Coluna ASSET/SC - Associação de Estudos Tributários de SC
Os impostos submetidos ao princípio da não cumulatividade[1], dos quais são exemplos o ICMS e o IPI, têm gerado, ao longo do tempo, um campo de discussões e interpretações controvertidas com relação à dimensão do componente credor, visto que o legislador persiste na missão inglória de editar normas lacunosas e complexas, não deixando claro quais as entradas ou insumos hábeis a gerar crédito na conta de compensação para determinar o montante devido.
Neste artigo pretende-se fazer um corte metodológico para tratar especificamente da possibilidade de manutenção de crédito do ICMS sobre as operações de aquisição de materiais de uso e consumo[2] com amparo na ressalva constitucional prevista no art. 155, § 2º, X, “a”, nas operações de exportação, com imunidade tributária.
Por autorização da Constituição Federal, art. 155, § 2º, XII, “c”, cabe à lei complementar disciplinar o regime de compensação do imposto, embora haja autores que preguem a dispensabilidade de lei complementar para disciplinar esta matéria, sugerindo o trato exaustivo pela Constituição Federal.[3]
A lei que veio dar o complemento normativo à Constituição Federa é a LC nº 87/96. Esta Lei, trata do sistema de compensação nos artigos 19 a 23 e 33, mas para a análise que aqui se pretende desenvolver, basta colocar em evidência as disposições dos arts. 20 e 33.
“Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.” (Grifei).
A abrangência do direito ao crédito previsto no dispositivo transcrito revela uma aproximação com o que a doutrina denomina de crédito financeiro, assim entendido pela sua abrangência para todas as entradas de bens e mercadorias conectados à atividade produtiva da empresa e não se restringindo aos bens ou mercadorias objeto do negócio (mercadorias para revenda e matérias-primas).
Ocorre, no entanto, que motivado pelo receio de perda de arrecadação, os Estados obtiveram êxito em sensibilizar o legislador complementar para que fosse adiada, através da edição de leis complementares supervenientes, a eficácia normativa com relação ao crédito decorrente das operações de aquisição de materiais destinadas ao uso e consumo (art. 33, I). Desta forma, pelo sistema vigente, sem adentrar na possível inconstitucionalidade deste adiamento, as operações de entrada de material de uso e consumo não são hábeis para a geração de crédito de compensação, vedação que persistirá, pelo menos, até 2020.
A polêmica que se instalou é com relação à manutenção do crédito decorrente da aquisição destes materiais de uso e consumo quando relacionados a operações de exportação, com imunidade do ICMS. O que se discute é se as operações de aquisição de materiais destinados ao uso e consumo, embora ainda não gerem crédito de ICMS pelo sistema de compensação vigente, podem habilitar a geração de crédito a ser mantido nas operações de exportação.
Dispõe o art. 155, § 2º, X, “a”, da Constituição Federal:
“X – não incidirá [ICMS]:
- Sobre operações que destinem mercadorias para o exterior [...], assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações [...] anteriores;”
De forma específica, a indagação é sobre a ressalva constitucional que permite a manutenção do crédito com relação às operações anteriores quando as operações subsequentes de exportação não são tributadas.
Cabe lembrar que esta expressa permissão constitucional para a manutenção do crédito é necessária para quebrar a regra do sistema, segundo a qual, a isenção ou não incidência nas operações de saída impõe a anulação do crédito relativo às operações anteriores, salvo disposição legal em contrário (art. 155, § 2º, II, “b”, CF).
Esta matéria já está no STF, RE nº 704815, para o qual se reconheceu repercussão geral, pendente de julgamento.
Para levar a discussão ao Poder Judiciário, firmou-se a tese de que a EC nº 42/2003 teria afastado a incidência do art. 33, I, da LC nº 87/96 (dispositivo que posterga o direito ao crédito com relação ao material de uso e consumo), e que na exportação haveria de se reconhecer o denominado crédito financeiro na ressalva de sua manutenção, abrangendo não só as matérias-primas, mas também os materiais usados na atividade de apoio, como os de uso e consumo.
A tese me parece equivocada. Fixa-se o intérprete por demais no comando constitucional da permissão de manutenção do crédito, de forma isolada, sem contextualizá-lo no sistema normativo da compensação vigente.
A norma permissiva de manutenção do crédito com relação às operações ou prestações anteriores tem por objetivo quebrar a regra da exigência de estorno de créditos nas hipóteses em que as operações subsequentes não são tributadas. Portanto, este estorno se restringe aos créditos permitidos pelo sistema (que não engloba o crédito com relação ao material de uso e consumo). Logo, a ressalva (não estorno) deve se conter nos limites da norma ressalvada que traduz o regime de crédito vigente, sem impor qualquer ampliação neste direito de compensação.
Avançando nesta análise, resta evidente que a ressalva constitucional para a manutenção do crédito deve ser interpretada no contexto, juntamente com a LC nº 87/96, lei que recebeu do próprio constituinte a prerrogativa de disciplinar o regime de compensação. Se esta lei, com a autoridade que lhe foi conferida, instituiu um determinado regime de compensação, do qual é excluída a aquisição de matéria de uso e consumo por enquanto, este regime também vale para a ressalva da manutenção do crédito na exportação.
É evidente que o constituinte derivado, ao prescrever a manutenção do crédito nas exportações, fazendo-o através da mencionada EC nº 42/2003, estava recepcionando o regime de compensação vigente no sistema, regime este que não admite o direito ao crédito com relação ao material de uso e consumo. Houvesse a pretensão de dar maior abrangência ao direito de crédito nas exportações, caberia ao legislador fazê-lo, de forma explícita, pois que seria uma exceção à regra.
A discussão, no entanto, ganharia maior densidade jurídica se abordasse o possível conflito da LC nº 87/96, com a Constituição Federal, no tocante ao art. 33, que posterga a eficácia do direito ao crédito sobre a aquisição de matéria de uso e consumo entre outros itens, norma esta que não se compatibiliza com o ato de disciplinar o regime de compensação, extrapolando assim, a vocação normativa conferida pelo constituinte. Mas esta matéria não é objeto desta análise.
Portanto, segundo o regime vigente, nas saídas não tributadas, exige-se o estorno do crédito com relação às operações anteriores, não se cogitando as operações de aquisição de materiais destinados ao uso e consumo. Esta regra foi quebrada pela mencionada Emenda Constitucional, para permitir a manutenção do crédito nas operações de exportação.
Não se pode permitir a manutenção do crédito sobre operações não objetos de estorno. Por conseguinte, parece-me ilógica a tese defensora da manutenção do crédito derivado das operações de materiais destinadas ao uso e consumo nas operações de exportação com imunidade tributária. Diante desta clareza, penso que o caso sequer deveria ter repercussão nos tribunais.
Notas e Referências:
[1] Segundo o art. 155, § 2º, I, da CF, o ICMS será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores.
[2] Deve-se entender por material de uso e consumo aquele destinado à atividade meio do estabelecimento, servindo o setor administrativo, sem vinculação direta ao setor produtivo.
[3] Para Roque Antônio Carrazza o princípio da não cumulatividade do ICMS independe de lei complementar para irradiar todos os seus efeitos (ICMS, 17 ed.,Malheiros, p. 506).
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