Ilegalidade de acesso a aparelho celular – e quando o dono “fornece” a senha?

04/03/2018

Muito se discute – e recentes decisões judiciais colocaram o tema ainda mais em evidência – a respeito da possibilidade de a polícia acessar diretamente dados de aparelhos celulares de “suspeitos” ou mesmo encaminhá-los para a realização de perícia, sem autorização judicial. Embora a ilegalidade do procedimento pareça evidente e venha sendo reconhecida pelas Cortes nacionais, surge outra discussão: o acesso se torna válido quando a senha é “fornecida” pelo dono do aparelho? 

A fim de esclarecer a questão, apresentar-se-ão as razões da ilegalidade do procedimento em geral, para depois tratar da impossibilidade de validá-lo sob o argumento de que a senha teria sido fornecida. 

O acesso ao conteúdo de aparelho celular, inclusive de aplicativos de comunicação, como whatsapp, é ilícito, resultando em elementos que não podem ser aproveitados, diante de sua absoluta nulidade. Não obstante os dados contidos nos aparelhos de telefone celular não estejam amparados pelo artigo 5º, XII, da Constituição da República e pela Lei 9.296/1996 – ressalva feita quanto aos aplicativos de comunicação, como whatsapp, aos quais se aplica tal proteção constitucional e legal –, não estão os agentes de segurança pública autorizados a devassar tais bens, quando apreendidos, nem mesmo se permite à Autoridade Policial que os remeta diretamente à realização de perícia. Há de se reconhecer a imperiosidade de uma decisão judicial autorizando tal diligência. 

Trata-se de uma proteção à intimidade e à vida privava, preconizada no artigo 5º, X, da Constituição da República, que não pode ser simplesmente desrespeitada quando existem meios capazes de atender aos requisitos para a sua mitigação. Ou seja, há casos em que se vai reconhecer a inexistência do direito à privacidade – o que alguns fariam por meio de ponderação, aliás –, dada a verificação de outro direito aplicável à situação. É justamente a hipótese em que um Magistrado autoriza o acesso ao aparelho de telefone celular e a extração dos dados ali constantes. Ocorre que o desrespeito à verificação judicial da caracterização da circunstância permissiva torna ilegal o acesso e nulos, portanto, os elementos obtidos. 

Sobre o tema, extrai-se de texto publicado por Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr.: 

Conforme os subscritos vinham defendendo em seus livros, a temática partia de uma premissa equivocada, ou seja, de que o conteúdo digital estava no aparelho e, assim, tal qual outro objeto apreendido poderia ser analisado pela autoridade policial. O equívoco decorre do fato de que a intimidade e a privacidade armazenadas no dispositivo transcendem os limites analógicos de bens materiais, abarcando aspectos que se reconheceu tutela de direitos fundamentais. [1] 

Embora não sirva como precedente no Brasil, interessa trazer a lume decisão proferida pela Corte Suprema norte-americana, no caso Riley vs. California, de 2014. Entendeu-se, unanimemente, que a busca de conteúdo em aparelho de telefone celular sem mandado judicial é evidente violação à Quarta Emenda à Constituição, razão pela qual deveria ser considerada ilícita. Argumentou-se que o celular não representa nenhum risco para os policiais que efetuam a prisão – ou seja, não existe urgência na medida que justifique a dispensa da representação perante a autoridade judicial – e que tais aparelhos, atualmente, não podem ser considerados mera conveniência tecnológica, constituindo-se em verdadeiros bancos de dados privados. 

No Brasil, no dia 23 de novembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reputou constitucional a questão referente ao acesso a celulares por agentes de segurança pública não autorizado judicialmente e reconheceu a existência de repercussão geral do tema suscitado, nos seguintes termos: 

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PERÍCIA REALIZADA PELA AUTORIDADE POLICIAL EM APARELHO CELULAR ENCONTRADO FORTUITAMENTE NO LOCAL DO CRIME. ACESSO À AGENDA TELEFÔNICA E AO REGISTRO DE CHAMADAS SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ACÓRDÃO RECORRIDO EM QUE SE RECONHECEU A ILICITUDE DA PROVA (CF, ART. 5º, INCISO LVII) POR VIOLAÇÃO DO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES (CF, ART. 5º, INCISOS XII). QUESTÃO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL. MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DO INTERESSE PÚBLICO. TEMA COM

REPERCUSSÃO GERAL. (Agravo em Recurso Extraordinário 1.042075. Relator Ministro Dias Toffoli) 

O feito ainda aguarda julgamento, o que certamente terá intensa repercussão no cenário jurídico nacional. Mas, acima de tudo, terá repercussão no contexto social do Brasil, posto que as violações das quais se trata ocorrem com aquelas pessoas que se encontram em situação de severa(s) vulnerabilidade(s), à margem da sociedade, à margem dos próprios direitos fundamentais. E, lamentavelmente, diante da sanha punitivista e segregatória que vem pautando a atuação do Poder Judiciário brasileiro, não se duvida que a decisão seja no sentido de legitimar os evidentes e constantes abusos praticados pelos agentes de segurança pública. 

De todo modo, independente de qual seja a decisão proferida, inegavelmente não fará cessar as controvérsias acerca da questão, uma vez que se trata de tema em que ainda há muito a ser discutido. A temática é por demais complexa, envolvendo, como já se mencionou, não apenas aspectos jurídicos, mas sociais e até mesmo políticos, razão pela qual não é capaz de se exaurir em uma decisão judicial. 

Enquanto não se realiza o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, cumpre analisar algumas decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a ilegalidade da medida adotada pelos agentes de segurança pública e a decorrente nulidade dos elementos obtidos. 

Em abril de 2016, a Corte da Cidadania analisou caso em que policiais surpreenderam um suspeito e o prenderam em flagrante com 300 comprimidos de ecstasy, oportunidade em que apreenderam o seu aparelho de telefone celular. O Ministro Nefi Cordeiro, Relator do feito, considerou que o acesso às conversas realizadas por meio do aplicativo whatsapp, que caracteriza uma “forma de comunicação escrita, imediata, entre interlocutores”, representa “efetiva interceptação inautorizada”. O Ministro realizou a seguinte comparação: “é situação similar às conversas mantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se igualmente exigido a prévia ordem judicial”. Concluiu, ainda, que “ilícita é tanto a devassa de dados, como das conversas de WhatsApp obtidos de celular apreendido, porquanto realizada sem ordem judicial”, posicionamento em que foi acompanhado pelo demais integrantes da 6ª Turma do STJ. 

Veja-se a ementa do acórdão em questão: 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE DA PROVA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A PERÍCIA NO CELULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.

1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial.

2. Recurso ordinário em habeas corpus provido, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos.

(RHC 51.531/RO, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 19/04/2016, DJe 09/05/2016) 

Ainda mais recentemente, em dezembro de 2017, foi a 5ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça que reconheceu a ilicitude da prova obtida por meio da análise de aparelhos telefônicos de investigados. Embora tenha considerado que as mensagens de whatsapp arquivadas não se enquadram na proteção constitucional e legal de comunicação (com o que não se pode concordar), caracterizou-as como dados que também não podem ser extraídos do aparelho sem autorização judicial. Veja-se: 

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO E QUADRILHA.

APARELHO TELEFÔNICO APREENDIDO. VISTORIA REALIZADA PELA POLÍCIA MILITAR SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL OU DO PRÓPRIO INVESTIGADO.

VERIFICAÇÃO DE MENSAGENS ARQUIVADAS. VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE. PROVA ILÍCITA. ART. 157 DO CPP. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO.

1. Embora a situação retratada nos autos não esteja protegida pela Lei n. 9.296/1996 nem pela Lei n. 12.965/2014, haja vista não se tratar de quebra sigilo telefônico por meio de interceptação telefônica, ou seja, embora não se trate violação da garantia de inviolabilidade das comunicações, prevista no art. 5º, inciso XII, da CF, houve sim violação dos dados armazenados no celular do recorrente (mensagens de texto arquivadas - WhatsApp).

2. No caso, deveria a autoridade policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados, haja vista a garantia, igualmente constitucional, à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, prevista no art. 5º, inciso X, da CF. Dessa forma, a análise dos dados telefônicos constante dos aparelhos dos investigados, sem sua prévia autorização ou de prévia autorização judicial devidamente motivada, revela a ilicitude da prova, nos termos do art. 157 do CPP. Precedentes do STJ.

3. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a ilicitude da colheita de dados do aparelho telefônico dos investigados, sem autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as derivadas, serem desentranhadas dos autos.

(RHC 89.981/MG, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 13/12/2017) 

Fica evidente, portanto, que a medida frequentemente adotada pelos agentes de segurança pública, mormente quando realizam prisões em flagrante, é ilegal, uma vez que se mostra indispensável a autorização judicial para acesso ao conteúdo dos aparelhos de telefone celular – a cuja mera apreensão se está autorizado a proceder, a depender das circunstâncias. 

Ingressando na questão do “fornecimento” da senha, deve-se reconhecer que o fato de os donos do aparelho supostamente “informarem” os códigos de acesso não funciona como permissivo, ainda sendo imprescindível decisão judicial. 

A suposta “cessão” da senha não valida a obtenção dos elementos, dada a carga coativa dos “pedidos” que emanam dos agentes de segurança pública. Se, no caso de ingresso no domicílio, o entendimento é de que o consentimento previsto na Constituição da República como permissivo não se aplica a agentes estatais[2], dado o caráter da sua atuação e a coercitividade que pode/costuma pautar os atos praticados, o mesmo se aplica ao acesso a aparelhos de telefone celular. É evidente que não existe voluntariedade na eventual “cessão” de senha a um policial, mormente quando o cedente se encontra detido por esse mesmo agente. 

A coação caracteriza um tipo de violência que não costuma ser questionado nas audiências de custódia e é, lamentavelmente, deveras frequente na atividade policial. Parece que se consideram irrelevantes os atos praticados pelos agentes de segurança pública com evidente caráter ameaçador (além de agressões verbais, humilhações, deboches etc.), em uma compreensão da atividade policial típica de regimes ditatoriais. Não é necessário que haja agressões físicas para se reconhecer a ausência de voluntariedade em uma conduta, bastando que a vítima – no caso, o dono do aparelho – se sinta intimidada a ponto de realizar o ato “solicitado”. 

Extrai-se da obra de Nestor Távora[3] que, mesmo que o smartphone não tenha senha de entrada, isso não justifica o acesso às informações constantes do aparelho, devendo igualmente se recorrer a uma autorização judicial. Isso, mesmo se a situação for de flagrância, fato que não legitima a ilegalidade praticada pelos agentes de segurança pública. Ora, se não é possível o acesso a um celular liberado – sem senha para extração de informações –, igualmente não é permitido o acesso a um celular bloqueado com senha, quando essa senha é “fornecida”. 

Nesse mesmo sentido, destaca-se do inteiro teor do acórdão proferido no bojo do já citado RHC 51.531/RO (Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 19/04/2016): 

No acesso aos dados do aparelho, tem-se devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente. Embora possível o acesso, necessária é a prévia autorização judicial devidamente motivada [...] (grifou-se) 

Quando se fala “embora possível o acesso”, evidentemente se abarca a circunstância em que a senha é conhecida, posto que evidentemente se mostra “possível o acesso”. Não se trata apenas de situações em que o aparelho de telefone celular não é bloqueado com senha, mas de todas as hipóteses em que o acesso é concretamente viável, não se podendo diferenciar aquelas em que o celular é bloqueado com senha, sob pena de se valorar de modo distinto os direitos dos cidadãos. 

E importa reiterar: em casos como esse, não há, de fato, consentimento válido. O ato de “fornecer” a senha não é voluntário, uma vez que o “suspeito” se vislumbra totalmente coagido, especialmente quando detido. Sobre a postura impositiva da polícia, é de conhecimento de todos, ao menos daqueles que voltam o olhar à realidade dos cidadãos em situação de vulnerabilidade(s). De todo modo, os relatos constantes das seguintes páginas virtuais ajudam a delinear a situação: 

- http://vaidape.com.br/2017/03/policiais-estao-vasculhando-celulares-durante-as-abordagens-na-periferia/

- https://jus.com.br/duvidas/335885/policia-pode-revistar-meu-celular (especialmente comentários de Jefferson Binotti, Allisson Moraes, Jean Carlos Pereira, Paulo Roberto, Alex Makaveli e Gilberto Leite Leite)

- https://vilacaneto.jusbrasil.com.br/artigos/378035849/fui-abordado-ou-preso-a-policia-pode-acessar-as-conversas-em-meu-celular (especialmente comentário de Lucas Silva)

- https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20170126072325AAAfzuC

- https://www.youtube.com/watch?v=GPm3dfYS_rM 

Deve-se concluir, pois, pela necessidade de reconhecimento da ilegalidade do acesso ao conteúdo dos aparelhos de telefone celular de “suspeitos”, mesmo quando há a suposta “cessão” da senha pelos seus donos.

 

[1] https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/limite-penal-vasculhar-aparelho-celular-somente-autorizacao-judicial

[2] Veja-se o voto do Ministro Ricardo Lewandowski no Habeas Corpus 138.565, em que salientou que “um dos princípios mais sagrados da Constituição Federal (art. 5º, XI) estabelece a casa como asilo inviolável do cidadão. Em casos como esse, os policiais costumam dizer que foram ‘convidados’ a entrar na casa. Evidentemente que ninguém vai convidar a polícia a penetrar numa casa para que ela seja vasculhada”.

Ainda nesse sentido, também já citado: LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 422-423.

[3] TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Material complementar. Salvador/BA: Editora Juspodivm, 2016.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Telefonia móvel // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações

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