Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
“(...) Uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado – o devido processo legal – impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto. suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do Estado de Direito”[1].
O trecho acima foi retirado da exposição de motivos do Projeto de Lei nº 1.446/91, que, posteriormente, deu origem à Lei Federal nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). Infelizmente, o cenário apresentado pelo à época Ministro da Justiça não se alterou substancialmente. Muito pelo contrário, os escândalos de corrupção e malversação do dinheiro público são recorrentes e alimentam diariamente os noticiários. A diferença é que, há quase trinta anos, há um mecanismo para combatê-los no âmbito jurisdicional: a ação civil por ato de improbidade administrativa.
Quando da promulgação da Constituição Federal, buscou-se estabelecer uma ferramenta para reforçar a repressão de condutas de agente públicos que ofendiam os princípios administrativos previstos no caput do art. 37 da CF/88.
A ação de improbidade administrativa se demonstrou um instrumento eficiente na busca desse fim. Por exemplo, em pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça após 20 (vinte) anos da entrada em vigor da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), identificou-se um total de quase 8.000 mil condenações e o pagamento de aproximadamente R$2,11 bilhões de reais decorrentes de tais condenações[2].
Não há como ignorar a importância da referida norma no combate à corrupção e na construção de um modelo de administração pública pautado na probidade, compreendida aqui, como integridade, moralidade e todos os outros valores consubstanciados na Constituição.
Entretanto, a aplicação da LIA sempre foi objeto de discussões tanto no âmbito doutrinário como no âmbito dos precedentes normativos formalmente vinculantes e decisões judiciais que foram exarados pelas Cortes Supremas brasileiras ao longo do tempo. Aqueles que figuravam no polo passivo das demandas sempre questionaram várias de suas disposições legais. A jurisprudência oscilou entre ampliação e restrição dos institutos, mas a política tem seu próprio tempo e seus próprios meios. O Estado Democrático Constitucional deve lidar com essa dialética entre poderes instituídos, o interesse do povo e os valores constitucionais. Assim, foi se formando um movimento que resultou em uma revisão estrutural da Lei de Improbidade Administrativa, por meio da Lei Federal nº 14.230/21.
As alterações são diversas e recentíssimas. Passagens contraditórias e confusas. Introdução de temas que não eram objeto de preocupação, como o bis in idem. Conceituação do dolo. Direito administrativo sancionador. Claramente procura-se ampliar a segurança jurídica e proteger os réus da litigância frívola (ou não) com um objetivo garantista (não só para o réu, mas principalmente para ele). A pergunta é: será que se trata de um garantismo completo ou garantismo apenas para os requeridos?
Neste texto, o enfoque será dado exclusivamente para o acordo de não persecução cível – ANPC. Essa mudança deve ser encartada na virada geral do ordenamento jurídico brasileiro para a justiça multiportas e o estímulo à autocomposição.
Durante muito tempo, era vedada a transação nas ações de improbidade administrativa. Todavia, apesar da aparente vedação que constava no art. 17, §1º da Lei 8.429/92, já se defendia: (a) a possibilidade de formalização de autocomposição (negócio jurídico atípico), desde que mais efetiva para tutela do bem jurídico; (b) e a possibilidade de compromisso de ajustamento de conduta na improbidade administrativa, conforme posteriormente confirmado pelo art. 1º, §2º da Resolução 179 do Conselho Nacional do Ministério Público[3].
Em 2019, a partir de um movimento de alteração legislativa que objetivava aumentar a eficácia do combate ao crime organizado e à corrupção – e que ficou conhecido como Pacote Anticrime, surgiu o acordo de não persecução cível como negócio jurídico típico. A menção expressa à possibilidade de realização do acordo de não persecução cível consolidou o movimento de estímulo à solução por autocomposição na improbidade administrativa iniciado há alguns anos.
A mera menção legal permitindo a celebração do ANPC fez com que os diversos ramos do Ministério Público se movessem, visando regulamentá-lo. Uma série de atos normativos foram editados[4] e ainda se aguarda uma orientação por parte do CNMP[5].
Todavia, agora, o legislador foi além da simples previsão de celebração, trazendo uma série de disposições relacionadas a aspectos gerais envolvendo o ANPC no art. 17-B da LIA. Algumas delas chamam a atenção por se diferenciarem das regulamentações que vinham sendo construídas internamente pelo Ministério Público. Escolheu-se quatro para tratamento neste espaço. Três deles relacionados a requisitos procedimentais do acordo que foram estabelecidos pelo legislador e outro envolvendo a participação do Tribunal de Contas.
Quanto aos requisitos procedimentais, é necessária a fixação de uma premissa. A falta de algum deles, por si só, não impede nem a validade, nem a eficácia extrajudicial do acordo. Torna-se necessária a demonstração de efetivo prejuízo para que seja reconhecida uma possível nulidade. Aplica-se a concepção do conhecido brocardo “pas de nullité sans grief”, previsto expressamente no art. 282, § 1º, do CPC.
Fixada tal premissa, passa-se à análise.
Primeiro, impôs-se como requisito procedimental do ANPC uma obrigatória homologação judicial, independentemente de o acordo ser firmado antes ou depois do ajuizamento da ação (art. 17-B, § 1º, III).
A regra tem aspectos positivos e negativos.
Por um lado, mesmo que não fosse necessária a homologação judicial para que o ANPC surtisse efeitos concretos, garante-se ainda mais segurança jurídica, no que diz respeito ao sub-estado ideal da confiabilidade[6]. Obtêm-se um acordo que passará pelo crivo judicial, o que lhe dá ainda mais legitimidade e quase elimina qualquer chance de modificação ou questionamento em juízo de sua validade pelos celebrantes.
Por outro lado, a homologação judicial requer muita cautela, para que o juízo não invada a legitimidade do Ministério Público em decidir por celebrar ou não o ANPC, como titular exclusivo da ação civil por ato de improbidade administrativa. Não há direito subjetivo à celebração do acordo. O Parquet deve celebrá-lo quando verificar o pleno atendimento do interesse público. Um elemento que poderá ser objeto de questionamento é a possibilidade de análise do mérito e suficiência do acordo pelo julgador no momento da homologação. O juiz deve ter aqui uma postura autocontida, normalmente a análise do órgão judicial acerca do ANPC deve se limitar apenas aos elementos de existência, validade e eficácia do referido negócio jurídico.
Segundo, também se estabeleceu como requisito procedimental do ANPC à sua aprovação pelo órgão do Ministério Público responsável por apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se o acordo for celebrado antes do ajuizamento da ação (art. 17-B, § 1º, II).
A necessária homologação (aprovação) pelo órgão revisor do acordo tomado na fase extrajudicial é um dos temas mais controvertidos do ANPC. As soluções até agora aprovadas em ramos do Ministério Público que possuem ato normativo para regulamentar o ANPC oscilam entre: (a) a atribuição de eficácia somente após a homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público; ou (b) a atribuição de eficácia a partir da celebração do acordo, sem prejuízo da homologação, pelo CSMP, do arquivamento em decorrência do acordo realizado.
Observa-se que a nova LIA adotou primeira solução, o que se crê não ser a opção mais adequada.
O que deverá ser homologado pelo Conselho Superior, como se infere da Lei da Ação Civil Pública (art. 9º, §1º ao §4º), é o arquivamento implícito (parcial ou total) que decorre da realização do acordo. Ou seja, há um dever de informar o CSMP sobre o acordo, para que haja controle da ocorrência ou não do arquivamento implícito e de qual parcela do objeto investigativo foi arquivada com a celebração.
Além disso, após a obrigatória homologação judicial, o ANPC possuirá eficácia de título executivo judicial, sendo oponível à terceiros. O que reforça a desnecessidade de homologação pelo Conselho Superior (MPE) ou pela Câmara de Coordenação e Revisão (MPF).
Os problemas estão relacionados à efetividade do acordo, pois seus efeitos práticos poderiam quedar dependentes desta dupla aprovação, e a preservação da independência funcional do membro do Ministério Público que apresentou a proposta de ANPC para homologação.
Em relação a efetividade é possível defender medidas cautelares administrativas e até mesmo antecipação dos efeitos do acordo, como a devolução do valor a ser ressarcido aos cofres públicos, revisão dos atos administrativos e a cessação da conduta. Cláusulas dessa natureza podem ter eficácia imediata pois apenas beneficiam o interesse público. Ciente o investigado e seu advogado de sua provisoriedade.
Em relação ao segundo tema é possível traçar um paralelo com o que acontece quando o arquivamento do inquérito civil não é homologado pelo órgão de revisão. Nestas hipóteses, em respeito ao princípio da independência funcional (art. 127, §1º, CF/88), o membro que submeteu a decisão de arquivamento pode escolher se continuará a atuar ou não no procedimento (art. 10, § 4º, I, e 11, caput, da Resolução nº 023/2007 do CNMP).
Caso a proposta de ANPC não seja homologada pelo órgão de revisão, o membro do Ministério Público que a propôs não poderá ser obrigado a continuar atuando no procedimento administrativo.
Terceiro, um último requisito procedimental do acordo é a oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação (art. 17-B, § 1º, I). Essa é uma previsão legal que levanta diversas indagações.
Ao se utilizar a expressão “ente federativo” se restringiu a incidência da norma apenas em face da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios? Ao que parece, não deve existir a referida limitação, devendo haver a oitiva de todos os órgãos, entes e entidades mencionados nos parágrafos 5º e 6º do art. 1º da LIA.
Outra dúvida surge sobre o que se pretende dar ciência à pessoa jurídica interessada: é sobre a existência da investigação ou da ação? É sobre as tratativas para a celebração do ANPC? É sobre o valor do ressarcimento ao erário? Ou é sobre possível minuta do ANPC? A resposta mais adequada parece ser aquela que considerada todas as alternativas acima, portanto, o momento limite ideal é uma vez elaborada a minuta e aprovada previamente pelo investigado e seu defensor. Lembramos que a negociação se dá entre o Ministério Público e o investigado ou demandado e seu defensor (art. 17-B, § 5º).
Por mais que a pessoa jurídica interessada não tenha mais legitimidade para ajuizar a ação civil por ato de improbidade administrativa (art. 17, caput) ou então para celebrar um ANPC (art. 17-B, caput), ela deve ser cientificada da apuração extrajudicial e judicial dos atos de improbidade e, principalmente, da possível celebração de acordo de não persecução cível.
O legislador não trouxe quais seriam os poderes dessa pessoa jurídica diante da oitiva realizada, mas, pode-se cogitar sua participação: (i) no acompanhamento da sanção de perda da função pública a ser aplicada ao agente ímprobo (p. ex., com a informação acerca da efetivação da sanção por parte de ato voluntário do próprio agente ímprobo); (ii) na reversão em seu proveito dos valores pagos a título de ressarcimento do dano ao erário causado (p. ex., com a indicação de conta bancária para depósito); (iii) na identificação de outros agentes públicos ímprobos a partir de um ANPC de colaboração[7], entre outros.
Quarto, quando for necessário apurar a quantificação do valor a ser ressarcido pelo agente ímprobo, estabeleceu-se que deverá ser realizada uma oitiva do Tribunal de Contas (TC) competente, que deverá se manifestar no prazo de noventa dias, com a indicação dos parâmetros utilizados (art. 17-B, § 3º).
A regra é boa. Por mais que muitos Ministérios Públicos possuam corpo técnico qualificado para realizar a apuração do valor exato do ressarcimento ao erário, a participação de um órgão público de controle orçamentário diminui, em muito, as chances de controvérsia ou imbróglio sobre esse quantum. Especialmente sua insuficiência.
Todavia, a oitiva da Corte de Contas não significa que o Parquet está obrigatoriamente vinculado aos cálculos apresentados pelo Tribunal de Contas. Os agentes técnicos ministeriais poderão se manifestar de modo diverso, cabendo ao órgão de execução do Ministério Público a tomada de decisão, sempre de forma fundamentada, de qual valor irá seguir para fins de ressarcimento ao erário.
Além disso, ouvir o Tribunal de Contas não implica que ele deverá elaborar primeiro esses cálculos sobre o valor a ser ressarcido. Por um lado, os valores podem ser apresentados pelas partes envolvidas no ANPC, seja pelo Ministério Público, seja pelo requerido, após chegarem a um consenso, sendo o trabalho do TC a simples ciência. Por outro, em situações que demandem simples cálculo aritmético, o próprio Ministério Público poderá encaminhar a consulta ao Tribunal de Contas já apresentando o valor exato a ser ressarcido, cabendo ao TC apenas a sua confirmação ou impugnação. Aqui, aplica-se analogicamente o previsto no parágrafo 2º do art. 509 do CPC[8].
Como se pôde ver acima, as alterações realizadas na Lei de Improbidade Administrativa trouxeram consigo uma série de impactos ao instituto do acordo de não persecução cível.
Alguns deles podem ser diagnosticados e solucionados com antecedência. Não é necessário aguardar as cenas dos próximos capítulos. O Ministério Público deve se colocar como diretor e ator principal dessa série, debatendo, dialogando e estabelecendo as diretrizes e interpretações necessárias para garantir uma adequada utilização do acordo de não persecução cível em âmbito nacional.
A autocomposição é ferramenta fundamental no combate à corrupção e não pode ser “prejudicada” pela nova lei, a interpretação da lei deve ser sempre favorável à eficácia imediata (ainda que provisória) e à efetividade dos acordos.
Notas e Referências
[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=192235. Acesso em: 27 de outubro de 2021.
[2] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/condenacoes-por-improbidade-chegam-a-quase-8-mil-em-todo-o-pais/. Acesso em: 27 de outubro de 2021.
[3] Para um histórico dessa evolução conferir: CABRAL, Antonio do Passo. Pactum de non petendo: a promessa de não processar no direito brasileiro. Revista de Processo, v. 305, Jul./2020, p. 17-44; DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. Vol. 4, 15ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 404.
[4] Atualmente, diversos ramos do Ministérios Públicos possuem atos normativos nos quais se regulamenta o acordo de não persecução cível, por exemplo: Resolução COPJ nº 009/2021 (MPES); Resolução nº 1.193/2020-CPJ (MPSP); Resolução CSMP nº 01/2020 (MPPE); Resolução nº 068/2020-OECPJ (MPCE); Resolução nº 080/2020-CSMP (MPMT); Resolução CPJ Nº 040/2020 (MPPB), entre outros.
[5] Já foi apresentada Proposta de Resolução do ANPC no âmbito do CNMP, vale cf.: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/14410-conselheiro-propoe-regulamentacao-do-acordo-de-nao-persecucao-civel-no-ministerio-publico. Acesso em: 28 de outubro de 2021.
[6] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 138.
[7] Há duas espécies de acordo de não persecução cível. Acordo de pura reprimenda para aplicação de sanção: hipótese em que o estabelecimento de obrigações equivale às sanções que decorreriam de uma condenação judicial (aplicação das mesmas sanções de forma antecipada), vinculando as partes a partir do momento de celebração do ato. Acordo de colaboração: hipótese em que, além da aplicação da sanção, deve se incluir compromissos adicionais como termo de confidencialidade, necessidade de fornecer provas comprobatórias do que foi declarado e, se efetiva com a colaboração efetiva e voluntária com a investigação e com o processo.
[8] Art. 509. § 2º Quando a apuração do valor depender apenas de cálculo aritmético, o credor poderá promover, desde logo, o cumprimento da sentença.
Imagem Ilustrativa do Post: CORRESPONDENTE JURÍDICO - MT/ RJ // Foto de: JusCorrespondente // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/juscorrespondente/4359766301
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/