Impactos do Digital na Sociedade de Controle: entre avanços e precarização

04/06/2024

1. Introdução

Desde a base teórica e método materialista da Análise de Discurso Francesa pecheuxtiana (PÊCHEUX, 2014), destacamos que o ideológico (materialmente ligado ao inconsciente) é indissociável do sujeito e seus discursos, considerando a historicidade, de modo que mesmo as Inteligências Artificiais generativas (para criar conteúdos de texto e outros) dependem de um corte, ajuste e calibragem que precisam de humanos, uma dependência do Outro, onde toda inscrição de diferença comporta uma dose de repetição atrelada aos dados utilizados, recobrando-se, ainda, que a dimensão histórica trazida por Anitua (2010) não pode ser eclipsada nas transformações do emergir do poder punitivo no continente europeu no século XIII (nem a perspectiva histórica acerca do ideológico num contexto digital supostamente neutro).

Nosso objetivo no presente artigo, é pensar nessa relação de repetição e diferença no âmbito macro da formação social, econômica e ideológica, para verificar qualitativamente se as mudanças verificadas caracterizam transformações abrangentes da própria designação de capitalismo, hoje questionada, entre outras opções, como tecnocapitalismo e capitalismo digital, ou mesmo tecnofeudalismo ou feudalismo digital, por razões que serão adiante expostas, mas que compreendem, em linhas gerais, mudanças radicais nas relações das pessoas com as novas formas de propriedade, hoje regidas por assinaturas para direito de uso temporário, licenças temporárias e outros nomes, de produtos gradativamente essenciais à sobrevivência.

As diferentes alusões dessa dinâmica capitalista digital conectadas ao feudalismo, evidentemente que não advogam por um retorno direto ao feudalismo histórico, mas fomentam grandes reflexões sobre as mudanças substanciais que ocorrem hoje na sociedade, nas relações sociais e econômicas contemporâneas.

Similar ao que ocorreu com o emergir da chamada "sociedade de controle" de fluxos e monitoramentos ultra rápidos explorada na filosofia (com Foucault e Deleuze) abordada em Pires (2018), que não significou o apagamento total das características da sociedade disciplinar e demais, mas um redimensionamento, verificamos na formação social atual mudanças radicais que igualmente implica em redimensionamentos capazes de justificar a mudança de designação, no ato de nomear e conceituar, para inclusive estabelecer premissas do funcionamento econômico e ideológico, sob a forma jurídica e seus novos formatos-padrão, como a cessão temporária de direitos de uso, estendida para patamares dificilmente imaginados no passado, sobretudo com o avanço exponencial das IAs.

Dito isso, é crucial destacar que no contexto das sociedades digitais e centralidade dos dados, com empresas e pessoas disputando e/ou trabalhando nos espaços digitais, experimentamos mudanças importantes em relação à propriedade, em que grosso modo não adquirimos permanentemente as ferramentas digitais, como softwares e serviços de nuvem e streaming, borbulhando a centralidade das assinaturas para acesso temporário a recursos digitais.

Nesse ponto, a analogia com o sistema feudal histórico (medieval) é notória quando o confrontamos com alguns aspectos do mundo digital contemporâneo. O feudalismo medieval envolvia a concessão condicional e temporária de terras em troca de serviços, subordinação e lealdade, entre outros deveres, de modo que tanto a distribuição das terras para uso, quanto a relação desse sistema com a propriedade, era marcada por uma hierarquia social verticalizada, grosso modo com o monarca no topo e na esteira das camadas hierárquicas, senhores feudais, nobres, a parte militar (como cavaleiros e sujeitos destinados à guarda e proteção bélica que assumiam compromissos e deveres). E na base, camponeses, os mais comparáveis, hoje, aos usuários de tecnologias do atual capitalismo digitalizado, na ponta do sistema, que não adquirem efetivamente as tecnologias e vivem subordinados aos termos, condições, ajustes documentais e forma-jurídica em geral.

No feudalismo medieval, de economia pautada na agricultura, os nobres recebiam terras em troca de subordinação e lealdade aos seus senhores, coletando impostos dos camponeses (base) que nelas viviam, perpetuando a reprodução dessa lógica. Dito de outro modo, enquanto os contratos de vassalagem e suserania com obrigações mútuas entre senhores feudais e vassalos (nobres) mantinham certa autonomia e autoridade das partes; com os camponeses, a exploração e a dependência assumiam facetas bem mais radicais, hoje atribuídas às formas de dependência dos despossuídos à dinâmica do capitalismo contemporâneo, pois a digitalização e avanços tecnológicos criaram novas subordinações que unem capital e digital. O simples trabalho em home office hoje exige uma série de dispositivos e assinaturas ligadas a plataformas e ferramentas controladas por grandes corporações, muito maiores do que os trabalhadores envolvidos.

Se no feudalismo a terra era controlada por poucos em detrimento de muitos, que buscavam acesso limitado sobre as terras, submetendo-se às regras vigentes específicas, hoje em dia, nesse novo capitalismo digitalizado, a tecnologia igualmente pertence a poucos, meia dúzia de empresas, que dominam e efetivamente fatiam a realidade, impondo-se sobre uma classe de usuários, o que abarca, no limite, inclusive países, na medida em que hoje, o controle de grandes corporações e provedores de serviços frequentemente sobrepuja a influência estatal, repaginando o conhecido encaixe Estado-Capital, onde a formação econômica do capital (e sua ideologia que reproduz a forma mercadoria como central nas  diferentes ideologias) rege mesmo Estados e suas forças políticas, pautando-as para a reprodução das condições de produção.

A aparente independência e autossuficiência local com descentralização de poder (vista com ressalvas, e no nível macro) ocultam que a exploração (e hoje de si próprio), em ambos os casos, passam por uma formação social, econômica e ideológica, que determina o funcionamento encarado como lógico e óbvio, isto é, o funcionamento naturalizado que repete a ideologia dominante.

 

2. Desenvolvimento

Em que pese a aparente disputa entre empresas pelo controle das tecnologias, o fato é que no século XXI, gradativamente aumenta a concentração de poder econômico nas mãos de poucos, o que no capitalismo, significa influência política, inclusive na sua acepção institucional partidária, com dependência e exploração da maioria.

A nova dimensão de precarização e disputa, no limite, reduziu economicamente a nada, até profissões antes associadas à elite, que se viram obrigadas a se tornarem entregadores e motoristas de aplicativos, ganhando pouco e trabalhando muito, mesmo com diplomas superiores, especializações, experiência etc. As plataformas governam as suas vidas, seus trabalhos, seus ganhos.

Não por acaso, associados à precarização, circulam termos ligados às grandes plataformas, como o termo “uberização” do trabalho, na tentativa de abarcar esse horizonte de dependência de plataformas e dívidas (representada no aludido termo "uberização" que tornou-se comum no vocabulário dos críticos das novas formas de (auto)exploração atuais). Nomeação para diagnosticar nossos tempos (descrever, mas sem estacionar na descrição, buscando compreender para transformar).

Oliveira (2022), valendo-se de pensadores como Arantes (2004, 2014), aborda essa atualidade de lutas, capturas e violências no Brasil, e trabalha com duas diferentes chaves de leitura, mas que de alguma forma miram o mesmo objeto, podendo ser complementares. Brasilianização (o Brasil como espelho do mundo marcado pela involução ocidental) e refeudalização (onde o esgotamento do capitalismo e de suas possibilidades de expansão estaria conduzindo a uma nova formação social, com elementos similares ao feudalismo) [1].

Onde a assimetria (técnica e econômica) é ampliada com a inscrição tecnológica, de bens e serviços essenciais necessários para se viver e trabalhar, controlados por grandes empresas, que entre outras coisas, vendem somente o direito de uso temporário de serviços, por meio de mensalidades e pacotes, no domínio dos meios de produção, e podendo unilateralmente ajustarem regras das plataformas e tecnologias das quais a formação (e os trabalhadores) já encontra(m)-se dependente(s).

Podendo essas grandes empresas arbitrariamente mexerem em funcionamentos dos produtos e serviços em geral, e ainda para determinadas pessoas especificamente, por exemplo, retirando funcionalidades e mesmo acesso total dos que não pagarem e aderirem aos aumentos e novas regras fixadas.

Esse formato digital cria diversas hierarquias sobre quem possui o melhor pacote de funcionalidades, com afetações substanciais no trabalho, e na vida em geral, tornando os trabalhadores reféns das funcionalidades exigidas no mercado de trabalho e na vida em geral, reféns de assinaturas e dívidas que lhes vincula e afasta de quem efetivamente domina a tecnologia.

Nesses trajetos, a ideologia não segue inalterada. E ao falarmos de Ideologia e sujeito na Análise de Discurso Francesa, pensando na luta de classes e sua atualidade no século XXI, é pertinente se ater ao que Arantes (2004) apresenta como uma dimensão horizontal da luta de classes, onde as bases se destroçam, disputam tudo entre si, de modo cada vez mais voraz (na esteira do neoliberalismo na periferia do mundo; luta onde as bases despejam seu ressentimento nos próprios sujeitos ocupantes dessas bases econômicas e políticas).

Trata-se de um redimensionamento da luta de classes, onde as antigas dualidades seguem existindo, mas são mediadas por disputas e opressões mais complexas desde a superfície, base contra base, de forma decerto mais sofisticada do que no século XX, sobretudo com a nova dimensão de precarização e disputa digital, onde a adesão subjetiva à barbárie explicitada por Batista (2020) envolve a subordinação a uma sociedade de controle redimensionada, uma formação social repaginada, onde o tecnocapitalismo, ou como designado, adquire, sim, características similares ao feudalismo medieval acerca da frágil relação com a tecnologia da qual as pessoas são dependentes.

 

3. Conclusão

Independentemente do nome dessa formação, que didaticamente podemos chamar de capitalismo digital tecnofeudal, não é possível ignorar que a chamada era dos dados e da informação, é também a era das assinaturas. Era de relação completamente assimétrica entre usuários de tecnologias e grandes corporações visando o lucro, que possuem essas tecnologias de fato.

Dito de outro modo, não existe horizontalidade entre usuários de rede sociais e outras tecnologias e ferramentas digitais, onde a sobrevivência passa a estar em jogo (mais do que simples entretenimento), para com as chamadas Big Techs, grandes empresas de tecnologia que dominam de modo voraz o cenário global de tecnologia.

As mais poderosas empresas de tecnologia do mundo exercem uma enorme influência e impacto em diversos aspectos da vida dos trabalhadores/usuários, que como camponeses, estão subordinados e atados para adquirirem acesso a uso temporário de ferramentas digitais indispensáveis para sobreviverem, se não pela agricultura, com seus dispositivos (computadores, celulares etc.), produzindo conteúdo e serviços dentro dos moldes traçados por grandes corporações.

A briga de VIPs visualizada na criminologia de Zaffaroni (2012) subsiste, mas hoje é claramente permeada pela centralidade da disputa neoliberal entre as bases recobrada por Oliveira (2022), onde tem-se, como apontado com Arantes (2004, 2014) uma dimensão horizontal da luta de classes, e um paralelo de disputas por capturas e (auto)exploração contemporânea. Esgotamento da lógica anterior? Necessidade de uma nova designação atrelada à sociedade de controle para abarcar as características neofeudais?

Uma coisa é certa, é necessário abordar e diagnosticar o capitalismo do presente, sem estacionar no século XX e anteriores, pois vivemos hoje uma dinâmica nova e única. Por isso, a discussão é atualíssima e importante, pois lidamos hoje com algo sem precedentes, onde, sem perceber, de donos de tecnologias, nos afastamos delas, enquanto nos prendemos cada vez mais, aprisionados naquilo que não nos pertence.

 

 

Notas e referências

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias de los pensamientos criminológicos. Prólogo E. Raúl Zaffaroni. 1.  ed. 2ª reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.

ARANTES, Paulo. “A fratura brasileira do mundo” In: Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: outros estudos sobre a era da emergência. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

BATISTA, Vera Malaguti. Estratégias de liberdade. In: PIRES, Guilherme Moreira (Org). Abolicionismos: vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Florianópolis: Habitus, 2020.

OLIVEIRA, Diogo Mariano Carvalho de. O novo tempo da dualização: brasilianização ou refeudalização? Zero à esquerda. no 0. p. 170-198, 2022.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018. 

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos: Conferencias de Criminología Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2012.

[1] O autor indaga (e ao final sugere a complementariedade das problematizações): “serão a brasilianização e a refeudalização duas leituras de um mesmo fenômeno, pontos de vista diferentes numa paralaxe que miram o mesmo objeto e, portanto, possuem elementos de convergência que podem ser integradas numa mesma leitura de dupla mão ‘centro-periferia’? A agudização das contradições do capital, a precarização acelerada do mundo do trabalho, a intensificação da exploração, as novas formas de acumulação via despossessão, os aumentos de acirramentos intraclasse e a expansão e aprofundamento da dualização Brasil adentro e mundo afora seriam então expressões da “brasilianização” do mundo? O Brasil é o paradigma de dualização do futuro do mundo? Este texto encerra-se antes com perguntas do que com respostas, pois o novo tempo do mundo que desponta no agora tem exigido antes a identificação de um novo conjunto de problemas do que um punhado de respostas baseadas em pressupostos empoeirados.” (OLIVEIRA, 2022, p. 195-196). De todo modo, as chaves críticas de leitura para se entender os tempos presentes, impõem a necessidade de transformação. Oliveira (2022) vincula a esperança, a esse encontro do freio de emergência do cenário descrito. Contra o avanço da periferização e degradação planetária total, é preciso encontrar um freio de emergência desse trem-mundo. Cientes de que o esgotamento do sistema não significa o seu fim instantâneo, senão que uma maior pressão para a inscrição de novas e velhas capturas, redimensionadas e abastecidas com maior energia. Para registrar o conceito de “acumulação por despossessão”, vale destacar que: “vários autores, v.g., David Harvey, Werner Bonefeld, Jim Glassman e Daniel Bin, compreendem que os mecanismos deste processo originário de acumulação (...) continua ocorrendo até os dias de hoje. Trata-se do que David Harvey chamou de ‘acumulação por despossessão’ ou ‘via espoliação’.” (OLIVEIRA, 2022, p. 186). Não raro, com extremo emprego de violência armada e mesmo extermínio. Funcional à perpetuação do já-lá pecheuxtiano.

 

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