Hermenêutica jurídica analógica e sentido literal possível

20/04/2017

Por Luis Eduardo Gomes do Nascimento – 20/04/2017

A meu pai Cristóvão Ferreira, operário-poeta

“Não há sinônimos” (Octávio Paz)

No texto sobre a hermenêutica de Espinosa, publicado nesta prestigiosa revista, entrevimos três níveis da interpretação: o gramatical, o estrutural e o histórico. Neste pequeno ensaio, limitar-nos-emos ao primeiro aspecto que, sem dúvida, é o mais problemático e que tangencia a questão do Estado Democrático de Direito, da separação dos Poderes e, o mais importante, da potência ou impotência do dever ser.

Onde termina a linguagem, começa a força. A assertiva desde logo nos lança na problemática dos circuitos da linguagem: da edição do texto até o processo de interpretação/aplicação do direito há uma continuidade preservando o Estado democrático de direito ou uma descontinuidade corrosiva? Como assegurar a continuidade entre a edição e a aplicação dos textos? Esse problema é crucial. Conforme alerta Friedrich Müller, a instância prolatora de decisão que, à míngua de metodologia correta, não se baseia em textos de normas exerce violência[1].

A ausência de estudos semiológicos mais acurados acerca do signo desencadeia incompreensões. É urgente a necessidade de levar à frente pesquisas semiológicas voltadas a entender os circuitos dos signos, demarcando um horizonte em que a produção signíca é feliz ou malsinada.

Para Saussure, o signo não une uma palavra e uma coisa, mas um conceito e uma imagem acústica. Define o signo de forma binária, compreendendo o significante – imagem acústica - e o significado – o conceito, ou a ideia. O signo ostenta quatro princípios: a) arbitrariedade, por não existir vínculo natural entre o significado e o significante, tanto que a ideia de água em francês tem como significante “eau” b) linearidade, pois implica numa extensão mensurável, isto é, os elementos se apresentam um após outro numa cadeia; c) imutabilidade, já que é exterior às consciências individuais e revestido de caráter cogente (o signo é um fato social); d) mutabilidade, pois é possível um deslocamento da relação entre significado e significante.

No entanto, a grande novidade, trazida por Saussure, é a noção de valor. Reduzir o signo a mera junção de um som – imagem acústica - com um conceito importa em isolá-lo do sistema ao qual pertence. O sentido de um signo só surge diante da rede de diferenças no qual está imerso. O signo não é uma entidade positiva, presença a si, mas efeito da diferença, definindo-se pelas relações que mantém com signos vizinhos. Como ultima Saussure: “Assim o valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia; nem sequer da palavra que significa ‘sol’ se pode fixar imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor: línguas há em que é impossível dizer ‘sentar-se ao sol’”[2].

A identidade só surge enquanto diferença. Por isso, Derrida, nas geniais leituras que empreendeu, viu em Saussure uma forma de superação do logocentrismo, presente na ideia metafísica de um signo idêntico a si e unívoco.

Por isso, sem a mediação da leitura, o texto nada mais é do que um conjunto de possíveis à espera de atualização. A compreensão relacional do signo permite rechaçar ideias metafísicas como mínimo é linguístico, bem como o originalismo, o qual acredita na “pretensão de uma interpretação sustentar-se sozinha no vácuo, sem história alguma, como se fosse possível captar, sem a mediação de uma tradução de leitura, o significado original de um texto ou até sua intenção”[3].

Interpretar consiste na reformulação do texto normativo. Afastado o universalismo ante rem, emerge a necessidade de mediação, de sorte que o texto de partida demande ser desenvolvido, de forma mais ampla e mais extensa, por um outro texto, sem que isso implique na construção de um novo texto: entre o texto de chegada e o de partida deve haver uma equivalência analógica[4].

Décio Pignatari encontra na analogia o esteio da própria função sígnica: “um signo pode ser definido como toda coisa que substitui outra, de modo a desencadear (em relação a um terceiro) um complexo análogo de relações.”[5]

Para a compreensão do sentido literal possível, resgatamos o conceito de interpretante de Peirce. O signo, para esse grande filósofo, é aquilo que representa algo para alguém, criando na mente a que se dirige um signo equivalente, um signo mais desenvolvido. É justamente a esse signo criado que denomina interpretante. Um signo reenvia a outro, uma expressão precisa ser interpretada por outra que a desenvolva de forma mais precisa e mais ampla. O processo de significação implica, pois, sempre em continuidade e extensão, constituindo uma semiose ilimitada. Mas isso não significa uma corrosão da significação[6].

A necessidade da mediação não quer significar uma aposta no subjetivismo, tampouco recair no aguilhão semântico. A noção de interpretante de Peirce, inserida na relação semântico-pragmática, permite afastar tais argumentos. O interpretante de um signo é sempre outro signo mais desenvolvido. Assim, o conceito de interpretante possibilita a superação do esquema sujeito-objeto, colocando em evidência e em primeiro plano a instância que se exprime. Bem por isso, o interpretante é essa instância que, para além do esquema sujeito-objeto, se exprime. Consuma-se, portanto, quando emissor e receptor atingem uma compreensão mútua do signo[7]

Interpretar, como já salientamos em outro lugar, constitui o uso público da razão, de forma que se deve chegar a significações partilháveis intersubjetivamente e não às representações que sempre estão ligadas às particularidades de quem interpreta, isto é, a parte encobridora do eu que, fechada, não alcança o aberto do comum[8].

Frege apresenta a distinção entre representação e significado. A representação é uma imagem interna que decorre das lembranças de impressões sensíveis passadas de cada um, encerrando-se na mera particularidade. Tem, pois, um aspecto meramente subjetivo. Já o significado aponta para um comum partilhável, alcançado certa objetividade[9].

Quando se decide com base em representações, verifica-se a apropriação privada da linguagem, já que as imagens subjetivas não logram ultrapassar o horizonte fechado em que emergiram.

Se o eu imediato acha que tem acesso imediato à verdade, demonstra-se que a sociedade não atingiu o ponto em que o uso público da razão é pleno, ressonando a colonialidade do poder que, preso a si, não se vê na responsabilidade ante o outro, mas como privilégio aristocrático. A boa interpretação exige a capacidade de aprendizagem, de pôr em questão os próprios pressupostos, admitindo-se a possibilidade de abandoná-los em busca de um novo sentido. Isso não se dá, como se vê, sem a torção da reflexibilidade.

Torna-se necessário incorporar à hermenêutica a crítica das ilusões do sujeito elaborada por Marx e Freud. Um dos primeiros passos é superar a dicotomia entre explicação e compreensão que acompanha o trajeto hermenêutico. A verdade contra o método não permite uma retomada crítica do horizonte não tematizado que condiciona toda compreensão. A aposta de Marx e Freud é que, ao deter-se no movimento enquanto mediação reflexiva, possa emergir um sujeito mais reunificado. Não ressoa aqui uma leitura errônea e ingênua de que se defende uma síntese feliz, isto é, uma autopossessão plena, mas, na medida em que se retoma o que estava oculto, o sujeito pode ir se reunificando em um processo dialético inacabado.

A analogia está associada à possibilidade de expansão do ordenamento a situações não previstas, conferindo a um caso não regulado a mesma solução de um caso regulado, em virtude de uma relação de semelhança. Porém, na medida em que o processo de produção dos signos é analógico, pode-se, com Castanheiras Neves, afirmar que a analogia é convocada sempre na interpretação, seja no contínuo normativo, seja no descontínuo normativo:

“Se na interpretação, como momento da concreta realização do direito e em todo o processo metodológico dessa realização, concorrem momentos analógicos e não se pode assim nunca dispensar a analogia, o certo é que há analogias integradas na realização do direito para a qual uma norma pode ser invocada como critério (nos termos que vimos resolver-se no problema de ‘norma aplicável’), analogias essas participantes no continuum normativo-judicativamente constitutivo dessa mediação e que, por isso, diremos analogias imediatas ou próximas, e analogias que são convocadas quando não se oferece uma norma aplicável como critério judicativo e convocadas justamente então como o directo critério da autónoma decisão judicativa, analogias estas que já diremos mediatas ou distantes.”[10]

O que sempre se olvidou foi justamente o papel da analogia quando uma norma, ou melhor, um texto é invocado como critério de decisão. A analogia, então, é o modo pelo qual se dá a concretização do direito.

Entre os pitagóricos, à analogia fora atribuído o sentido de proporção: igualdade ou identidade absoluta.  No entanto, exsurge, no sentido qualitativo, como relação de semelhança entre termos. A analogia se opõe, pois, à ideia de identidade, articulando-se como uma semelhança de relações cujo sustentáculo não é, como se supõe, as propriedades particulares de objetos, mas as relações recíprocas entre essas propriedades.

A analogia de que tratamos, importante anotar, difere da proporção matemática que se coloca como igualdade de relação, pois se estrutura numa similitude de relações. A analogia não trata de relações quantitativas, mas de relações qualitativas que lidam com o heterogêneo. O caráter problemático do direito, presente na necessidade de travessia do abismo entre o texto e o caso, demanda a analogia como ponte: por ela, retiramos a indicação de uma relação entre um dado e um não-dado, consoante ressalta Heidegger[11].

Lidando com a heterogeneidade entre o texto e caso, a analogia não logra simplificar a complexidade da concretização do direito nem aposta na substantivação do universal que presume domesticar a contingência, mas busca, sem esquecer o diferente, alcançar uma relação de similitude. Na analogia, as entidades diversas não perdem suas diferenças, como se pudessem ser arranjadas na univocidade, permitem, ao revés, uma reconciliação entre as diferenças, sem suprimi-las.

Agora se torna possível extrair em Eco três elementos essenciais para o enfrentamento correto do sentido literal possível: a) toda expressão deve ser interpretada por uma outra expressão; 2) o significado de um signo é a soma de seus empregos; 3) interpretar implica antever todos os contextos possíveis em que o signo pode aparecer.[12].

Façamos uso de alguns exemplos. A constituição, em seu art. 37, inc. XVI, veda o acúmulo de cargos, ressalvando, dentre outras situações, a de um cargo de professor com outro técnico ou científico. A expressão cargo técnico ou científico precisa ser interpretada por outra expressão. Não havendo sentido fixo, original ou fundante, a mediação interpretativa é necessária. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal definiu, como cargo técnico ou científico, aquele que exige formação específica na área de atuação, com habilitação específica de grau universitário ou profissionalizante (RMS 28497/DF, STF; RMS 42.392/AC, STJ). Nesse caso, a decisão se nos apresenta acertada, já que, dentro da moldura analógica, ao mesmo tempo em que foram afastadas interpretações que limitavam o acúmulo à habilitação haurida em grau universitário ou que referendavam um nominalismo equivocado, como se a mera estipulação pela lei de que um cargo é técnico ou científico fosse suficiente.

Já no caso do HC 126.292/SP, que reduziu a pó a presunção da inocência, não há qualquer equivalência analógica entre a culpa emergente do trânsito em julgado e a execução antecipada da pena, em caso de condenação em segundo grau. Aqui, transbordando da moldura analógica, criou-se outro texto, atuando o sistema de justiça, conforme anota com coragem o grande jurista e professor Pedro Estevam Serrano, como poder desconstituinte[13].

A tarefa que se nos incumbe, já agora percebemos, consiste em compreender e delimitar a moldura analógica, superando, quem sabe, o dilema de Kelsen, de sorte mesmo a submeter as decisões ao uso público da razão. Uma tarefa ingente, não desconhecemos, e que, precisamente por isso, deve ser obra coletiva, para além de disputas narcisistas.


Notas e Referências:

[1] MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.

[2] SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2010, p. 134.

[3] RICOEUR, Paul. Pensar la biblia: estudios exegéticos y hermenéuticos. Barcelona: Editorial Herder, 2001, p. 338.

[4] Ver nosso: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/16/prolegomenos-para-uma-hermeneutica-analogica.

[5] PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968, p. 26. Destaque nosso. Não é apenas o nosso poeta Pignatari que defende a ‘natureza’ analógica do signo, Octávio Paz, Saussure, Paul Ricoeur, Enrique Dussel e Barthes defendem a mesma tese. No direito, Austin, MacCormick, Weinreb, Kaufmann, Hassemer e Castanheiras Neves, igualmente.

[6] PEIRCE, Charles. Philosophical writings of Peirce. New York: Dover Publications, 2016, p. 99.

[7] Santaella, Lucia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Cengage Learning, 2008, p.68.

[8] A analogia tem um sentido ético e político indisfarçável. Caetano, na canção Santa Clara, capta bem isso. Quando diz que a queda é uma conquista quer realçar a perda da unidade originária, exigindo a saída da crispação identitária para o Outro. Por isso, fala do perto encoberto – o eu imediato e narcísico - que tem de se abrir ao porto desatado. A ética da ialorixá que vê o samurai, isto é, enxerga o distinto outro e segue inteira porque no comum. Na canção, Narciso sabe ressuscitar, é dizer, sai do seu fechamento. O comum analético não se confunde com o comum conservador, de Sloterdijk ou Gadamer. No Brasil, o aspecto político implica o duro, difícil e paciente labor político de sair do republicanismo proprietário em busca do republicanismo comunitário.

[9] FREGE, Gottlob. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 64-5.

[10] NEVES, A. Castanheiras. Metodologia Jurídica: Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 272. No direito penal e em todo direito sancionatório, deve-se afastar o uso de analogias distantes. Nesses casos, a instância decisora deve alertar o legislador para modificar o texto normativo, restando assegurada a racionalidade do direito, como se deu no caso de furto de energia elétrica na Alemanha.  Ver texto indicado na nota 4.

[11] HEIDEGGER, Martin. Qu’est-ce qu’une chose? Paris: Gallimard, 1971, p. 324.

[12] 10. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, p. 229.

[13] Sobre a jurisdição como produtora de exceção, ver o intempestivo, isto é, atual e urgente livro: SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016.


Luis Eduardo Gomes do Nascimento. Luis Eduardo Gomes do Nascimento é Professor na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil. Ex-Professor na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina, PE, FACAPE, Brasil. Mestrando em Ecologia Humana na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil. Advogado. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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