno em Recurso Especial, definiu que, mesmo quando o devedor aliena o imóvel que lhe serve de residência, deve ser mantida a cláusula de impenhorabilidade porque imune aos efeitos da execução, caso reconhecida a invalidade do negócio, o imóvel voltaria à esfera patrimonial do devedor ainda como bem de família[4].

Perceba que tal entendimento contraria toda a ideia da Lei de impenhorabilidade do bem de família, que visa a proteção do imóvel unicamente quando serve de moradia ou subsistência ao seu proprietário. No caso em questão, o objetivo perseguido pela Agravante  foi o de impedir qualquer iniciativa do devedor no sentido de promover a alienação ou oneração de seus bens ou rendas patrimoniais, asseverando que deve ser reconhecida a perda da impenhorabilidade do bem alienado com o fim de desaprovar a tentativa fraudulenta do executado.

Recentemente, em 02 de abril de 2020, a 4ª Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao recurso nos termos do voto da Ministra Relatora Maria Isabel Gallotti, alegando que, uma vez reconhecida que a transferência do imóvel se deu em fraude à execução, deve ser afastada a impenhorabilidade do bem de família[5].

Nessa esteira, temos que o Tribunal já vem entendendo que não se deve aceitar que o imóvel residencial retorne ao patrimônio do executado como tal, o que demonstra que a má-fé do devedor não deve ser suportada pelos Tribunais.

Em nosso sentir, a proteção da Lei nº 8.009/90 só se justifica enquanto necessária para assegurar o mínimo existencial do devedor e de sua família. Com a impenhorabilidade, visa-se tão somente que a execução não leve o executado a uma situação incompatível com a dignidade da vida humana. Assim, entre dois objetos jurídicos relevantes, ou entre duas proteções jurídicas confrontadas – direito ao crédito e direito à moradia -, almejar-se-á demonstrar que a exceção pode preponderar sobre a regra, quando demonstrada a intenção do executado de fraudar o processo de execução utilizando-se da “blindagem” que a lei concede ao patrimônio familiar.

Portanto, agir de maneira ética, honesta e justa é uma postura esperada de todas as partes envolvidas em uma ação judicial, além de dialogar diretamente com o Princípio da Cooperação das Partes, destacado no art. 5º do Código de Processo Civil, o qual informa que é dever das partes cooperar com o juiz, fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência.

Certamente, aquele que atenta contra a dignidade da justiça fraudando o processo executivo, deve responder pelos danos causados. Dessa forma, entendemos que as medidas de punição trazidas pelo ordenamento se mostram assertivas, sendo um mecanismo capaz de frear as condutas ardilosas no ambiente processual e assim, facilitar o alcance à efetividade da execução.

 

Notas e Referências

[1] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante.10. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 225.

[2] ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil. V VI. Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 223.

[3] STJ, AgRg no REsp 1085381/SP, Relator Ministro Paulo Galotti, Sexta Turma, Data de Julgamento: 10/03/2009, Data de Publicação DJe: 30/03/2009.

[4] STJ, AgInt no REsp: 1719551 RS 2018/0013420-7, Relator: Ministro Og Fernandes, Data de Julgamento: 21/05/2019, Segunda Turma, Data de Publicação DJe: 30/05/2019.

[5] STJ, AgInt nos EDcl no AREsp: 731483 PR 2015/0149058-9, Relator: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 30/03/2020, Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 02/04/2020.

 

 

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