HOMOFOBIA: PRECISAMOS DISCUTIR NOSSA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL  

29/06/2019

 

Quando um casal encontra-se diante de um problema conjugal e decide tentar resolvê-lo, diz-se que irá “discutir a relação”. De fato, o convívio é marcado por altos e baixos, sendo necessário se empreenda todos os esforços possíveis para tornar aquele o mais saudável e produtivo possível.

De fato, tal como o exemplo acima, a relação entre a sociedade e o Direito Penal também é marcada por altos e baixos, com a ressalva que o casal pode separar-se, enquanto que sociedade e Direito Penal permanecerão juntos ao longo de toda a sua existência. Portanto, discutir a relação entre aqueles deve ser uma prática necessária e constante.

No dia 13 de junho de 2019, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26/DF, proposta pelo Partido Popular Socialista, o Supremo Tribunal Federal decidiu por 8 votos a 3 o enquadramento da homofobia na lei n.º 7.716/89 que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, até que o Poder Legislativo edite lei específica sobre o tema.

Entendeu a suprema corte “o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois, resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.”.

Igualmente restou que o homicídio praticado em razão da orientação sexual constitui “circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, § 2.º, I, “in fine”);”.

Entendeu-se, por fim, não constituir crime de homofobia a prática da liturgia religiosa, exceto se “tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.”.

O debate sobre o julgamento se deu em torno da eventual sobreposição do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo, no contexto do Ativismo Judiciário. Nelson Nery Júnior e Georges Abboud (2013, p. 528) mencionam a opinião de Pablo Luis Manili que distingue o bom e o mau ativismo judiciário, na medida em que o primeiro “cria direitos, ou seja, assegura direitos não previstos expressamente em nenhum diploma normativo” e “implementa mecanismos para superar a inconstitucionalidade por omissão”.

A questão é deveras polêmica. Em reportagem do jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 15 de junho de 2019, O Ministro Dias Toffoli, presidente do STF, ao comentar as críticas dirigidas ao tribunal, sem fazer menção específica, afirmou: “Ora, quem provocou o STF foi um parlamentar. Quem pediu para o Supremo decidir foi um partido político, foi um parlamentar. Se se respeitasse as suas competências específicas e não levasse o problema ao Judiciário, não haveria por o Judiciário ou o Supremo estar deliberando sobre (esses temas).”.

A discriminação em virtude da orientação sexual trata-se de um comportamento indesejado numa sociedade civilizada e democrática, mesmo porque aquela é questão de foro íntimo e não diz respeito a terceiros. Deve o Estado limitar-se tão somente a reprimir severamente comportamentos discriminatórios de qualquer natureza, de modo a cumprir os seus fins políticos e sociais.

Da fala do presidente do STF, verifica-se que o debate vai além do ativismo judiciário, mas sim, da própria relação entre a sociedade brasileira com o Direito Penal, da forma como aquela enxerga este. Seria, de fato, o Direito Penal o instrumento mais adequado para reprimir comportamentos discriminatórios em razão da orientação sexual ou identidade de gênero?

Entende-se o Direito Penal como o conjunto de normas e regras voltadas para a repressão dos comportamentos mais graves dirigidas a bens jurídico-penais cuja tutela é imprescindível para a o desenvolvimento e coexistência humanos.

Nesse caso, dois aspectos devem ser levados em conta, o primeira em relação aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana e a segundo sobre o processo de seleção de bens jurídico-penais, enquanto fundamento de legitimação do Direito Penal.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5.º, inciso XLII, estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes, com fundamento em Maria da Conceição Cunha (2002, p. 85) afirma a referência ideal para a seleção de bens jurídico-penais somente poderia ser a constituição.

Portanto, pode-se afirmar neste caso, o dispositivo constitucional em questão selecionou um bem jurídico-penal, isto é, a procedência étnica. Assim o fez de forma válida e legítima, em razão de seu conteúdo axiológico, em conformidade com o Estado Democrático de Direito. Em seguida, ao editar a Lei n.º 7.716/89 criou-se a correspondente norma para tutelar aquele bem jurídico-penal.

Sobre a relação entre bem jurídico-penal e norma penal, portanto, filio-me a Hans Welzel (2014, p. 107) que afirma a materialização da ação típica trata-se de uma lesão ou o perigo de lesão a um bem jurídico e que essa circunstância constitui indício de antijuridicidade. Em outros termos, a escolha do bem jurídico-penal antecede à própria norma, sendo que esta encontra aquele, por assim dizer. Por outro lado, reputo pertinente a crítica a Jakobs (2018, p. 47) que entende a vigência da norma penal ser, em realidade, o próprio bem jurídico-penal.

Ocorre que, da leitura da Lei n.º 7.716/89, verifica-se que o legislador tipificou uma série de condutas que, em realidade, poderiam ser perfeitamente solucionáveis por outros ramos do Direito. Guilherme de Souza Nucci (2019, p. 175) afirma com razão que a banalização do Direito Penal pode levá-lo ao descrédito, pela falta de aplicação efetiva. Ora, no caso de um comerciante que veda o acesso de pessoa em seu estabelecimento em razão de procedência étnica – artigo 5.º -, qual seria a sanção estatal com maior potencial de atingir seus fins, a imposição de pena de reclusão de um a três anos que poderá ser cumprida em regime aberto, inclusive, ou o pagamento de pesada indenização a título de danos morais à vítima. O mesmo se aplica ao crime de impedir a ascensão profissional em razão de procedência étnica – artigo 4.º, § 1.º, inciso II, a qual poderia ser penalizada de forma mais eficaz pela justiça trabalhista, na forma de danos materiais e morais, sem prejuízo de outras medidas decretadas pela Administração Pública, no uso de seu poder de polícia administrativa.

Desta forma, pergunta-se: a Lei n.º 7.716/89 poderia ser revogada sem que deixasse de ser promovida a tutela penal da procedência étnica? A resposta é sim, entretanto, como se trata de comando constitucional relacionado à matéria de direitos e garantias fundamentais, a eventual revogação da norma esbarraria na cláusula de proibição ao retrocesso.

Em relação à dita tutela penal de minorias, creio que o legislador foi mais feliz ao tipificar, por exemplo, o crime de feminicídio, enquanto homicídio praticado em virtude da condição de gênero. Ao criar um tipo penal autônomo, com causas especiais de aumento de pena, o legislador promoveu a tutela simultânea de dois bens jurídicos, no caso a vida e a condição de gênero da mulher. Igualmente, quando da edição da Lei n.º 11.343/06 - Lei Maria da Penha, criou-se um tipo penal autônomo que tutela a integridade física e moral, assim como a condição de gênero da mulher.

Ora, no caso da homofobia, assim como o combate à discriminação de minorias, sejam elas em razão de etnia, procedência, convicção religiosa, entre outras, muito mais condizente com os fins de um Direito Penal verdadeiramente democrático seria a criação dos tipos penais de homicídio e lesões corporais praticados em razão da etnia, procedência, orientação sexual, identidade de gênero ou convicção religiosa.

No mais, a decisão do STF do ponto de vista técnico-jurídico se sustenta unicamente para aqueles que se filiam ao ativismo judiciário, na medida em que efetivamente criou um tipo penal autônomo, inclusive com a previsão de uma excludente de ilicitude. Por outro lado, promoveu uma questionável expansão do Direito Penal que contemplou somente uma categoria de destinatários. Indicou uma qualificadora genérica e ultrapassada para designar o homicídio praticado em razão de orientação sexual e identidade de gênero, este sim muito mais grave e sujeito a prazos prescricionais.

Todavia, é de se dizer que a decisão do STF reproduz a relação que a sociedade brasileira e como esta enxerga o Direito Penal, fundada na crença que um conflito social somente será adequadamente solucionado, quando elevado à condição de “caso de Polícia”.

Sob o ponto de vista político, trata-se de mais um episódio de apropriação do direito penal por grupos partidários, o que é de todo lamentável e tornou-se um hábito. O movimento mais recente nesse sentido, diz respeito ao projeto de lei n.º 3369/19 que cria causa especial de aumento de pena quando a imputação falsa reputar-se a crimes contra a dignidade sexual. No caso, a apropriação política do Direito Penal se dá tanto pelo grupo político por trás da medida quanto por aquele que se opõe àquela. Ora, se a mulher também pode ser autora de crime contra a dignidade sexual, porque o projeto de lei seria uma manifestação do machismo? No entanto, é de se ressaltar a apresentação do projeto se dá no contexto de verdadeira politização da relação entre homem e mulher, na pior acepção da palavra. Não seria de mais valia para a sociedade o aumento da pena para o crime de denunciação caluniosa, qualquer seja o crime falsamente imputado? Eu creio que sim.

Feitas essas considerações, tenho que discutir nossa relação com o Direito Penal é necessária e urgente, sob pena de criarmos um sem número de tipos penais despropositados, com a imposição de sanções inexpressivas, enquanto que lesões realmente graves contra bens jurídico-penais relevantes permanecem proporcionalmente mais inexpressivas. Supondo seja um autor de homicídio praticado em razão da orientação sexual ou identidade de gênero, motivo torpe, tal como indicou o STF, seja condenado à pena mínima, isto é, 12 anos. No caso de réu não reincidente, este progredirá para o regime semiaberto, após o cumprimento de somente 4 anos, 9 meses e 18 dias. Evidentemente, é muito pouco para um crime que tutela simultaneamente a vida, a orientação sexual e a identidade de gênero. É muito pouco para um país que sofre com elevados índices de homicídios, compatíveis a países em guerra. 

Essa relação paradoxal que sociedade brasileira mantém com o Direito Penal, movida muitas vezes pelo interesse de partidos políticos ou dos meios de comunicação, tem que ser mudada urgentemente. A caminhar dessa maneira, o direito penal brasileiro está fadado a tornar-se um faz de conta, panem et circenses, como diz a expressão.

 

Notas e Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2017.

GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal – Série as ciências criminais no século XXI, volume 5. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos? Sobre a legitimação do Direito Penal. Porto Alegre: Editora livraria do advogado, 2018.

LISZT, Franz Von. A teoria finalista no Direito Penal. Campinas: LZN Editora, 2007.

NERY JÚNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Ativismo judicial como conceito natimorto para consolidação do Estado Democrático de Direito: As razões pelas quais a justiça não pode ser medida pela vontade de alguém in Fredie Didier Júnior et al (organizadores). Ativismo judicial e Garantismo Processual. Salvador: Editora Juspodivm, 2013, p. 525 et seq.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Editora Gen Forense, 2019.

ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Editora Renovar: Rio de Janeiro, 2002.

WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: Uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

 

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