Hirschl e a matriz metodológica desfocada na jurisdição constitucional comparada – Por Paulo Silas Taporosky Filho

04/09/2017

Ran Hirschl[2], em seu artigo “On the blurred methodological matrix of comparative constitutional law[3], expõe que o campo de estudo do direito constitucional comparado vem recebendo cada vez mais e novos entusiastas, o que culminou num certo tipo de renascimento de tal campo de estudo. Até mesmo a Suprema Corte dos Estados Unidos, com todo o seu conservadorismo nesse aspecto, estaria atualmente aderindo a possibilidades de referências comparativas. Entretanto, mesmo considerando todo esse interesse que vem crescendo, a metodologia comparatista pouco mudou, de modo que as bases epistemológicas permanecem inalteradas, ensejando num avanço que em realidade acaba sendo pouco significativo.

A crítica se dá no sentido de apontar para a problemática da falta de método quando do trato do tema. As abordagens comparatistas, quando feitas, muitas vezes assim o são de maneira descuidada ou desatenciosa, ensejando em problemas que acabam passando despercebidos caso não ocorra uma análise mais acurada sobre a questão. Diante disso, o cenário observado é o de um avanço apenas aparente, vez que justamente diante da ausência de um rigoroso basilar que dê suporte e oriente os estudos constitucionais comparatistas, a academia acaba apenas andando em círculos.

Hirschl evidencia que a atenção nos estudos constitucionais comparatistas deve se voltar para os aspectos principiológicos e métodos rigorosos que norteiam essa abordagem. Aquilo que chama de ‘migração de ideias constitucionais’ é um fenômeno salutar que possibilita reivindicações justas e devidas, permitindo avanços na jurisdição constitucional – desde que observados os critérios de base.

Objetivando expor as diversas nuances que se fazem presentes no método comparativo, Hirschl aduz que o termo ‘comparativo’ é comumente utilizado indiscriminadamente, quando na realidade existiriam quatros diferentes tipos de estudos comparativos.

O primeiro desses tipos seria o livre, no qual a partir do estudo “comparativo” de um único país, estaria aí presente o equívoco de se entender tal abordagem como comparativa, até mesmo pelo fato de o país estudado ser outro que não aquele a que o estudioso pertence, de modo que as diferenças nos mais variados níveis acabam deixando de ser levadas em conta. O erro nessa forma de abordagem do trato do tema consiste em se fazer leituras diretas e descontextualizadas de institutos estrangeiros, realizando-se uma comparação parcial sem que o todo seja considerado. No máximo poderia ser aproveitado o mapeamento realizado nesse tipo de estudo, consistente em se ter um apanhado informativo acerca de determinados temas e a forma pelas quais esses são tratados pela jurisdição constitucional de outros países – algo bastante pontual e superficial.

Uma segunda forma de estudo comparativo seria aquela em que ocorre uma autorreflexão, ensejando num melhoramento de abordagem comparatista. Isso ocorre pelo fato de que a intenção do estudioso que se utiliza de tal método se dá para com a busca de qual seria a melhor ou mais adequada regra em diferentes sistemas jurídicos. O ponto de enfoque aqui não é meramente pontual, mas leva em conta também o aspecto estrutural daqueles países estudados no que tange ao exercício jurisdicional: seus mecanismos de desenvolvimento político, a forma de emulação de regras, uma maior compreensão a partir da jurisprudência constitucional. Uma visão mais holística, mais abrangente, enfim, um discurso judicial globalizado é o que se intenta por essa forma de abordagem.

O terceiro tipo de estudo comparativo seria aquele que se destina a tecer ricas conceituações e estruturas analíticas a fim de que seja possível o pensamento crítico sobre as práticas constitucionais. A forma com a qual essa análise mais profunda e detalhada se dá é pela busca de uma maior compreensão acerca do contexto cultural no qual o sistema jurídico estudado se situa. E não apenas isso, mas também há o debruçar sobres os fenômenos sociais e políticos existentes naquele país em que o sistema é analisado. Por se tratar de uma abordagem que acaba geralmente recebendo contornos universalistas, enfatiza-se as semelhanças e diferenças entre os sistemas comparados não apenas em seu viés jurídico (lei e jurisprudência), mas se lavando em conta a maior parte possível do todo. O estudo acaba sendo mais sofisticado, vez que mais detalhista e analítico, de modo que acaba possibilitando algo além do mapeamento do constitucionalismo contemporâneo, pois também permite a criação de estruturas conceituais para um estudo sério da jurisdição constitucional comparada.

Já o quarto tipo de estudo comparativo visa transpassar o nível das descrições conceituais que fornecem o chão para as análises comparatistas. Aqui reside um objetivo que vai além da descrição, vez que há um intento de criação de uma teoria de inferência causal. Isso ocorre pelo fato de que uma boa teoria necessita de conceitos não apenas descritivos, mas também explicativos acerca dos fenômenos observados e tratados. A pesquisa em tal sentido necessita da formulação de hipóteses testáveis, confirmação ou afastamento dessas hipóteses mediante teste e a formulação de conclusões que acabarão se tomando como verdadeiras por inferência (indutiva). A seleção dos casos a serem analisados e a formalização robusta da pesquisa são importantes elementos desse método.

Hirschl trabalha com princípios oriundos da abordagem científica dos campos social e político (sendo as três principais formas de inferência causal e testes teóricos: pesquisa experimental, análise estatística de grandes conjuntos de dados e exame sistemático de um pequeno número de casos) objetivando a demonstração de que com a adesão desses princípios no estudo do direito comparado, seria possível ir além daquele terceiro tipo de estuo comparativo, formando-se efetivamente então conceitos e possibilitando o ‘situar-se’ num outro nível de estudo – o da inferência causal através de comparação controlada.

A abordagem dos “casos mais semelhantes” é uma das trabalhadas por Hirschl. Por essa lógica, ao selecionar comparações, o estudioso deve comparar casos que possuam características semelhantes, ou casos que correspondam a todas as variáveis que não são fundamentais para o estudo. A vantagem metodológica dessa lógica acaba sendo ilustrada em trabalhas que promovem uma abordagem estratégica para o estudo do comportamento judicial. Segundo essa abordagem, tem-se que os juízes não seriam apenas seguidores de precedentes ou julgadores de acordo com a ideologia de cada um desses, mas seriam também hábeis estrategistas que notam que suas opções de decisão são restringidas pelas preferências e reação antecipada da esfera política que os circunda.

Já na abordagem dos “casos mais diferentes”, tem-se uma comparação de casos diferentes onde há variáveis que não são relevantes para o estudo, mas que ao mesmo tempo combinam em alguns termos, o que acaba ensejando numa ênfase ao significado de consistência que possibilita fazer uma leitura comparativa desses casos mais diferentes, ou seja, encontrando-se o ponto variável que se faz presente de igual modo em diferentes casos, faz-se possível um estudo comparativo proveitoso.

Os “casos prototípicos” tratam-se de uma outra abordagem que também é explanada por Hirschl. O autor explica que a lógica do princípio que regula essa abordagem é bastante intuitiva. Se a intenção do estudioso for a de recorrer a um número limitado de observações para testar a validade de uma teoria ou argumento, deve-se possuir o tanto quanto possível de características-chave (conceitos/significado de consistência…) que se assemelhem aos casos analisados. A partir das descobertas derivadas de casos prototípicos, que servem como um exemplar representativo para outros casos, faz-se possível justamente a aplicabilidade destas em casos semelhantes. Não deixa de ser uma forma de raciocínio por analogia, onde os estudos resultam numa visão etnográfica mais abrangente que ensejam em transformações constitucionais.

Há também os casos “mais difíceis” que merecem a atenção no estudo comparatista. O princípio que determina essa abordagem como sendo de casos “mais difíceis” se dá com base na ideia presente na lógica formal conhecida como “ad absurdum”. Isso pelo fato de que a confiança na validade de uma determinada reinvindicação acaba melhorada quando provada a verdade de um caso que é, prima facie, menos favorável a essa. É um tipo de teste difícil realizado no qual se acaba logrando êxito: um estudo de caso que toma como base preceitos a priori de acordo com o teor de previsões que não lhes sejam favoráveis, mas que ainda assim acaba por demonstrar resultados que confirmam a teoria, dá motivos para apoiar esse tipo de teste com maior confiança. Ainda, quando no caso de uma hipótese não se confirmar numa situação “mais favorável”, a plausibilidade desta acaba ficando comprometida, de modo que se pode dizer que um único caso de relevância pode fazer valer uma teoria reivindicada, ou ainda afastá-la por completo.

Na questão dos “casos ultrapassados”, tem-se que muitas vezes as explicações outrora dadas foram feitas de maneira insuficientes, sendo necessário, portanto, uma nova explicação com base em uma teoria mais adequada ou de fato sedimentada. As causas desses “casos ultrapassados” geralmente são conhecidas. Entretanto, carecem de uma explicação, residindo aí a necessidade de que haja uma outra – mais fundamentada, mais concreta, mais plausível. Se outrora uma análise comparativa foi realizada sem uma devida robustez (podendo assim ter sido por diversos motivos, inclusive em decorrência de uma limitação teórica – não existente à época), no plano atual uma reanálise mais criteriosa pode apontar para fatores que passaram despercebidos à época ou que não ganharam a relevância devida.

O que Hirschl busca com sua exposição é um estudo unificado da migração de ideias constitucionais. Daí o estabelecimento de critérios e especificidades formais no trato da matéria que realiza ao longo de seu estudo, vez que condição necessária para uma análise robusta do direito comparado. O autor chega a brincar que há atualmente um bordão modista no cenário do constitucionalismo comparatista: “agora somos todos comparatistas”. Isso pelo boom que o estudo do direito comparado teve nos últimos anos, resultando num aumento dramático da produção de livros e disciplinas que se debruçam sobre a matéria. Entretanto, essa atenção voltada ao tema, em sua grande maioria, não leva em conta os aspectos metodológicos necessários para que se faça uma abordagem criteriosa e coerente. Daí que Hirschl diz que todo aquele potencial para a construção de uma teoria comparatista permanece em grande parte não cumprida.

O campo desse estudo é inundado de entusiastas. Entretanto, a grande maioria desses interessados no trato do tema deixa a desejar na abordagem realizada no comparatismo, vez que não há a devida atenção para com relação aos aportes teóricos, aos fundamentos epistemológicos, aos princípios metodológicos e tudo aquilo que deve servir como base fundante e estrutural para o estudo do direito comparado.

Em que pese todo esse aumento no interesse do estudo temático, Hirschl aponta para diversas perguntas que permanecem sem respostas nessas abordagens descuidadas: Quais os países e Tribunais que são mais abertos à migração transnacional de ideias e por qual razão? Quais são os tipos de controvérsias constitucionais que acabam sendo mais propícios ao “empréstimo entre Cortes”? Qual é o impacto da migração de ideias constitucionais sobre os métodos de interpretação? Quais as interligações que podem ser identificadas nos aspectos democráticos, econômicos e culturais quando observados holisticamente em conjunto com a migração transnacional de ideias constitucionais? Qual o motivo do fenômeno atual da migração de ideias constitucionais? Enfim, é justamente pelo fato de existirem essas e diversas outras perguntas sem respostas, quando das abordagens desatenciosas no direito comparado, que os estudos comparativos devem estar atentos as preocupações metodológicas e seguir um formato de pesquisa orientados pela inferência e princípios norteadores para a seleção dos casos a serem analisados. Vale lembrar que a explicação de algo não significa meramente a sua descrição.

Falta ainda uma coerência metodológica nos estudos de jurisdição constitucional comparada. Hirschl sustenta que a comparação é uma ferramenta fundamental de análise acadêmica. É através do estudo comparado que são fomentadas as possibilidades de descrição legítima e estabelecimento de um discurso jurisdicional globalizado. Daí a necessidade da observância de um “kit básico do comparatista”, o qual deve conter algumas ferramentas indispensáveis para o trato da matéria: competências jurídicas e linguísticas pertinentes; conhecimento detalhado dos sistemas jurídicos estrangeiros; familiaridade com as metodologias comparativas básicas; capacidade de se manter constantemente atualizado e informado acerca dos desenvolvimentos constitucionais no exterior; sensibilidade cultural; vontade de passar longos períodos de tempo fazendo trabalho de campo.

Assim, parte significativa do problema, sustenta Hirschl, é reflexo da desfocada matriz metodológica de comparação de jurisdição constitucional. Muitos comparatistas constitucionais pecam pela aderência a uma abordagem mais conveniente (ou seja, mais fácil) para a seleção de casos, negligenciando (ou desconhecendo) assim os princípios metodológicos básicos de comparação controlada e formato de pesquisa frequentemente utilizados nas ciências sociais.

Hirschl aduz que talvez já seja tempo de os estudiosos da jurisdição constitucional comparada se libertarem daquelas restrições doutrinárias tradicionais, passando a contribuir efetivamente com a construção de uma teoria firme e coerente em que sejam implantados métodos mais rigorosos. Tal agir ajudaria a reduzir o fosso entre a teoria constitucional e a política constitucional, além de se estabelecer assim uma abordagem comparatista mais unificada e coerente.


Notas e Referências:

[1] Síntese de Seminário apresentado pelo autor na disciplina “Jurisdição Constitucional Comparada”, da professora Estefânia Maria de Queiroz Barboza, no Mestrado em Direito da UNINTER.

[2] Professor da Universidade de Toronto: https://www.law.utoronto.ca/faculty-staff/full-time-faculty/ran-hirschl

[3] Segundo capítulo do livro “The Migration of Constitutional Ideas”, editado por Sujit Choudhry

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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