Ideologia é um termo que comporta muitos conceitos. Dado que foi utilizado por autores importantes, cada um deles deixou sua marca no vocábulo. Então, o uso do termo pede uma proposição de acordo semântico que estabeleça seu significado.
Defino ideologia como um sistema organizado de ideias que explica e justifica o mundo. Como todos pertencemos a um grupo social, o sistema organizado de ideias que nos alcança e nos constitui é o sistema do grupo social a que pertencemos.
Do Houaiss: “sistema de ideias sustentadas por um grupo social, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos”.
Eu acrescentaria: relacionais, recreativos, familiares, sexuais, tudo. Tudo é ideológico, inclusive a ideia de verdade. O meu conjunto de convicções, portanto, deriva do sistema ideológico que me alcançou (ou que me “educou”), é delimitado.
Não, há, pois, eternidade ou universalidade ideológica; ideologia é coisa de dado tempo e de dado lugar. E ninguém é infenso à ideologia do seu grupo social. Pode-se dizer: eu não escolhi uma ideologia, mas uma ideologia me constituiu.
O “problema” da ideologia está na sua compreensão como modo “contaminado” de pensar. É comum indivíduos e grupos considerarem concepções de mundo diversas das suas como ideológicas no sentido de consciência equivocada de mundo.
Muitos consideram suas subordinações a certas ideias como decisão racional, neutra, correta; mas, já, as sujeições dos outros a outras ideias são havidas por “ideológicas”, viciadas, interesseiras. É que não aprendemos a suspeitar de nós mesmos.
Nos anos 1950\60 (publicado em Cabide Vintage) ensinava-se às mulheres: “A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas. Nada de incomodá-lo com serviços ou notícias domésticas” (Jornal das Moças, 1959).
Circunscritas à casa, embonecadas, servis: “O lugar da mulher é o lar. O trabalho fora de casa a masculiniza” (Revista Querida, 1955); “Sempre que o homem sair com os amigos, espere-o linda, cheirosa e dócil” (Jornal das Moças, 1958).
E castas: “A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar uma mulher por não ter resistido às experiências pré-nupciais, mostrando que era perfeita e única, exatamente como ele idealizara” (Revista Cláudia, 1962).
A partir dos anos 1960 (nas injunções históricas do pós-Segunda Guerra), muitas mulheres perceberam a armadilha que significava o lugar social que lhes estava reservado, e começaram a discutir o tema. Nascia o feminismo atual.
Seu aviso essencial: se a mulher tinha (e tem) uma condição biológica por natureza, isso não a remetia ao cumprimento servil da condição social que ideologias religiosas ou patriarcais lhe reservavam. Se a fêmea é natureza, a mulher é gênero, cultura.
Mais: se houvesse papéis de gênero (por “acordos” sociais, jamais por determinação natural), não haveria assimetria valorativa entre as atribuições da mulher e as do homem. Em resumo, o feminismo deslegitimava a hierarquia entre sexos.
Há, pois, sim, ideologia de gênero, mas não como deturpação da realidade. Existe ideologia de gênero como articulação de discursos e práticas que dão consistência à independência da mulher.
Essa ideologia de gênero que contraria os interesses da tradição machista ainda não se estabeleceu hegemônica, mas já se espraiou. Muito menos homens perseveram nas tantas machezas que lhe ensinaram.
Gosto-me masculino, mas torço para que mais se baralhem “coisas de homem” e “coisas de mulher”. Essa mistura é justa divisão do mundo e prazerosa repartição da vida. Bem melhor trocar ideias que mandar, não?
Imagem Ilustrativa do Post: Ride stripe // Foto de: Florent Chretien // Sem alterações
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