Ideologia Social: cuidado, você pode ser a próxima vítima? O Discurso do Disco de Vinil – Por Leonel Pires Ohlweiler

31/03/2016

Em tempos de sociedade complexa, pós-modernidade, hipercomplexidade e outras denominações para tentar traduzir o momento atual, a informação tecnologizada impõe questionamentos relevantes, inclusive para a discussão dos acontecimentos políticos, sociais e jurídicos que assolam o país.

Há uma espécie de sentido dogmático rondando o processo de compreensão, em ambos os lados (se é que os problemas podem ser reduzidos como se fossem Disco de Vinil – lado A e lado B). De qualquer modo, labora-se com a robotização dos sentidos, circunstância que remete para a questão da ideologização do social hodiernamente.

Entre Dualidades e a Ideologia como Ilusão de Conteúdo. 

As atividades da Administração Pública relacionadas com educação, saúde, segurança, meio ambiente, consumidor, etc. não se submetem ao reducionismo das dualidades: ao reconhecer os aspectos positivos de determinadas políticas públicas, você é favor do governo e, ao mesmo tempo, lançar críticas importa em assumir-se como coxinha.

Já passou a época na qual a ideologia era vista como ilusão[1], a representação equivocada e distorcida de seu conteúdo social. As tentativas atuais de ideologização de qualquer análise jurídica sobre boas ou más políticas públicas, de certo modo, resgata a ultrapassada concepção de ideologia como conteúdo!

Ora, urge que se tenha a capacidade de compreender o seguinte, na linha do referido por Slavoj Zizek: a ideologia não é necessariamente falsa! Aliás, até pode ser verdadeira, pois o importante não está somente no conteúdo afirmado, mas no modo como se relaciona com os processos de enunciação. A correspondência material dos conteúdos não é o mais significativo, mas a inserção no espaço ideológico de relações de dominação social de maneira não transparente.

O comportamento de setores da mídia oficial nos últimos meses é revelador, pois a dogmatização dos sentidos não está exclusivamente no conteúdo veiculado, mas naquilo que deixa de dizer, não está na presença, mas na ausência. Não se deve esquecer algo precioso: a ideologia depende de sua capacidade de ser invisível, de como tal não ser percebida.

As diversas manifestações sociais ocorridas no Brasil, por exemplo, é claro que possuem conteúdo a ser considerado pelos administradores públicos, mas, em comparação com os milhões de cidadãos brasileiros, em hipótese alguma, representam alguma espécie de caos social. A visão do caos e de tornar algo cotidianamente repetido direciona a compreensão para o aspecto negativo de tais manifestações, quando se configura legítimo direito democrático.

Com efeito, o olhar crítico sobre movimentos sociais, denúncias de corrupção, operações policiais, etc., não se situa apenas sobre a identificação de conteúdos ideológicos transmitidos por trás da forma, mas na identificação do segredo dessa própria forma utilizada.

Autoridade Simbólica, Silêncio Geral e os Sujeitos Cínicos. 

É aqui que determinados canais de informação, seja pelo poder econômico ou alcance nacional, atuam ideologicamente como autoridade simbólica, conferindo a determinados esquemas de sentido o caráter de objeto sublime[2]. O acesso ao mundo da vida não ocorre, portanto, de modo direto, mas pelo sentido construído abstratamente, midiatizando-se hodiernamente a autêntica batalha quanto ao monopólio do significado. Nisso tudo, o relevante é colocar o cidadão em alto grau de abstração, levando-o à alienação, desconhecendo o próprio modo de engendramento da realidade[3]. A consequência, como alude Coelho Neto, é cada vez mais o discurso burocrático alimentando o imaginário social, isto é, aquele discurso no qual o silencio é geral[4].

Talvez o acima referido seja o questionamento que não possa ser olvidado: toda produção de sentido está intimamente ligada com o social, o político, o histórico, sendo impensável conceber qualquer fenômeno de sentido à margem do trabalho significante de uma cultura, como refere Eliseo Verón[5].

Nas discussões polarizadas dos últimos acontecimentos constata-se o contrário, com o exame isolado dos conteúdos veiculados, distanciados dos processos de produção social e de construções políticas historicamente localizadas.

Mas o mais impressionante é que tal observação não é nenhuma novidade. Os cidadãos em geral sabem da existência de forte carga de elementos externos nas notícias veiculadas sobre a boa ou má atuação de partidos políticos, só para dar um exemplo. O funcionamento da ideologia é baseado no distanciamento cínico que faz parte do jogo, quer dizer, como bem alude Slavoj Zizek “a ideologia dominante não pretende ser levada a sério no seu sentido literal.”[6]. Quando são reunidos atores altamente técnicos para defender o Lado A do Disco de Vinil, ou vice-versa, talvez não importe tanto o conteúdo transmitido. Todos são sujeitos cínicos? Para Zizek o modo de funcionamento da ideologia é cínico, pois o sujeito tem perfeita consciência da distância entre a máscara ideológica e o mundo da vida, mas, apesar disso, continua a insistir na máscara. Como alude “eles sabem muito bem o que fazem, mas mesmo assim o fazem.”

Tal é o motivo pelo qual se afirmou que a ideologia não é mais tida como a falsa consciência da realidade, mas o sistema que reivindica a verdade, “uma mentira vivenciada como verdade, uma mentira que pretende ser levada a sério.”[7]

Não se pode deixar de relacionar o entendimento referido com muito daquilo que é cotidianamente veiculado nas redes sociais: a mentira, de tantas e tantas vezes repetida, pretende ser levada a sério!

A Ilusão Fetichista e a Fantasia Ideológica. 

É difícil acreditar na sinceridade hermenêutica de alguém que possui cargo de confiança na Administração quando defende a posição governamental, bem como no ferrenho militante de oposição ao lançar ácidas críticas sobre políticas públicas do administrador.

Cuidado e serenidade para com as coisas do mundo da vida, já foi mencionado isso em outras colunas, não se podendo também desconhecer que os atores sociais são ainda guiados por uma espécie de ilusão fetichista, como refere Zizek[8]. No dia a dia os cidadãos sabem muito bem que por trás dos conteúdos polarizados e veiculados nos meios de comunicação e redes sociais há relações entre pessoas, pré-compreensões, culturas. O problema é que na prática agem como se não houvesse, são fetichistas na prática, mas o que não sabem, desconhecem, é o fato de estarem sendo guiados por uma ilusão fetichista. Para o autor citado, cuja referência é fundamental para os dias de hoje, o nível fundamental da ideologia não é de ilusão que mascara o verdadeiro estado de coisas, mas de uma fantasia (inconsciente) que estrutura a própria realidade social. É que todos estão desesperadamente tão preocupados com a verdade, e por razões justificáveis, que esquecem os processos de construção da fantasia ideológica permeando nossas relações.

Um dos grandes problemas é aceitar os sentidos transmitidos dogmaticamente, suspendendo os juízos críticos, tanto do Lado A, quanto do Lado B, e adotar no cotidiano práticas marcadas pela abstração, cujo ápice é revelado quando o cidadão já não fala mais por si, mas por meio desta instância ideologizada, retirando-se todo peso de responsabilidade de cada um.

Não tenho a menor dúvida: nós, cidadãos do mundo da vida não podemos ser reduzidos a um Disco de Vinil, com dois lados opostos, e que somente permite-se tocar pelas mãos do grande irmão que aciona os botões da vitrola e deposita a agulha na música que mais lhe agrada.

Perdeu-se a capacidade do verdadeiro diálogo, pois como disse, em relação à Administração Pública, os sentidos marcados pela ilusão fetichista de conteúdo são acentuados em demasia.

As ações coletivas, assim como auxiliam na construção de espaços democráticos, também criam rituais ideológicos, seja por meio de gestos, símbolos e até como se deve vestir. Para Zizek, a ideologia pega para valer quando consegue determinar o modo da experiência cotidiana dos cidadãos, do mundo da vida, quando se passa a aplicar e entender a interpretação de fatos históricos, sociais e políticos, de modo robotizado e banalizado por concepções abstratas de instâncias socialmente autorizadas de produção de sentido, seja de caráter institucional ou não.

Para finalizar, vale a referência ao habitus, expressão utilizada por Pierre Bourdieu, “sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas, predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro.”[9]

Portanto, as polarizações alimentadas pela fantasia ideológica e determinantes do habitus social, não devem refletir aquilo que de mais autêntico possui a verdadeira comunidade que age por princípios: todos queremos o mesmo, a vida em sociedade marcada por liberdade, igualdade, dignidade, e com efetividade dos princípios republicanos do Estado Democrático de Direito, respeitando a legalidade.

Em tempos de crise, vale mais o discurso do cuidado ideológico do que o do Disco de Vinil!


Notas e Referências:

[1] O Espectro da Ideologia. In: Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996a, p.13.

[2] Cf. ZIZEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sistema. In: Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996b, p.305.

[3] Sobre o papel da ideologia ver STRECK, Lenio. Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[4] COELHO NETO, J. Semiótica, Informação e Comunicação. 4ªed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 99.

[5] VERON, Eliseo. A Produção do Sentido. São Paulo: Cultrix, 1980, p. 173.

[6] ZIZEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sistema. In: Um Mapa da Ideologia, p. 311.

[7] ZIZEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sistema. In: Um Mapa da Ideologia, p. 314.

[8] ZIZEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sistema. In: Um Mapa da Ideologia, p. 314.

[9] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989, p. 15.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989

COELHO NETO, J. Semiótica, Informação e Comunicação. 4ªed. São Paulo: Perspectiva, 1996.

STRECK, Lenio. Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

VERON, Eliseo. A Produção do Sentido. São Paulo: Cultrix, 1980.

ZIZEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sistema. In: Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996b.

ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In: Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996a.


 

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