Houve homens “bruxos” na inquisição ou só mulheres? A história de Dietrich Flade, o juiz incômodo que foi queimado

30/12/2021

Coluna Cautio Criminalis

Em 2020 e 2021 dediquei-me substancialmente a estudar personagens judiciários – juízes, promotores, inquisidores e gente do gênero – que tivessem sido muito funcionais ao poder punitivo e à legitimação de massacres – de mulheres, de políticos progressistas, de índios, de judeus, de negros, enfim – nos mais diversos modelos políticos e nas mais variadas quadras da história.[1] Claro que não foram poucos. Andando por aqui e por ali, entretanto, também topei com alguns que, em certo tempo, foram disfuncionais ao poder punitivo. Ou seja, gente que, a despeito de fazer parte do sistema penal, atuou contra os seus interesses.

Um desses personagens com os quais me deparei foi Dietrich Flade, um antigo magistrado queimado como “bruxo” na inquisição alemã. Flade fora um dos pouquíssimos homens – se fizermos um comparativo com o número escandaloso de mulheres que sofreram essa perseguição genocida – nessa condição.

Dietrich Flade fora um juiz que ostentava uma alta posição judiciária numa corte civil durante a inquisição de Trier, na Alemanha (1581 – 1593), um jurista aparentemente bastante respeitado que chegou a ocupar o posto de reitor na Faculdade de Direito da Universidade de Trier. Como magistrado, foi o juiz do julgamento contra Braun Grethe, em 1582, que provavelmente resultou em sua pena de banimento. Consta, entretanto, que não era um grande entusiasta da caça às bruxas (a literatura disponível, e isso não é uma surpresa, dá conta de que, na sua classe, era extremamente isolado nesse modo de ver),[2] que tinha posições contra a tortura e tratava os acusados de maneira razoável (para os padrões de seu tempo), bem como se opunha a inquisidores muito descomedidos.

Em 1584, um desses homens, Johann Zandt von Marll, responsável direto por mais de uma centena de execuções em Pfalzel, torna-se governador e põe-se determinado a retirar do caminho o juiz moderado, esse obstáculo incômodo e insuportável. Acusações em desfavor de Flade começaram a surgir em meados de 1587, dando conta de que ele estaria envolvido em um plano para assassinar, com magia, o Elector de Trier, que havia caído doente alguns dias antes – a doença teria sido infligida por feitiçaria por Flade. Cuidava-se de Johann von Schönenberg, que, na qualidade de arcebispo, presidiu a inquisição no local. Em seguida, uma enxurrada de “denúncias”, sobretudo de mulheres tidas por bruxas (delações premiadas), começou a aparecer contra ele. E, claro, uma vez abertos os portões, a coisa ficou enorme e estava ali o inimigo da vez.

Perante von Marll (que coincidência!), Margarethe de Euren, acusada de feitiçaria, prestou uma “confissão/delação” dando conta de que Dietrich Flade era visto nos sabbats, que chegava em uma carroça dourada e que conspirava para a destruição dos cultivos da cidade, o que ele negava. Também era um canibal, diziam, e, junto com outros, comia corações de bebês, um ritual que impediria que bruxos capturados confessassem durante os julgamentos (e se confessassem seria porque não teriam comido o suficiente).[3] Em razão do estrato social que ocupava – sobretudo pelo cargo público -, seu caso recebeu atenção enorme e publicização extrema.[4]

Martín Del Rio, um conhecido demonologista da época – Raúl Zaffaroni dirá que eles foram os primeiros criminólogos de todos -,[5] construiu o discurso sobre como o caso de Flade era um exemplo do mal que bruxos poderiam fazer se obtivessem posições de destaque na ordem social e sobre como havia vários deles escondidos nos centros de poder; bem como acerca do modo pelo qual eles utilizavam esse protagonismo e sua influência para proteger os servos do diabo.[6] Hoje sabe-se que, na realidade, o contrário era verdadeiro: não havia bruxos se utilizando do poder, mas as acusações, elas sim, não raro eram ferramentas de grupos e personagens específicos para alcançar posições sociais favoráveis ou por motivo de vingança política.[7] E, além disso, se consubstanciavam em ferramentas importantes numa estrutura de gestão de coerção institucionalizada para reafirmar a ordem social da época, as suas hierarquias e as suas relações econômico-produtivas, bem como controlar os dissidentes e os questionadores. Em suma, não havia bruxos se utilizando sorrateiramente do poder. Havia um poder se utilizando sorrateiramente de “bruxos” e “bruxas” (muito mais “bruxas”, claro).

Então que mais era necessário? Em 1589, o juiz Dietrich Flade, após confissão obtida por tortura, foi julgado bruxo e, condenado à fogueira (mas com a misericórdia de ser estrangulado antes), foi executado na mesma Trier em que havia judicado[8] e na qual, como juiz, tinha se oposto ao modo de gestão do poder punitivo da época.

A história de Flade é capaz de nos mostrar que um juiz ou um promotor ou um policial ou um inquisidor ou quem quer que seja é muito importante e muito poderoso e muito respeitado e muito temido e muito relevante enquanto seja funcional ao poder punitivo. A partir do momento em que deixa de ser, perde a cobertura política (“o poder punitivo criminaliza selecionando [...] alguém que, de modo muito excepcional, ao encontrar-se em uma posição que o tornara praticamente invulnerável ao poder punitivo, levou a pior parte em uma luta de poder hegemônico e sofreu por isso uma ruptura na vulnerabilidade)[9] e salve-se se puder, pois estará no mesmo raio de ação em que o poder punitivo, outrora através dele, colocou outros criminalizados, fossem pretos, pobres, prostitutas, políticos progressistas, comunistas, judeus, “corruptos” ou quem seja a bola da vez.

Cuidado, você, todo poderoso/toda poderosa aí, para não ser a próxima. Feliz 2022 ao leitor!

              

Notas e Referências

[1] Sobre isso me dediquei também no estudo preliminar que fiz ao livro Bem-vindos ao Lawfare, de Raúl Zaffaroni, Cristina Caamaño e Valeria Vegh Weis, disponível em versão brasileira pela Editora Tirant lo Blanch.

[2] BURNS, William E. Witch hunts in Europe and America: an encyclopedia. London: Greenwood Press, 1959. pp. 93 – 94.

[3] Cf. BRIGGS, Robin. Witches and neighbours: the social and cultural context of european witchcraft. New York: Penguin, 1996.

[4] BURNS, William E. Witch hunts... (op. cit.).

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: Spee e a cautio criminalis. 1ª ed. Sâo Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

[6] Cf. a versão traduzida de DEL RIO, Martín. Investigations into magic. Edited and translated by P.G. Maxwell-Stuart. Manchester-New York: Manchester University Press, 2009.

[7] BURNS, William E. Witch hunts… (op. cit.). p. 2.

[8] Para um estudo completo e baseado em fontes primárias e documentos originais, cf. BURR, George Lincoln. The fate of Dietrich Flade. New York: G. P. Putnams, 1891.

[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo [et. al.]. Direito penal brasileiro, vol. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.

 

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