Homo também é gente, livre e igual. Ainda sobre união homoafetiva

03/08/2015

Por Alexandre Morais da Rosa - 03/08/2015

Quem concorda com a cláusula pressuposta e limitadora do Poder Constituinte Originário dos Livres e Iguais (Daniel Sarmento escreveu um livro sobre isso que vale ser consultado, pela Lumen Juris, 2006) não pode, por dever de coerência, ser contrário à união homoafetiva. Se a Constituição proibisse o casamento entre negros e brancos ou de índios com brancos seria constitucional porque o poder constituinte era originário? Quando cria a Instituição - casamento - pode prever qual o sexo de quem está dentro? Pode confundir grosseiramente sexo biológico com gênero? Pode fazer distinções que violam a cláusula dos livres e iguais? Toda discussão sobre a interpretação do conteúdo da Constituição de 1988 é irrelevante sem que se responda esta questão preliminar: e a cláusula pressuposta dos livres e iguais não prevalece no casamento? Qual o motivo?

Vamos ao exemplo que pode nos ajudar: Pedro e João. Dois jovens de 30 e 28 anos que se conheceram, apaixonaram-se e vivem juntos há dois anos. Para alguns, embora constituam uma união homossexual, não merecem o tratamento dado aos heterossexuais. Acontece, entretanto, que Pedro decide fazer uma operação para mudança de sexo - genitália[1]. Em face dos avanços da medicina essa operação é feita com grande margem de segurança e com custos razoáveis, inclusive pelo sistema público. Pois bem, feita a operação, Pedro modificou sua anatomia construindo uma vagina artificial de seu pênis e, agora, pelo menos anatomicamente, apresenta-se como mulher. Mais: admitamos que fez tratamento hormonal e operação plástica, introduzindo silicone nos seios[2]. Pedro passou a ter o corpo de mulher. Em seguida promove ação de retificação de registro civil, sem qualquer anotação discriminatória, passando a se chamar Paula, brasileira, solteira, a partir do trânsito em julgado da decisão...

Durante todo tramitar do processo continuou vivendo, dividindo os momentos bons e ruins com João. Para dogmática estreita, todavia, a união estável somente surgiria/apareceria aos olhos do Direito no segundo imediato ao trânsito em julgado da decisão, como se estas pessoas, não me canso de repetir: sujeitos humanos livres e iguais, nunca tivessem vivido juntos, dividido suas vidas. Com a decisão transitada em julgado ocorreria uma verdadeira catarse jurídica legitimadora da união até então existente? Constando do registro Paula ao invés de Pedro, então, poderiam casar-se? Antes não haveria união estável?

Este é o paradoxo do complexo do prazo de validade, ou seja: o legalista ferrenho vai ao Supermercado e confere – na forma da lei – os prazos de validade. Somente consome o produto até o dia fatídico, ou seja, se o prazo de validade é hoje, pode consumir até às 24:00 horas; às 00.01 o produto está fora do prazo de validade e, portanto, inservível ao consumo. Se for horário de verão fica sempre na dúvida. Para este, no exato minuto que se transpôs o dia, as bactérias, em Assembléia Geral Ordinária – adrede convocada – decidiram, à unanimidade, avançar/estragar sobre o produto. O prazo fatal é 24:00hs. Entendeu? É o pior é que essa ingenuidade mesclada com astúcia é reproduzida pelo senso comum teórico dos juristas[3].

Assim como o produto não estraga no exato momento da vigésima quarta badalada, a união estável não surge do nada: estava ali. Os atores jurídicos vinculados ao processo é que não conseguiam ver/olhar, cegos que estavam pela forma e prazos legais ou mesmo preconceito que sempre faz pensar... A União Estável não apareceu, tal qual Fênix, das cinzas, após o segundo imediato ao trânsito em julgado da decisão[4]. Basta ver além do processo, das folhas, e reconhecer que entre João e Pedro/Paula sempre houve a União de interesses afetivos, retirando o véu processual da realidade humana, de livres e iguais.

Este o conteúdo da decisão que proferi e foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, após recurso do Ministério Público de Santa Catarina (confira aqui).  Vale destacar, por fim, a parte final do voto do Des. Gilberto Gomes de Oliveira: “Não se trata, aqui, de dizer o que é certo ou errado nas relações pessoais; ao contrário, na sua intimidade cada um pode ser feliz e satisfazer-se da maneira que melhor lhe aprouver, desde sexualmente entre maiores e capazes. Aquilo que é certo e bom para um, por motivos de foro íntimo ou orientação religiosa, pode não sê-lo para outrem e isto tem que ser respeitado. Bem por isto O ESTADO É LAICO e vivemos em uma democracia: para que cada um tenha a liberdade de fazer suas escolhas sem limitar as escolhas do outro. Aquele que é “contra o casamento gay”, que não se case com pessoa do mesmo sexo, simples. Não poderá, contudo, impedir aquele que desejar fazê-lo.”

Boa semana.


Notas e referências:

[1] Na maioria dos casais homossexuais há satisfação com o sexo anatômico e inexiste interesse na operação. Todavia, o exemplo busca outra finalidade, como se verá.

[2] Tantas colocam, porque negar ao nosso Pedro?

[3] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral do Direito, vol. I. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 14.   “De uma maneira geral, a expressão ‘senso comum teórico’ designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas.”

[4] Exemplo já indicado no livro Amante Virtual, de 2001.


  Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui              


Imagem Ilustrativa do Post: Gay pride 090 - Marche des fiertés Toulouse 2011.jpg // Foto de: Guillaume Paumier // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/gpaumier/5848372518 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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