Hobbes e as paixões – Por Agostinho Ramalho Marques Neto

04/04/2015

À memória de Norberto Carlos Irusta

Hobbes é um contratualista; e, como todo contratualista, ele pressupõe um estado de natureza. Um estado de natureza que não é a descrição de nenhum fato histórico. Tanto Hobbes quanto todos os grandes contratualistas (Locke, Rousseau) não defendem a tese do estado de natureza como algo que efetivamente tenha acontecido. O estado de natureza é uma ideia-limite, uma hipótese filosófica, uma ficção teórica, que entretanto, uma vez admitida como se as coisas realmente se tivessem passado da maneira nela suposta, pode iluminar a compreensão de todo um campo do conhecimento ou redimensionar, às vezes com caráter de novidade radical, certas questões cruciais. Uma dessas questões cruciais no pensamento de Hobbes consiste na indagação acerca do que leva o homem a viver em sociedade; que tipo de motivo conduz o homem a tecer-se ser social.

Há – e Hobbes é exemplar no que se refere a isso – um rompimento com toda uma tradição que remonta aos gregos e particularmente a Aristóteles. Em Aristóteles, o homem é um animal social. Mas é muito pouco dizer apenas isso. Que o homem seja um animal social é algo sobre o qual tanto Aristóteles quanto Hobbes, Locke, Rousseau, os contratualistas, os modernos estariam de acordo. Marx também concordaria com tal asserção. Freud, também. A questão está em como cada um concebe as origens e a essência do caráter social do ser humano.

Em Aristóteles, trata-se, por assim dizer, de um dado da natureza. Para ele, o homem é um animal social por natureza. E nisso que é social por natureza, também o é por destinação. Há toda uma teleologia aí implicada. O homem é um animal social por natureza: é da natureza do homem ser social e, nesta perspectiva, o homem é naturalmente destinado à pólis.

Isso implica numa anterioridade lógica da pólis em relação ao cidadão e em relação a todos aqueles que pertencem à pólis na qualidade de suas condições de existência, como é o caso das mulheres e dos escravos. Essa implicação é, aliás, extremamente coerente com o pensamento aristotélico de uma anterioridade do todo em relação à parte, a qual, para ele, não é apenas parte do todo, mas lhe pertence inteiramente. O todo é a verdade das partes. Ele as precede – não cronológica, mas logicamente. O pressuposto lógico da parte é o todo.

A Modernidade vai mudar radicalmente tal concepção. Essa mudança já se delineia no pensamento de Maquiavel que, mais de um século antes de Hobbes, funda a Filosofia Política moderna a partir da perspectiva de que a dimensão do político deve ser compreendida à luz da razão, e não de alguma fundamentação ética ou religiosa. Nessa mudança, Hobbes também tem um lugar de precursor. E, a meu ver, o de seu mais consistente e brilhante teórico. A sociabilidade, vista sob o enfoque contratualista, na medida em que não é um dado de natureza, tem que ser necessariamente um construto. Hobbes também afirma que o homem é social, mas o é por convenção.

Isso, aliás, retoma uma oposição fundamental do pensamento grego. O que se opõe, no pensamento grego, ao natural, não é o social, na medida em que o social é natural. A pólis é um ser de natureza. Então, a oposição não é propriamente natureza/cultura, ou natureza/sociedade, mas sim physis (aí incluída a pólis) versus nomos, no sentido da convenção. O que se opõe, portanto, no pensamento grego, ao natural, é o convencional, e não o social.

Os contratualistas tomam exatamente esta oposição – natureza x convenção –, mas veem no polo da convenção, e não no polo da natureza, o lugar determinante da instituição de uma sociedade humana. Dito de outra forma, os contratualistas vão procurar justificar a sociedade na perspectiva do construído, não na do dado.

Ora, isso implica em determinadas suposições. O pensamento contratualista supõe, por exemplo, necessariamente, um estado pré-social, visto que supor que o estado de sociedade seja construído exige que se suponha também um estado anterior, pré-social, a partir de onde será possível fundamentar aquela construção. Esse estado anterior é o estado de natureza, que, como já disse, não é de modo algum a descrição de um fato histórico, mas uma hipótese filosófica. É uma espécie de mito fundante, a partir do qual todo um vasto sistema teórico vai se instaurar. Seu lugar na teoria política contratualista é análogo àquele que ocupa, por exemplo, o mito de Édipo na Psicanálise. Seu conteúdo varia: guerra de todos contra todos, em Hobbes; um certo estado de isolamento, como na fábula do bom selvagem, de Rousseau, etc. Mas, em todos esses casos, admitindo-se a hipótese de um estado de natureza pré-social, ilumina-se, por assim dizer, a compreensão do estado de sociedade.

Certamente não por acaso, acabo de usar o verbo iluminar, que aqui remete a uma das maiores ambições da Modernidade: a da Razão (e não mais a Fé) como a nova luz a clarear a busca da verdade; e, mais do que isso, a Razão, ela própria, como o critério e a instância última da Verdade. Verdade, no sentido forte do termo, é verdade de razão. A Razão governa. Há uma grande ambição do pensamento moderno no sentido de dar conta do político e do ético pela razão. A Razão é a nova luz, que se opõe às trevas do dogma medieval. Dela, diz Hobbes no Leviatã: “A razão em si mesma é sempre certa”![1] Em tal formulação, está enunciado que há uma razão em si mesma, uma razão sem desvios, uma reta Razão, uma razão com “R” maiúsculo, e que esta razão em si mesma não é passível de erros. Hobbes diz que qualquer um pode errar no cálculo, assim como o mais exímio matemático pode enganar-se na conta, mas nem por isso a Matemática deixa de ser, segundo suas próprias palavras, “uma arte infalível e certa”[2].

Há nisso, evidentemente, todo um processo de supervalorização do racional e, por essa via, do sujeito do conhecimento. A Razão, desde Descartes, passa a ocupar o lugar do fundamento. Pode-se mesmo dizer que há, nesse processo, uma autêntica deificação da Razão, que séculos mais tarde Nietzsche denunciará, ao observar que, aí onde o pensamento católico medieval colocara Deus no lugar de última instância da Verdade (afirmando com isto, implicitamente, que uma instância última), agora os modernos põem a Razão. Destituíram Deus desse lugar, mas conservaram, diz ele, o mais importante: o lugar! Tiraram, digamos assim, Deus do trono e nele assentaram a Razão, mas conservaram, intacto, o próprio Trono!

Pois bem, é exatamente a partir dessa Razão reta, em si mesma sempre certa, que a Filosofia Política moderna vai tentar dar conta do político. Nessa tentativa, rompe com uma longa tradição que remonta a Aristóteles, que afirmava haver nos planos da ética e da política algo irredutível, inapreensível por qualquer episteme, de modo que esses planos não poderiam ser completamente explicados “cientificamente”. Ora, transformar a Política e a Ética em ciências demonstrativas, conferindo-lhes tanto rigor quanto aquele que é possível atingir na Geometria, é uma das grandes ambições da Modernidade. O Leviatã, por exemplo, não deixa de ser um grande teorema no qual, mediante a definição rigorosa dos termos e conceitos que estão na base de seu pensamento e a partir da enunciação de determinados postulados e asserções, Hobbes vai-se encaminhando, com rigor demonstrativo, em direção a seu corolário principal, que é a tese da necessidade do Estado. Essa tese pode ser, em síntese, assim enunciada: sendo os seres humanos, como de fato o são, governados por suas paixões, por natureza ilimitadas, e sendo capazes, ainda por cima, de, mediante o uso de sua razão, calcular as consequências boas ou más de ações que visem à satisfação daquelas paixões – se admitidas tais premissas, então ou haverá um poder superior suficientemente forte para manter a todos em respeito, ou eles tenderão necessariamente a destruir-se uns aos outros.

No estado de natureza, não existe esse poder comum. Essa inexistência é, por sinal, um traço de essência daquele estado. Daí que o estado natural dos homens em relação aos outros é um estado de guerra. Guerra que é de todos contra todos, isto é, de cada um contra cada um. O estado de guerra é, pois, natural, segundo Hobbes. A guerra, para ele, é um dado da natureza humana, ou, mais precisamente, uma consequência necessária das paixões. Ora, se a guerra é natural, a paz só pode ser construída...

A construção da paz é correlata do trânsito do estado de natureza para o estado de sociedade, e da concomitante instituição do poder soberano. Esse trânsito, essa passagem, constitui o segundo momento lógico da concepção contratualista sobre a instituição da sociedade. O primeiro é a própria postulação de um estado pré-social. Agora, neste segundo tempo, também mítico, no sentido que já referi, estamos diante da hipótese do contrato. Antes de examiná-la, contudo, e preparando um pouco o terreno para esse exame, vou falar brevemente de uma das pressuposições teóricas mais fundamentais do pensamento contratualista.

A hipótese do estado de natureza implica necessariamente na suposição de um individualismo: se o estado de natureza é pré-social, então é forçoso admitir que nele não podem existir “sócios”, mas somente indivíduos. Temos aqui uma guinada em sentido contrário à suposição aristotélica da anterioridade da pólis em relação aos indivíduos, logicamente articulada, como vimos, à anterioridade do todo em relação a suas partes. Aqui, pelo contrário, o indivíduo é que é anterior. Anterior à sociedade, anterior à cidade, anterior ao Estado. O contratualismo não pode deixar de supor, na origem hipotética da sociedade, a precedência de indivíduos isolados.

O que acontece, segundo a perspectiva hobbesiana, com esses indivíduos isolados? Eles estão, por assim dizer, entregues a si mesmos. Cada um tem seu próprio julgamento; e no seu próprio apetite, a direção de sua vida. Para Hobbes, o que caracteriza o âmago do ser humano é aquilo que ele chama de paixão. Ele caracteriza a paixão como sendo um movimento.

Pode ser importante observar, nesta passagem, que Hobbes tem o seu sistema de pensamento sobredeterminado, digamos assim, a partir de diferentes perspectivas filosóficas e epistemológicas, nem sempre fáceis de compatibilizar. Por um lado, há nele toda uma vertente empirista e mesmo sensualista. Por outro, ele é um racionalista que, conforme a expressão que ele mesmo emprega no De Cive, trabalha “como um geômetra”[3], isto é, por derivação lógica, cujo modelo essencial é o silogismo. Por outro lado, ainda, ele é fundamentalmente um mecanicista, muito influenciado pelas idéias de Galileu – uma novidade polêmica, na época. Para Hobbes, vida é movimento. É um movimento que luta no sentido de manter-se. Daí o lugar absolutamente central que a autopreservação ocupa no pensamento hobbesiano. O que importa, em primeiro lugar, a todo ser vivo, é a própria sobrevivência. No caso dos homens, sobreviver com vista a experimentar aquilo que se lhes afigura como sua felicidade. Felicidade, para Hobbes, é a contínua realização de desejos. E isto tem profundas consequências políticas, como mais adiante teremos ocasião de examinar.

Pois bem, ao contrário de toda uma antiga tradição filosófica que atribuía à razão a marca distintiva do ser humano, definido como “animal racional”, Hobbes vê os homens como seres essencialmente passionais. Para ele, o papel da razão é instrumental. A razão é fundamentalmente cálculo, que serve para apontar os meios adequados à realização dos desejos. Sua função é, portanto, auxiliar, no sentido da satisfação das paixões.

Hobbes tem uma concepção mecanicista das paixões. Ele diz que as paixões são movimentos voluntários de origem interna. Isso não pode deixar de ser significativo para quem é da área da Psicanálise. Ele distingue duas espécies de movimentos: o que ele chama de movimento vital, que prescinde da imaginação, como, por exemplo, a circulação do sangue, o movimento do aparelho digestivo, etc.; e o que ele denomina movimento voluntário, que pressupõe aquilo que ele designa como imaginação – o mesmo que memória, segundo sua definição.

Pois bem, esses movimentos voluntários, ou seja, essas paixões, na sua forma mais elementar, são fundamentalmente duas, mantendo entre si uma relação de oposição. Hobbes chama a primeira delas de apetite e, mais precisamente, de desejo, reservando o termo aversão para denominar a segunda. O desejo nada mais é do que o movimento que leva o sujeito a se aproximar daquilo que o agrada, daquilo que lhe promete o que lhe parece ser o seu bem. Diga-se logo de passagem que o termo bem, neste contexto, não tem qualquer conotação moral. Bem, aqui, é simplesmente tudo aquilo que me agrada, tudo aquilo que percebo como reforçando meu movimento vital. Tudo aquilo que percebo como um bloqueio, como uma perturbação de meu movimento vital, é um mal para mim.

Então, desejo é um movimento que leva o sujeito em direção àquilo que o agrada, que lhe promete o bem. Note-se que aí já está colocado, implicitamente, que o desejo não tem objeto. O desejo é puro movimento. Desejo mais objeto, diz Hobbes, é amor. Esta a definição que ele dá do amor: quando nosso desejo recai sobre um objeto, dizemos que amamos esse objeto. Mas o desejo enquanto tal é apenas movimento em direção a.

A paixão contrária ao desejo é aquela que Hobbes nomeia como aversão. Enquanto o desejo é um movimento de aproximação daquilo que agrada, que promete um reforço do movimento vital, a aversão é um movimento no sentido contrário, é um movimento não de aproximação, mas de afastamento em relação àquilo que desagrada, que promete uma perturbação do movimento vital.

É claro que, no movimento do desejo e da aversão, sempre pode haver um erro, uma ilusão. Como o bem a ser procurado e o mal a ser evitado são, pelo menos numa primeira aproximação, um bem e um mal aparentes, o sujeito sempre pode dar com os burros n’água. Pode, por exemplo, fugir daquilo que, afinal de contas, se ele experimentasse, reforçaria o seu movimento vital. E também pode se aproximar daquilo que lhe parece um bem, mas, ao experimentá-lo, vê que na verdade houve um obstáculo ao curso do seu movimento vital. De qualquer forma, essa dialética mecanicista – se assim posso expressar-me – entre desejo e aversão é aquilo que move o ser humano, na concepção hobbesiana: a procura da realização dos desejos e a fuga do que causa aversão.

É nesse contexto que posso agora retomar a questão da felicidade, que mencionei há pouco. Logo de saída, Hobbes nega peremptoriamente a existência de qualquer Bem Supremo, de qualquer fim último em direção ao qual a vida humana pudesse ser direcionada e no qual acreditaram, embora em perspectivas diferentes, todos os antigos filósofos morais, tanto gregos quanto cristãos. Identicamente ao que ocorre com sua teoria das paixões, Hobbes tem uma concepção mecanicista, isto é, dinâmica, da felicidade, opondo-se com isto, num ponto capital, a toda uma tradição de pensamento que remonta aos gregos e que tem uma concepção estática da felicidade. Felicidade, em Hobbes, não é estado, é processo. Esse processo consiste essencialmente na realização da maior quantidade possível de desejos e na evitação da maior quantidade possível de experiências passíveis de causar aversão. Quem continuamente realiza desejos e subtraise do que pode causar-lhe aversão é feliz. Isso transparece na definição hobbesiana de felicidade: “A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo”[4].

Creio que não é um exagero enxergar aí a atribuição de um caráter metonímico ao desejo, embora Hobbes não faça expressamente essa articulação. De todo modo, a felicidade, no sentido hobbesiano, jamais é apenas a realização aqui e agora. Ela também implica, necessariamente, no domínio dos meios para a realização dos desejos futuros. Quem deseja os fins também deseja os meios adequados para atingir esses fins. Dispor de tais meios é ter poder, e por aí se pode entender por que o desejo de poder ocupa um lugar tão central no pensamento de Hobbes. A guerra se dá essencialmente pela posse desses meios, isto é, pelo poder. A concepção hobbesiana de felicidade não é, portanto, uma concepção ética, e sim uma concepção mecânica. Seu pressuposto é a realização dos desejos, isto é, a satisfação constante (mas, claro, sempre incompleta, visto que um desejo abre o caminho para outro desejo) da natureza passional do ser humano.[5]

Que papel desempenha a razão nesse contexto? Exatamente o de indicar os melhores meios para a realização dos desejos e para a evitação do que cause aversão. Ouçamos o que nos diz o próprio Hobbes sobre isso: “Os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias, que vão ao exterior procurar o caminho para as coisas desejadas; e é daí que provém toda firmeza do movimento do espírito, assim como toda rapidez do mesmo”. E logo adiante ele acrescenta: “Não ter nenhum desejo é o mesmo que estar morto”[6].

A razão hobbesiana, que nada mais é do que cálculo, instrumento auxiliar, como já vimos, para a realização dos desejos, tem, por isso mesmo, uma íntima relação com o poder. Se poder, em Hobbes, é essencialmente o conjunto dos meios de que alguém presentemente dispõe para realizar seus desejos futuros, e se é a razão que sugere esses meios, então a razão é um elemento que comparece na origem mesma do poder e, num certo sentido, razão é poder. A razão é, então, uma condição necessária, embora insuficiente, do poder. Isto porque, como nosso autor esclarece, os meios para a realização dos desejos podem chegar às mãos do sujeito por outras vias que não o cálculo, como o acaso, a boa ou má fortuna e os erros de uns em suas relações com os outros.

Acrescente-se a isso – e nós podemos dizer que aí vai a enunciação de uma autêntica lei hobbesiana da política – “o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda”[7]. Ou seja, o poder atual, por maior que seja, é sempre insuficiente. Observe-se que o caráter de atualidade é intrínseco à definição hobbesiana de poder. Quem já teve aqueles meios e não os tem mais, não tem poder. Quem irá tê-los mas ainda não os tem, não tem poder. Há, pois, nessa concepção de poder, um caráter temporal, que envolve necessariamente uma dimensão de atualidade.

Então, ninguém está garantido com o seu poder atual, se não adquirir ainda mais poder. Por quê? Para Hobbes, quem acha que já tem poder suficiente para garantir sua segurança e por isso se limita, em relação aos demais, a uma mera atitude defensiva, sem procurar ampliar seu poder, é o mesmo que oferecer-se como presa, porque, enquanto essas boas intenções prosperam, os outros estão trabalhando e maquinando secretamente para no momento oportuno darem o bote... Mas por que será que os outros estão maquinando dessa maneira? Por que será – pergunta o próprio Hobbes – que a natureza lançou assim os homens uns contra os outros, a ponto de, na falta de um poder que mantenha todos em respeito, eles se atacarem e se destruírem uns aos outros como lobos?

Por que será que isso é assim? É neste ponto que eu queria chegar. Examinemos melhor essa questão à luz do pensamento de Hobbes. Podese, com efeito, ter uma primeira impressão de que os fatores determinantes da guerra de todos contra todos decorrem de algo ligado à dimensão da escassez. Ou seja, os bens são poucos, são escassos, não são suficientes, e, em consequência, os homens acabam por atacar-se mutuamente. Nessa perspectiva, a guerra seria uma decorrência da escassez. Nada, todavia, é mais anti-hobbesiano do que tal concepção.

Com efeito, a guerra de todos contra todos não decorre, de maneira nenhuma, da escassez. Hobbes observa que, ao contrário dos animais que, quando satisfeitos, tendem a um convívio pacífico com seus semelhantes e mesmo com animais de espécies inimigas, os homens, quanto mais satisfeitos estiverem, mais tenderão a implicar com os outros. Por quê? Hobbes responde que isso pode decorrer de certas causas, dentre as quais a seguinte: por ninharias! Por um simples sorriso, por um gesto de reconhecimento, por uma manifestação de apreço, mas também por um desejo de conquistas ou de ligar seu nome a algo eminente no terreno da política, das artes ou das ciências... Os motivos, enfim, são diferenciados e infindáveis, e manifestações de desapreço ou obstáculos levantados pelos outros acirram a mútua hostilidade, predispondo os homens a lançar-se uns contra os outros.

A guerra de todos contra todos é, por conseguinte, uma consequência inevitável do fato de haver paixões. É uma inferência necessária que Hobbes extrai da existência mesma das paixões. A partir de que ponto seu sistema de pensamento possibilita chegar a essa inferência? Em Hobbes, esse ponto é o caráter infinito do desejo. A guerra de todos contra todos é uma consequência necessária do fato de o desejo apresentar esse caráter de infinitude. O desejo, afinal, pode recair sobre qualquer objeto, inclusive os corpos dos outros. E não somente no sentido libidinal, mas também no sentido de apropriar-se da força de trabalho do outro, subjugá-lo, escravizá- lo. Neste conjunto de articulações, pode-se dizer que o caráter infinito do desejo, implicando, no ato mesmo de sua realização, uma inevitável dimensão de perda, que abre caminho para o próximo desejo, implica também no acirramento da agressividade recíproca dos homens com relação aos outros homens. O desejo, por assim dizer, atiça essa agressividade. O fato de o desejo ser infinito e recair sobre quaisquer objetos, e em especial sobre ninharias, tem como decorrência necessária que os homens, na busca da realização de seus desejos, lutem para obter os meios necessários a essa realização, pondo-se assim, uns em relação aos outros, numa condição de guerra.

Esta é, portanto, diz Hobbes, a condição natural da humanidade. É a condição em que os homens se encontram, perante os outros homens, por simples obra da natureza. É forçoso reconhecer que tal estado é extremamente miserável e que nele ninguém pode encontrar e muito menos invocar da coletividade (a qual, a rigor, nem mesmo existe no estado de natureza) qualquer garantia de proteção. Quaisquer alianças, com vista à destruição de um inimigo comum, são sempre eventuais. Os aliados nem por isso deixam de estar numa recíproca condição de guerra. Realizada a empresa comum, se novos motivos não surgirem para manterem por mais algum tempo a aliança, isto é, a trégua, eles não tardarão a atirar-se uns contra os outros.

Ora, num tal estado, uma paixão haverá de necessariamente predominar sobre todas as outras: o medo. O medo, na concepção hobbesiana, é uma aversão que pressupõe, por um lado, uma certa previsão ou projeção para o futuro (pois não se pode ter medo de coisas passadas a não ser que se receie seu retorno no futuro); e, pelo outro, pressupõe uma “crença de dano proveniente do objeto”[8]. Mas não é nessa forma simples que o medo será a paixão dominante no estado de natureza. O medo dominante nesse estado só pode ser o medo da morte, não de uma morte, digamos assim, natural, que este qualquer ser humano conhece por experiência, em maior ou menor grau, vivendo ou não numa sociedade politicamente organizada. O medo efetivamente dominante tem que ser o da morte violenta, que interrompe a vida a meio do caminho, antes que sobrevenha o seu termo natural.

Pois é justamente a partir dessa paixão, desse medo da morte violenta (que é razoável supor grassando avassaladoramente no estado de natureza), que os homens podem, enfim, encontrar uma saída desse estado. O medo da morte violenta é a mola propulsora que leva os homens a desejarem superar a miserável condição em que se encontram por obra da natureza. É, pois, desse medo intenso, dessa intensa aversão, que brota o desejo de superar o estado natural. A esse desejo fundamental para o trânsito à sociedade civil, Hobbes acrescenta o desejo das coisas necessárias a uma vida confortável e a esperança de consegui-las pelo trabalho. Não é, por conseguinte, apenas o medo que impele os indivíduos a instituírem a sociedade civil, mas também a esperança de uma vida melhor e mais segura. Diga-se de passagem que esperança é o conceito hobbesiano simetricamente oposto ao de medo. A esperança também implica uma necessária projeção para o futuro, e Hobbes a define como o desejo ligado à crença de conseguir.

E a razão vai desempenhar um importantíssimo papel na superação do estado de natureza: o de indicar os meios eficazes para essa superação, em torno dos quais os homens possam finalmente chegar a um acordo. Em Hobbes, a superação do estado de natureza é o mesmo que a superação do estado de guerra de todos contra todos. Como já vimos, a paz hobbesiana não pode deixar de ser construída, ou seja, não é um dado natural, mas o resultado de um artifício. Pois cabe precisamente à razão operar esse artifício, sugerindo normas de paz sem as quais a sociedade humana não pode ser instituída. Essas normas de paz são para Hobbes as leis de natureza, que, nele e em outros importantes contratualistas, são essencialmente regras da razão. É a Razão que impõe a lei da paz como a primeira e mais fundamental das leis de natureza, da qual todas as outras leis decorrem. Em Hobbes, a lei da paz é a precondição mesma da vida social, visto não ser concebível que a guerra interna seja propícia à sociedade e que a paz a destrua. A guerra hobbesiana, de todos contra todos, é a própria dissolução da sociedade.

É igualmente a Razão que impõe a hipótese do contrato: o único meio logicamente eficaz para o trânsito do estado de natureza para a sociedade civil consiste na renúncia recíproca que todos os indivíduos fazem, cada um perante cada um, daqueles direitos que todos possuíam ilimitadamente no estado de natureza, mas cuja manutenção após o contrato tornaria impossível a paz social, particularmente o direito natural de agir guiado somente por seus apetites e por seu entendimento. O contrato hobbesiano é, portanto, um contrato de renúncia. Ele mesmo define o contrato como a renúncia recíproca de direitos. Essa renúncia é o preço a pagar pela passagem para a sociedade civil: a troca de uma liberdade só limitada por impedimentos físicos, que é a que o homem experimenta no estado de natureza, por uma liberdade limitada pelo poder do soberano. Em todo caso, uma perda de liberdade em troca de um ganho de segurança. Ganho que, ao mesmo tempo, é uma submissão ao soberano. Esse, para Hobbes, é o preço da paz. “Não há paz sem sujeição”[9].

Mas formular a hipótese do contrato não é ainda resolver a questão da instituição da sociedade e, sobretudo, de sua manutenção como tal ao longo do tempo. O teorema hobbesiano ainda não chegou à sua conclusão. Com efeito, as mesmas paixões que acabaram por forçar os indivíduos ao contrato, isto é, à renúncia mútua de boa parte de seu poder e liberdade anteriores, sempre podem erguer-se contra esse mesmo contrato – feito, afinal de contas, contra aquelas paixões –, rompendo-o na busca da reaquisição da liberdade e do poder perdidos. Convém esclarecer aqui que o contrato hobbesiano pressupõe um pacto, isto é, a disposição e o compromisso de cumprir o contrato, sem o que este não passaria de palavras vazias. O pacto, para Hobbes, também é uma lei de natureza. A propósito, é na lei do pacto que Hobbes vê a origem da justiça: ser justo nada mais é do que cumprir seus pactos, donde nosso autor deduz que o estado de natureza, sendo logicamente anterior ao pacto, também o é em relação a toda e qualquer ideia de justiça, de modo que no estado de natureza nada pode ser considerado injusto.

Sendo uma lei de natureza, a lei do pacto, como qualquer outra lei dessa espécie, só pode obrigar in foro interno. Não tem a coercibilidade necessária para obrigar in foro externo, que caracteriza as leis do soberano. Sendo essencialmente regras da razão, as leis de natureza não têm esse poder coercitivo, sobretudo se considerarmos, como nosso autor o faz, que a razão é fraca para conter as paixões. As leis de natureza, diz Hobbes, impõem no máximo o desejo de cumpri-las, levando os homens a fazer seus pactos. No entanto, daí não pode resultar qualquer garantia efetiva para quem quer que seja. Como Hobbes agudamente observa, “nada se rompe mais facilmente do que a palavra de um homem”, de modo que “os pactos, sem a espada, não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém”[10].

Não basta, portanto, a celebração do contrato e a recíproca disposição íntima de cumpri-lo para assegurar as condições de paz necessárias à existência da sociedade civil. Não basta, também, aquela esperança de uma vida confortável que, como já observei, também predispõe os indivíduos a renunciarem à sua liberdade natural. Se assim fosse, a paz e a liberdade seriam conciliáveis. Mas já sabemos que Hobbes diz que não há paz sem sujeição e que o preço da vida em sociedade é a subordinação a um poder superior.

É aí que reside a necessidade lógica do soberano, segundo o pensamento hobbesiano, assim como a necessidade de que o poder soberano seja absoluto, embora, como adiante veremos, limitado. O soberano hobbesiano é instituído no contrato, como o depositário da totalidade daqueles poderes a que cada um renunciou. Nessa condição, ele é fundamentalmente o guardião do pacto. Ele mesmo não contrata, visto ser a igualdade de liberdade entre as partes um pressuposto lógico do contrato, e o poder do soberano ser superior não somente ao de cada um em particular, como também ao de todos em conjunto. Esse lugar de supremacia na tessitura do poder da sociedade institui o soberano – seja ele um monarca, como Hobbes prefere, seja uma assembléia aristocrática ou democrática – como aquela instância máxima de poder social encarregada de velar pelo cumprimento dos pactos e, com isso, pela própria subsistência da vida social. Seu poder é absoluto, no sentido de supremo e incontrastável. Mas nem por isso é ilimitado. A própria condição de guardião do pacto impõe ao poder soberano um limite intransponível: ele não pode, por assim dizer, regressar para aquém do pacto, pois isso significaria um retorno ao estado de natureza, que é um estado de guerra, com a inevitável dissolução da sociedade. Daí poder-se afirmar, com toda fidelidade ao pensamento hobbesiano, que o soberano, por isso mesmo que guardião da paz social, tem propriamente o dever de garantir as condições necessárias a essa paz. Este é um argumento de peso contra aqueles que vêem em Hobbes um defensor do absolutismo monárquico sem limites. O tempo, entretanto, é escasso para que possamos desenvolver esse argumento.

Ao soberano hobbesiano compete, portanto, para realizar a sua finalidade de garantir as condições de segurança necessárias à vida social, obrigar os indivíduos a cumprirem seus pactos. Com efeito, se alguém cumpre antecipadamente sua parte num contrato, sem garantia suficiente de que o outro também cumprirá a sua, é o mesmo que oferecer-se como presa – e a generalização disso implicaria inevitavelmente num retorno ao estado de guerra de todos contra todos. Para obrigar os homens ao recíproco cumprimento de seus pactos, isto é, para conferir efetividade ao seu poder coercitivo, o soberano tem que identificar uma paixão (visto que, como já vimos, não dá para confiar no apelo à razão, pois esta é impotente para conter as paixões) suficientemente forte para manter a todos em obediência. Essas paixões, para Hobbes, são as mesmas que conduzem os homens à passagem do estado de natureza para a sociedade: o medo da morte violenta, o desejo de uma vida confortável e a esperança de obtê-la pelo trabalho. Dentre elas, a única com que efetivamente o soberano pode contar é o medo do castigo, isto é, o medo de alguma má consequência decorrente da violação da lei e do não cumprimento dos pactos. É sobre essa paixão que o poder soberano precisa estabelecer-se para que as leis dele emanadas tenham eficácia social e para que seja real e efetiva a coercibilidade inerente ao exercício desse poder.

E aqui chegamos ao corolário principal desse grande teorema que é a I Parte do Leviatã: a necessidade do Estado. Para Hobbes, interessa muito menos a realidade do Estado e sua constituição sob uma forma monárquica ou republicana, do que demonstrar aquela necessidade. O Estado é necessário para fazer valer os pactos, garantindo a paz. Sem o poder soberano que é inerente ao Estado, isto é, numa situação de anomia, o movimento das paixões, o caráter infinito do desejo, que persiste mesmo na mais organizada das sociedades, acabariam implacavelmente reconduzindo de volta ao estado de natureza...

* * *

Eis aí, então, um conjunto de articulações que a inspiração deste momento me levou a tecer para atender ao convite que me fez o Dr. Norberto Irusta no sentido de propor um mote para este sarau. Será que alguma coisa em todo esse material possibilita que façamos agora alguma referência, ainda que breve e um tanto precária, ao campo da Psicanálise? Um dos meus desejos para o futuro é o de debruçar-me mais atentamente sobre essa possibilidade de articulação, que me parece promissora.

Quando se transita pelos interstícios de duas ou mais disciplinas teóricas (interstícios esses que, a rigor, não são preexistentes a esse trânsito, mas constituídos no seu movimento), está-se sempre diante do perigo de reducionismos e de aproximações teóricas apressadas, superficiais e forçadas. Limito-me a mencionar esta dificuldade, já que o seu aprofundamento exigiria todo um conjunto de articulações que extrapolaria de muito as dimensões desta exposição. Mas cumpre observar, pelo menos, que, de saída, os conceitos aparentemente comuns às disciplinas envolvidas, ainda que nomeados pela mesma palavra, quase nunca são os mesmos conceitos. Quando se fala, por exemplo, de “desejo” na referência da Psicanálise, invoca-se toda uma rede conceitual que pouca coisa em comum tem com a concepção hobbesiana de desejo – e isto desde as próprias fundações e pressupostos da teoria psicanalítica, que não são idênticos aos do pensamento filosófico, embora não deixem de ter similaridades em relação a este. Desejo, para a Psicanálise, é desejo inconsciente. Esta é uma articulação que Freud faz bem cedo, no percurso de sua obra, e que sustenta o desenvolvimento dessa obra. Mas em Hobbes não há nada que se assemelhe à hipótese freudiana do inconsciente. Se houvesse, ele seria precursor da Psicanálise.

Uma articulação da Psicanálise com algum dos pontos examinados no esboço que acabo de fazer do pensamento hobbesiano pode ser mais fecunda se procurar apontar antes dissimilaridades que identidades. Isto, aliás, é próprio da Psicanálise: apontar sempre para um Outro lugar...

E aqui, em conexão com a diferenciação freudiana, acima referida, entre os sistemas psíquicos consciente e inconsciente, que não existe em Hobbes, e em conexão também com o que acabo de dizer no parágrafo anterior, trago à tona a novidade extremamente radical que Freud introduz em relação a todo o pensamento anterior ao seu: a clivagem do sujeito, que a hipótese do inconsciente torna obrigatório supor. Já trabalhei essa questão em outros textos, de modo que me limitarei a uma pequena indicação.

O sujeito hobbesiano é um sujeito monádico, um in-di-ví-duo, um que não faz dois, quer no estado de natureza, quer na vida em sociedade. Mesmo tendo passado, nesta última situação, à condição de socius, ele continua tão monádico quanto antes. Há uma suposição de unidade do sujeito tão firmemente estabelecida, que quase nunca ela é sequer mencionada, ficando subentendida. E nessa condição ela tem ainda mais força no processo de construção da teoria. Essa suposição da unidade do sujeito, da qual o cogito cartesiano é como que um princípio e uma síntese, não está presente apenas em Hobbes, mas anima poderosamente todo o pensamento moderno, sendo mesmo um dos pressupostos fundamentais sobre os quais esse pensamento se constitui. Neste contexto, qualquer idéia de uma divisão subjetiva não tem cabimento.

O sujeito hobbesiano, ao contrário do sujeito freudiano, não resiste ao desejo. O desejo, para Hobbes, parece ser irresistível, no sentido de impulsionar o sujeito ao cálculo e à procura dos meios para a sua realização. Como não há clivagem subjetiva, como o desejo não passou pelas vicissitudes do recalque, o sujeito é consciente de seus desejos. E busca realizá-los. O desejo, em Hobbes, não é aquilo diante do qual o sujeito recua.

Outro ponto que posso rapidamente levantar diz respeito à relação do homem com a linguagem. Hobbes trata reiteradamente desta questão ao longo de sua obra. Como já indiquei, o âmago da natureza humana, para ele, é passional. Mas isso é insuficiente para definir o homem em sua especificidade, distinguindo-o dos demais animais. Estes, afinal de contas, também são passionais: têm desejos e aversões, são capazes do amor e do ódio. Aquilo de que carecem é precisamente o uso da razão para calcular os meios propícios à realização de seus desejos. Já vimos que razão, para Hobbes, é fundamentalmente cálculo. Pois bem, esse cálculo só pode ser feito com palavras. A razão hobbesiana nada mais é do que cálculo que se faz com palavras; e, mais precisamente, cálculo das consequências das palavras.

A capacidade de acesso ao logos, ao plano da linguagem simbólica, é a marca distintiva do ser humano em relação aos animais, desde o pensamento grego. Aristóteles, em sua Política, faz menção expressa a essa capacidade como sendo o único critério seguro de distinção. Hobbes também diz que o que diferencia o ser humano é que ele é um animal que fala. Só que a relação do homem com a linguagem, em Aristóteles e principalmente em Hobbes, é uma relação em que o homem comparece como o artífice da palavra. Isso situa o ser humano num lugar de anterioridade lógica e de autonomia em relação à linguagem. Não deixa de haver um paradoxo aí: definido como ser falante precisamente porque acede ao nível das palavras, o homem, entretanto, é suposto logicamente anterior à linguagem. A linguagem, para Hobbes, é convencional: os homens criam as palavras e lhes atribuem sentidos, podendo, portanto, nessa perspectiva, manipulá-las. Tal concepção conduz Hobbes a uma visão instrumental da linguagem. Essa visão instrumental, por sinal, é aquela dentro da qual se faz possível a construção de algo assim como o conhecimento científico. Ela supõe, necessariamente, uma posição de exterioridade do sujeito em relação à estrutura da linguagem, posição que lhe permite controlá-la e usá-la como seu instrumento.

Hobbes acredita plenamente que é possível o controle da linguagem. E vê nesse controle um dos esteios do exercício da soberania: compete ao soberano (ou seja, é um ato de soberania) definir o sentido das palavras. Ele afirma, por exemplo, que a primeira condição da ciência consiste em que as palavras sejam purgadas de toda ambiguidade, isto é, de todo desvio, de todo giro de sentido metafórico ou metonímico, de tal modo que na definição, ou seja, no significado, se esgote num sentido único toda a potencialidade do significante. A ciência hobbesiana não nega os princípios da lógica formal aristotélica. Ao contrário: baseia-se neles. Um caráter essencial da ciência é ser um discurso que não comporta contradição de linguagem. A própria concepção que Hobbes tem da verdade é uma aplicação do princípio da não-contradição. Verdade para ele é, essencialmente, a não contradição da linguagem, ou, segundo suas próprias palavras, “a verdade consiste na adequada ordenação de nomes em nossas afirmações”[11].

A aplicação do princípio de não-contradição à definição da verdade e à especificação do caráter da linguagem da ciência supõe, por seu turno, a admissão do princípio de identidade. Só é possível a contradição se antes tiver sido estabelecida uma identidade. Este princípio, estabelecido por Aristóteles, sustenta fundamentalmente que cada ser é idêntico a si mesmo num determinado momento do tempo. Quando se diz, por exemplo, que A = B, está implícito nessa equação que tanto A quanto B são antes idênticos a si próprios, ou seja, A é A e B é B. Aristóteles formula com elegância este princípio: o que é, é enquanto é, ou, dito de outra forma, o que é não pode não ser enquanto é.

Ora, como sabemos, é bem outra a relação que a Psicanálise vê entre o sujeito e a linguagem. Em Freud e sobretudo em Lacan, há uma precedência lógica da ordem da linguagem, ou seja, da ordem do simbólico, em relação ao sujeito. O homem se define como ser falante e não pode ser apreendido fora dessa referência, nem tem qualquer espécie de existência anterior ou exterior a essa ordem. Sua relação com ela não pode, pois, ser tão autônoma assim. Clivado entre significantes, efeito de haver desejo inconsciente, desconhecedor do saber que no entanto porta, estrangeiro em sua própria casa, outro radicalmente estranho a isso que reconhece como o seu eu consciente, cuja condição de miragem imaginária denuncia, o sujeito da Psicanálise tem, no interior da estrutura da linguagem, um lugar de determinado, e não de determinante. Sujeito, para a Psicanálise, é o sujeito assujeitado à ordem simbólica. Sua posição na estrutura simbólica é que determina o seu ser, sempre evanescente. Ou melhor, sobredetermina, para empregarmos um conceito crucial de Freud que Lacan desenvolve a partir do princípio de que a sobredeterminação é sempre simbólica.

Por outro lado, é bem sabido dos psicanalistas que Freud vê no funcionamento dos processos inconscientes a determinação de uma lógica peculiar, que não se baseia nos princípios aristotélicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído, mas em processos cuja forma se assemelha mais à da analogia e à da alusão: a condensação e o deslocamento. Esses são, para Freud, os princípios que regem o que ele designa como processo primário, que é o modo de funcionamento próprio dos processos inconscientes. Ora, a lógica do processo primário – que mais tarde Lacan irá desenvolver e aprofundar admiravelmente, numa perspectiva simbólica, enquanto lógica do significante – prescinde inteiramente dos princípios da não-contradição e da identidade. A experiência clínica impõe a Freud, por exemplo, a evidência de que representações antagônicas do ponto de vista da lógica formal, que é uma lógica do significado (em linhas gerais, a mesma que rege os mecanismos de nossa vida psíquica consciente e que Freud chama de processo secundário), podem, não obstante, coexistir lado a lado, como se nenhuma contradição houvesse entre elas, nas associações inconscientes regidas pelo processo primário. O inconsciente, diz ele, não conhece a contradição.

Creio que, com base nisso, se pode afirmar que os processos inconscientes revogam também o princípio de identidade. Limito-me a fazer uma indicação a esse respeito, a partir da lógica lacaniana do significante. O princípio de identidade (o que é, é) supõe necessariamente a identidade do significante para consigo próprio, pelo menos no mesmo instante temporal. É isso que garante a consistência da lógica formal, sendo também a precondição de toda concepção e busca da verdade. Lacan, ao contrário, na definição mesma que dá do significante como aquilo que representa o sujeito para outro significante, já está enunciando também a impossibilidade daquela identidade do significante em relação a si mesmo. Essa impossibilidade é mesmo constitutiva da lógica do significante. O significante, em si mesmo, não significa absolutamente nada. É só na cadeia simbólica, em referência a outro significante e ao sujeito, que ele pode significar. Assim, na lógica do significante, tanto pode ser verdadeiro dizer: A = A, quanto dizer: A # A. Longe de resultar da não contradição de linguagem, a verdade, para a Psicanálise, supõe precisamente a contradição, o lapso, a falha, a equivocação.

Vou fazer, para concluir, um breve exame de mais um ponto do pensamento hobbesiano sobre o qual algo de interessante talvez possa ser articulado a partir do referencial da teoria psicanalítica.

Em Hobbes, o desejo e a aversão, que são as paixões mais simples e elementares, são originários nos seres humanos, na medida em que são movimentos voluntários (ou seja, que pressupõem a imaginação, ou memória, a qual também é um equipamento originário) intimamente ligados à manutenção do movimento vital. Isso significa que os homens não podem propriamente aceder ao desejo, pois este já está inscrito neles desde o início. Na Psicanálise, ao contrário, o acesso ao desejo é condição necessária à constituição do sujeito falante.

O fato de a faculdade de desejar ser inata aos seres humanos significa, também, que o desejo, em Hobbes, ocupa uma posição de anterioridade lógica em relação à lei. A lei, por seu turno, na medida em que é um preceito geral descoberto pela razão, isto é, uma regra da razão, pressupõe que esta lhe seja logicamente anterior. A rigor, somente há lei onde a razão já está instaurada. Mas a razão hobbesiana não é inata, e sim adquirida, assim como a linguagem. Razão não é mais que o uso correto (no sentido lógico, não no sentido gramatical) da linguagem.

Já a Psicanálise, como se sabe, supõe a anterioridade lógica da Lei (enquanto interdição do gozo) em relação ao desejo. Não é o indivíduo desejante que é suposto anterior, como no pensamento contratualista, mas a ordem da linguagem. Na Psicanálise, o propriamente anterior, o transcendente como diz Lacan, é o simbólico. É daí que vem a interdição contra a qual – e sobretudo para além da qual, admitindo-a – se constitui o sujeito do desejo.

Poderia, ainda, falar de outros pontos do pensamento de Hobbes que talvez possibilitem interessantes articulações a partir de um enfoque psicanalítico. Suas idéias acerca da natureza dos sonhos enquanto “as imaginações daqueles que se encontram adormecidos”[12], por exemplo, singularmente despojadas da concepção mística que na sua época fundamentava quase que por completo todo exame dessa matéria, por si sós justificariam tal empreendimento. Sua própria noção de estado de natureza, que aponta no sentido de algo primário e irredutível, do qual advém, por renúncia mútua, a constituição do ser humano enquanto social, comporta evidentes possibilidades de analogia com aquilo que na segunda tópica Freud chama de Es, esse primitivo, irredutível e caótico reservatório das pulsões. E Freud também fala de uma renúncia pulsional – isto é, em certo sentido, de um contrato – articulada a seu conceito de recalque originário, como algo indispensável à constituição de uma civilização e de um sujeito humano.

Assim também, a interessante concepção que Hobbes tem, já em sua época, da loucura como algo determinado, de um lado, por um excesso de veemência ou de apatia das paixões, e, do outro, por equívocos fundamentais, que ele denomina absurdos, isto é, por contradições no uso da linguagem, talvez permita aproximações, entre outras coisas, com a diferenciação freudiana entre afeto e representação, crucial para a compreensão dos processos psíquicos e da etiologia das perturbações patológicas de tais processos.

Essas aproximações, entretanto, têm que ser feitas com cautela, porque o risco de reducionismos e articulações superficiais caminha sempre ao lado.

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O texto Hobbes e as Paixões tem uma pequena história, que acho que vale a pena contar.
 
No dia 16 de maio de 1994 eu me encontrava em Curitiba a convite do professor Jacinto Coutinho, para dar uma palestra sobre "Direito e Psicanálise" para os alunos dos cursos de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, na manhã daquele dia. Sabedor de minha presença na cidade, Norberto Carlos Irusta, presidente da Biblioteca Freudiana de Curitiba, me convidou para ir à noite participar de um sarau que aconteceria na sede dessa instituição psicanalítica, no Batel, que, a convite dele ou de outros membros, eu costumava visitar quando ia a Curitiba. Disse-me que os saraus sempre ocorriam a partir de uma exposição oral sobre tema de livre escolha do convidado para ministrá-los, mas não me revelou quem seria esse convidado.
 
Quando lá chegamos, estava tudo preparado para o sarau: as garrafas de vinho, os queijos e frios que seriam consumidos, segundo o costume, durante os debates que se seguiriam à exposição oral. Os membros da BFC compareceram em peso: acho que mais de trinta presentes. E, de repente, Norberto anunciou que seria eu o expositor! Junto com o choque do inesperado - era evidente a impossibilidade de não atender àquela demanda -, veio-me à mente uma pergunta que exigia resposta imediata: sobre o que falar, assim de improviso, para aqueles psicanalistas tão estudiosos e competentes, que pudesse interessá-los e trazer alguma novidade capaz de dar combustível a uma boa discussão?
 
Quase que num mecanismo de defesa, veio-me Hobbes à ideia. Há alguns anos, eu vinha pensando na notável "antecipação", se assim se pode dizer, que Hobbes fez, ainda no século XVII, de temas que muito mais tarde Freud trabalharia em outra perspectiva, alguns dos quais viriam a ocupar posição nuclear na estruturação da teoria psicanalítica. Quando estudei Hobbes um pouco mais a fundo, no curso de doutorado em Filosofia Política da UNICAMP, entre os anos de 1982 e 1984, essas questões não podiam me ocorrer pela simples razão de que naquela época eu ainda não conhecia sequer os rudimentos da Psicanálise, e apenas estava iniciando o meu processo de análise pessoal. Mas dez anos depois eu já possuía suficiente percurso para articular, como faço até hoje, o campo da psicanálise com os campos do direito, da filosofia e da literatua, matérias de meu interesse bem anterior. A teoria hobbesiana das paixões, em particular, me parecia um material fértil para propor um diálogo com certos aspectos fundamentais da teoria psicanalítica. Foi daí que saiu a exposição que fiz no sarau, tal como está no texto, que é resultado da transcrição de fitas gravadas na ocasião, que o pessoal da BFC gentilmente me enviou para revisão.
 
Há alguns dias, Renata Conde Vescovi, da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, me pediu que lhe enviasse esse texto - que, por sinal, há vários anos eu havia discutido com o pessoal daquela instituição na capital capixaba. Isso me deu o ensejo de relê-lo, depois de tanto tempo. Fiquei emocionado ao relembrar as circunstâncias de sua enunciação e isso me trouxe a lembrança da perda do querido amigo Norberto, que tombou vítima de um fulminante ataque cardíaco, nos primeiros anos deste novo século, em plena vitalidade física e intelectual, no vigor dos seus cinquenta e poucos anos de idade. Essa lembrança me trouxe também a da perda de dois outros amigos queridos, poucos anos após a morte de Norberto, e que, juntamente com a dele, foram as que doeram mais fundo dentro de mim: Guy Van de Beuque, filósofo, matemático e cineasta, também de ataque cardíaco quando se encontrava na Índia em missão cultural oficial do país; e José Carlos Pixixita, músico, vítima de trágico acidente automobilístico. Em epígrafe, dediquei o texto a Norberto, em nome dos velhos tempos.
 
São Luís, 4 de abril de 2015
Agostinho Ramalho Marques Neto

Notas e Referências:

Palestra proferida de improviso durante sarau realizado na Biblioteca Freudiana de Curitiba, em 16 de maio de 1994. O autor revisou a transcrição das fitas gravadas na ocasião, introduzindo-lhe algumas modificações, mas mantendo o essencial da exposição oral.

Publicado em: FACULDADES INTEGRADAS DA SOCIEDADE EDUCACIONAL TUIUTI. Revista Tuiuti: Ciência e Cultura, v. 5, nº 1. Curitiba: Faculdades Integradas da Sociedade Educacional Tuiuti, março de 1996, p. 60-68.

[1] HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil [1651]. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 27.

[2] Id. Ibid, p. 27.

[3] HOBBES, Thomas. Do Cidadão [1642]. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 6 e seguintes.

[4] HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Op. cit., p. 60.

[5] Em HOBBES, o que está em jogo é o desejo de reconhecimento; em LACAN, o reconhecimento do desejo.

[6]  HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Op. cit., p. 46.

[7] Id. Ibid., p. 60.

[8] Id. Ibid., p. 34 (Grifo do autor).

[9] Id. Ibid., p. 104.

[10] Id. Ibid., p. 79-80, 103.

[11] Id. Ibid., p. 23.

[12] Id. Ibid., p. 12.


 

Imagem ilustrativa do post: Thomas Hobbes, philosopher // Foto de: Lisby // Com Alterações

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