Ideologia e consciência ecológica (Parte 2)

22/08/2015

Por Atahualpa Fernandez - 22/08/2015

Leia a Parte 1 aqui.

“Dos cosas que me llaman la atención: la inteligencia de las bestias y la bestialidad de los hombres". Flora Tristán

E aqui chegamos ao problema seguramente mais interessante que se discute sobre esta questão: o de que, em verdade, não há razão para supor que, biologicamente falando, ademais de cambiantes e incoerentes, nossas intuições e emoções morais sejam idênticas para todos os indivíduos. Em certo sentido, parece até intuitivo que se deva presumir exatamente o contrário. Desde logo, um teorema da genética das populações nos assegura a diversidade biológica dentro de qualquer clã darwiniano. Consequentemente podemos estar razoavelmente seguros de que, no que se refere às suas raízes biológicas, nossas intuições e nossas emoções morais são, até certo ponto, diversas: nem todos os indivíduos da espécie Homo sapiens compartem exatamente as mesmas.

Mais patente ainda se faz este problema quando consideramos os valores, as intuições e as emoções morais culturalmente modeladas. Por exemplo, se há um sentido em que se pode dizer que a vergonha é uma emoção moral universal, entanto que biologicamente entranhada (Demócrito apresentou a aidesthai autón, a vergonha de si próprio, como origem e fundamento de toda a ética), de nenhuma maneira cabe dizer o mesmo da emoção moral da culpa (relativa à violação do "ter de"), que tem um caráter de todo ponto cultural e é, civilizatoriamente falando, demasiada paroquiana. De fato, nem sequer dentro de determinada cultura há de se pressupor homogeneidade nos valores, nas intuições e nas emoções morais de seus membros. As sociedades estão atravessadas por conflitos, escindidas em interesses de classe social e de outros tipos, crescentemente manifestos. É de se temer que os valores, as intuições e as emoções morais estejam, senão modelados, (mas sim) pelo menos marcados por esses interesses desencontrados.

 Mas se o cultivo da racionalidade moral (e epistêmica) consiste em boa medida em corrigir os traços e em reparar os defeitos de desenho do aparato cognitivo que nos foi legado pela biologia e pela tradição cultural, então essa diversidade, que seria fatal para uma associação de "robinsons" e, muito especialmente, para racionalizar o problema da conservação, longe de ser um inconveniente se converte em uma ferramenta de refinamento e melhora de primeira ordem em uma comunidade fundada no uso público da razão. Quero dizer, tomados por separado, os inconvenientes de dois traços cognitivos contrapostos se acumulam e resultam danosos para quem os albergam: postos em comum, dois traços contrapostos tendem a anular-se. Tomados por separado, duas ferramentas defeituosas têm rendimentos defeituosos; postas em comum, não é improvável que alguns de seus defeitos resultem complementários, e que uma sirva para reparar e melhorar a outra.

Portanto, a questão principal passa a consistir no fato de saber se é possível propor e defender, no âmbito das teorias sociais normativas e muito especialmente no que se refere ao assunto da conservação ambiental como um problema de ordem filosófico, sem se avilanar nem padecer de ingenuidade, o denominado critério do  equilíbrio reflexivo[1]. Vejamos por partes.

A diversidade biológica, o fato de que nem todos os humanos tenham exatamente as mesmas intuições moral de raiz biológica (para não falar das modeladas pela cultura) – o fato, por exemplo, de que nem todos os humanos  experimentem a emoção da vergonha ou da necessidade de conservação com a mesma intensidade – , não representa um problema insolúvel:

i) primeiro, porque não são radicalmente diversas ao ponto de impedir ou comprometer seriamente os processos de deliberação comum; e parece firme a conclusão de que isso é assim, entre outras razões de peso, pela muito evidente (razão) de que uma espécie essencialmente social como a nossa não haveria conseguido prosperar de outro modo ;

ii) segundo, porque pode, inclusive, representar uma vantagem se levamos em conta a possibilidade de que nossos valores e nossas intuições morais individuais sejam incoerentes ou estejam dificilmente articuladas; pois, das duas teses juntas (a dos "defeitos" de nossas intuições e a da diversidade das mesmas e de nossos valores) segue-se que haverá também certa diversidade na distribuição dos "defeitos", o que abre uma potente via para a mútua correlação destes (podemos servir-nos – já disse antes - de duas ferramentas diversamente defeituosas para reparar ou mitigar com uma os defeitos da outra).

Por isso o equilíbrio que se deve buscar entre nossas teorias normativas e nossas intuições morais tem de ser (um equilíbrio) reflexivo, isto é, um equilíbrio de "ida e volta". Nossas teorias normativas (ou nossos discursos filosóficos)  devem ser a satisfação de nossas intuições (é mais: em boa medida, o que tratam de fazer  é captar adequadamente o núcleo de nossas intuições); mas tampouco há de se descartar que, uma vez ordenadas e sistematizadas nossas intuições morais por uma teoria normativa (ou discurso filosófico) consistente e informativa, esta nos ajude a ver as limitações ou as incoerências dessas intuições, cominando-nos a emendá-las  e ainda a podá-las .

Deste modo, o uso público da razão e o equilíbrio reflexivo se alcançariam idealmente quando o resultado de nossas teorias ou discursos filosóficos (jurídicos, éticos, políticos, etc.) acerca da conservação ambiental acabara casando com nossas intuições, após um período mais ou menos dilatado de reflexão (pública) e emenda mútua entre livres que se reconhecem como iguais em dignidade e em direitos. Nas palavras de Habermas, e com exceção dos casos em que pode ver-se frustrado o consenso[2], é da essência desse procedimento supor, pragmaticamente, que em princípio todos quantos possam ser afetados por um discurso filosófico participem, como livres e iguais, em uma busca cooperativa da verdade, busca essa na qual a única forma legítima de coerção que se pode exercer é a coerção sem coerções que exercem os bons argumentos. Como na exposição de Rawls acerca de seu princípio fundamental de justiça como equidade, uma forma de cooperação social que, diferentemente da mera atividade socialmente coordenada (por exemplo, uma atividade coordenada por ordens emitidas por uma autoridade central única), se guia por regras e procedimentos publicamente reconhecidos que aqueles que cooperam e consentem aceitam como apropriados para regular sua conduta.

Dito isto, admitindo que os resultados de nossas teorias e discursos são suscetíveis de contrastação com a peculiaríssima classe de fatos das intuições e  emoções morais, nossas intuições, emoções e sentimentos morais, inatos e adquiridos, constituem a pedra de toque da filosofia moral. As emoções morais jogam o mesmo papel na filosofia que as observações empíricas na física. Por muito plausível que resulte uma teoria física, se contradiz a nossas observações, tanto pior para a teoria física. E por muito eloquente que seja uma filosofia moral, se a partir dela resultam conclusões ou discursos contrários a nossas intuições e sentimentos morais, tanto pior para a filosofia.

Se uma filosofia moral conduz a resultados que chocam frontalmente com minhas emoções, revisarei minha teoria, não as emoções. No melhor dos casos, chegaremos a um equilíbrio reflexivo entre teoria e sentimentos. Muitas das aberrações de nosso tempo se devem à desativação de nossas intuições e emoções morais (por exemplo, os sentimentos de compaixão e empatia) e à aplicação intransigente de teorias e ideologias aprendidas nos livros (a moral e a civilização consistem – já disse Darwin – na capacidade de abstrair, de pôr-se no lugar do outro, de sentir a angustia alheia como própria).

Humanismo expandido e transgeracional

Somente por esta via as consequências de um ato como a conservação do meio ambiente e das espécies - ou sua destruição - fazem sentir aprovação ou desaprovação. E são morais as razões porque outorgam um valor intrínseco ao ambiente e às espécies. Esta postura, particularmente no que se refere à espécie, é etiquetada em ocasiões como biocentrismo já que deslocam ou estendem o centro de gravidade da humanidade às demais espécies.

Mas há algo mais. Existem inúmeras dificuldades para poder considerar aos animais titulares de direitos, sendo que a maior delas está no fato de que não se lhes consideram ainda sujeitos morais. Alguns autores têm assinalado diversos critérios para argumentar em favor da moralidade animal: talvez porque Deus lhes deu direitos, como assegurava em 1791 o presbiteriano Herman Daggett em seu discurso sobre os direitos dos animais ["Y no conozco nada en la naturaleza, en la razón o en la revelación que nos obligue a suponer que los derechos inalienables de la bestia no sean tan sagrados e inviolables como los del hombre.”]; pela capacidade de sentir prazer ou dor (Peter Singer); por serem “pessoas em sentido amplo” (Martha Nussbaum); porque são  “seres valiosos”,  “sujeitos-de-uma-vida”, noção que abarca seres dotados da capacidade de experimentar bem-estar individual e certas capacidades e habilidades mentais (Tom Regan); pela necessidade, desde a dimensão moral do ambiente natural, de serem tratados como “pacientes morais”, pois são objeto direto de nossos deveres e obrigações (Carmen Velayos); pela capacidade de autoconsciência, capacidade de alteridade, capacidade intelectual, etc...etc.

Para o bem ou para o mal, o certo é que a discussão acerca do caráter moral dos animais, e consequentemente de se podem ou não considerar-se como "sujeitos de direito", ainda está longe de resolver-se. Mas, se bem que não se trate de uma questão simples de resolver a da moralidade animal, a segunda pergunta que formulava mais acima talvez possa esclarecer o assunto em alguma medida e indicar que excluir as criaturas das considerações morais por causa de suas espécies não está mais justificado do que excluí-las por causa da raça, nacionalidade, religião ou sexo (Bentham): "Constitui a destruição de habitats uma injustiça respeito às gerações futuras de nossa espécie?". A resposta não pode ser menos que afirmativa. As futuras gerações, ainda sem haver nascido, são titulares de direitos e um dos mais importantes é precisamente o direito humano ao meio ambiente.

Podemos continuar vivendo – ao estilo de "Don Draper" - "como si no hubiera mañana, porque no lo hay”? A toda evidência que não. É ridículo pensar que o ecossistema possa pertencer, com egoísta exclusividade, aos seres humanos que vivam o século XXI. Todos eles não serão, sobra dizer, mais que um pequeno número de organismos pertencentes a uma só espécie, que habitaram o planeta durante um breve instante. Que legitimidade “tendrían esos pocos organismos a decantar la historia de su especie, y la de tantas otras, hacia la extinción?”. (C. Cela Conde)

Nos sentimos obrigados a conservar as espécies animais e vegetais já não para garantir os direitos intrínsecos do ecossistema, senão os direitos de nossos filhos e este fato deve constituir, por si só, uma razão moral suficientemente convincente. E dado que somos a única espécie capaz de coreografar de forma ativa o futuro que queremos, o sentido de viver bem também deveria significar estar e se preocupar com tudo aquilo que seja passível de sofrimento e de destruição. Evitar, eliminar ou mitigar o sofrimento (presente e futuro), esta é a máxima, a norma moral absoluta, o imperativo categórico supremo.

Em síntese: a humanidade se debate entre a velha ideia de "progresso" e a nova ideia de "conservação do meio ambiente". Os avanços científicos das últimas décadas no ajudaram a compreender melhor as interrelações e o complexo equilíbrio que a vida mantém na natureza. A possibilidade de alterar dito equilíbrio mediante a destruição dos habitats que albergam às distintas espécies poderia chegar a supor a extinção da própria espécie humana. Razões egoístas e morais são esgrimidas pelos distintos atores a fim de conscientizar ao mundo da necessidade de uma atitude conservacionista.

A salvaguarda dos direitos morais da humanidade futura deve ser, em último termo, razão suficiente para conservar as espécies. Não há que pensar que o meio ambiente é importante "por si só" para ver que a sua destruição é um horror moral: “é suficiente considerar o que acontecerá com a humanidade se as espécies e as florestas forem arruinadas”. A justiça, a imparcialidade e a honradez exigem: (i) abraçar os interesses das gerações futuras de uma forma prioritária, equilibrada e implacável;  (ii) expandir a “comunidade moral não apenas através de espaço e tempo, mas através das fronteiras das espécies também” (J. Rachels); e (iii) aceitar a triste, a banal verdade: que moldeamos nossa história ainda quando, segundo a fórmula consagrada, nem sequer sabemos que história estamos moldeando.

Depois de tudo, como assinalou Goethe, em um mundo que não lhe pertence, a natureza é para o ser humano “el gran calmante del alma moderna”.


Notas e Referências:

[1] Desde logo, os participantes na empresa cognitiva, sobre compartir um conjunto de objetivos, compartem também – e sabem que compartem, é publicamente notório que compartem – um conjunto de regras do jogo. Por outra parte, à justificação dessas regras  chega-se por meio de um equilíbrio reflexivo, e não há equilíbrios reflexivos "robinsonianos", não há equilíbrios reflexivos sem o uso público da razão: nemo solus satis sapit.  Esboçar  e contrastar intuições e práticas, de um lado, e princípios, valores e teorias sistematizadas, de outro, leva iniludivelmente a posta em comum dessas intuições e práticas e a livre discussão pública sobre o melhor modo de capturá-las conceitualmente e de justificá-las - ou criticá-las - normativamente. Em uma sociedade moderna, a gente exige não só teorias e/ou decisões dotadas de autoridade, senão que também pede razões. A responsabilidade de oferecer justificação é, especificamente, uma responsabilidade de maximizar nossa liberdade e o controle público da razão. Como recorda D. Dennett, “la articulación de razones es la clave para nuestra libertad. Podemos ver un "rastro fósil" de lo que comento en la palabra que utilizamos para identificar a aquellos con libre albedrío: los llamamos "responsables" - que son capaces de responder, razonablemente, a razones. Si usted le dice a su perro por qué no debe correr en la calle, responderá, pero con un ladrido, no puede comprenderle ni exigirle razones”.

[2] Parece ser que o melhor caminho para solucionar o problema de "como e em que ponto" se alcançaria um consenso válido e legítimo intersubjetivamente será o de recorrer aos processos de deliberação pública racional, que põem em comum nossas diversas e "defeituosas" intuições e emoções morais e as corrigem e reparam, muito embora por este processo o acordo possa ver-se frustrado em ao menos dois casos: i) quando a divergência das intuições morais e interesses é demasiado radical, ou ii) quando as intuições morais e interesses estão demasiado ou fortemente marcados por motivos pugnazes. No primeiro caso, as intuições morais e os interesses podem apresentar uma diversidade tal, que torne impossível a deliberação racional entre comunidades muito distintas - não digo que seja assim, mas, se assim ocorrera, então haveria que restringir a uma só  comunidade a aspiração de consenso. No segundo caso, mas ainda restrigindo-nos a um só tipo de comunidade com  determinada tradição histórico-cultural, se nos apresenta o problema da divisão da própria comunidade em subgrupos de interesses encontrados e ainda hostis. O que nos coloca, aqui, o problema de que as intuições e emoções morais da gente possam estar irreparavelmente marcadas por seus interesses. Ora, não há deliberação pública racional possível, como tampouco viabilidade intersubjetiva de consenso, nem em condições de radical conflito de  interesses aberto nem no bellum omnium contra omnes. O único que cabe dizer aqui é que estas situações  extremas – mas nem muito menos infrequentes – caem fora do espaço das condições de possibilidades do consenso, pelo que sai sobrando nelas qualquer teoria acerca de discurso prático normativo baseado no consenso. Nestes casos, o resultado de uma teoria fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem por meio de uma verdade que não convence a todas as partes participantes do discurso – e a verdade que não convence não passa, em última análise, de "força bruta". Assim que a estratégia a seguir para tornar viável e operativo um consenso em relação com as teorias e discursos razoáveis parece ser a de buscar pontos de acordo ou de equilíbrio material entre exigências contrapostas, isto é, entre as intuições morais e os interesses que consubstanciam as argumentações  que tratam de fundamentar discursos aceitáveis. E isto se daria mediante um processo cognitivo de "cedência recíproca" ou de "mútua correção", no sentido de congraçar as intuições morais e os interesses aparentemente contraditórios, desde que abdicaram da pretensão de serem considerados de forma absoluta.


 

Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post:  Gideon Wright  // Foto de:  Gideon Wright // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guymasavi/15224570414 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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