Hermenêutica em Tempos de Finados: a Construção de Princípios ad-hoc e de Conceitos Assertóricos – Por Rosivaldo Toscano Jr.

02/11/2016

Demos início a uma série (aqui) muito importante para compreendermos o papel que o Judiciário vem exercendo na vida social, buscando descobrir onde reside a legitimidade de suas decisões e quais os seus limites. Enfim, qual a relação que deve(ria) se estabelecer entre o juiz e a normatividade? Começamos falando sobre os significados de poder “potestas”, poder “potentia” e poder obediencial. Depois (aqui), discutimos as principais linhas que demarcam a judicialização da política do ativismo judicial. Depois, partimos para uma reflexão sobre a atribuição inautêntica de sentidos e o estado de exceção permanente na ordem jurídica (aqui).

Frente a um texto constitucional de vanguarda e atributivo de direitos, os discursos de poder do estamento e do capital (que se retroalimentam, pois que o segundo condiciona o primeiro) buscam a solução para sobrepujá-lo: desfuncionalizar a hermenêutica jurídica, desatrelando-a da normatividade constitucional, através: a) da atribuição arbitrária de sentidos, como já visto; b) da construção de princípios ad-hoc e de conceitos assertóricos; c) por meio da ponderação de princípios. Hoje, no dia de finados, bem sintomático para o momento institucional que estamos vivendo, veremos o conteúdo da alínea “b”. Em tempos de morte da integridade e da coerência do direito, essas deturpações hermenêuticas terminam sendo bastante úteis à vontade de poder do sem-limites. A criação de pretextos serve para alimentar o abuso e ludibriar os incautos. Vejamos.

Princípios ad-hoc e Princípios Pragmáticos ou Problemáticos

A criação de princípios ad-hoc é uma das manifestações da postura decisionista e solipsista, absolutamente contrária à Constituição. Trata-se, porém, de uma prática disseminada na atualidade. E o pior, com um pretenso viés de vanguarda. Ao alvedrio da normatividade (aqui entendida como ordem de regras e princípios constitucionalmente referenciada), surge como protorregra.

Há, agora, a figura do fazedor de “princípios”, notadamente nos tribunais superiores. Quando não o criam, institucionalizam-no quando os utilizam como ratio decidendi. Os princípios ad-hoc funcionam tal qual um slogan: quando mais impactante, melhor. Trata-se de um estratagema, pois esconde sua real finalidade: decidir conforme o desejo de quem os cria/utiliza, contornando a normatividade. O princípio ad-hoc foge da Constituição (e dos tratados internacionais aqui vigentes) porque não tem sustentação normativa.

Em vários textos Lenio Streck denuncia essa falsificação dos princípios jurídicos, pois são lançados nas fundamentações como pretexto para o exercício da pura vontade de poder. Aproveitamos para comentar alguns desse chamados princípios ad-hoc tão em moda na nossa prática forense: [1] a) princípio da confiança no juiz da causa – uma espécie de canivete-suíço retórico, que no processo penal é usado tanto para manter preso quanto para soltar alguém com base na confiança que se teria no juiz de primeira instância, que estaria mais próximo dos fatos; b) princípio do fato consumado – sob seu auspício toda sorte de ilegalidades pode ser mantida, mesmo que ao alvedrio das determinações legais em relação à prescrição e decadência de direitos – um guarda-chuvas retórico na proteção da má-fé; c) princípio da instrumentalidade processual – herdeiro da filosofia da consciência, por meio dessa falácia normativa se viola o devido processo legal através de posturas utilitaristas; d) princípio da verdade real – trata-se, talvez, do maior caso de “buraco-negro normativo” ainda em pleno uso no nosso processo penal, inadmissível em um sistema acusatório. E aproveitamos para desafiar o leitor a encontrar o fundamento constitucional dessa grande falácia. Sob o pretexto de busca da verdade real atua, lamentavelmente, o inquisidor que há dentro do juiz. O Estado Democrático de Direito, claro, naufraga nessas horas.

O juiz que conduz a produção da prova, por mais bem intencionado que seja, termina se contaminando pelo objeto da busca. Vincula-se psicologicamente ao que procura. E “quem procura, acha”. E por que procura? Porque quem procura já saiu do lugar de isenção que deveria estar, já deixou a posição de imparcialidade. As partes existem exatamente para fazer a procura. Sem perceber, o juiz investigador da “verdade real” se despe da toga e passa a vestir a beca da acusação. E por que a da acusação? Porque o ônus de provar o alegado é do acusador. Ora, se a função do acusador é comprovar a materialidade a e autoria dos fatos, o magistrado que também investiga termina por auxiliar o acusador em um ônus que é exclusivo deste. Deixemos as partes se atuarem e cumprirem seus papéis. Cabe a elas a iniciativa da prova e sua produção. Ao juiz, garantir a paridade de armas, o respeito aos direitos constitucionais das partes, a valoração das provas colhidas por estas e o julgamento com base em um juízo normativamente motivado. Inclusive, sob uma ótica lacaniana (Real, Simbólico e Imaginário) o Real jamais será conhecido como tal porque o real é o que não nos é acessível. Em razão da impossibilidade de apreensão do todo é que simbolizamos. Nós vivemos na esfera do Simbólico, que faz a mediação com o que nos é possível assimilar, conhecer: a realidade. O Real é o que sobra. Já em relação ao Imaginário, o magistrado-investigador se deixa tomar por ele e, com ele, pelas imagens de uma pretensa verdade a priori da instrução criminal. O imaginário desliza… é o lugar do ilusório. Na verdade, o trabalho do magistrado nada mais é do que o de um historiador. E, no sistema acusatório, quem fornece o material de estudo para o magistrado são as partes. É importante que o juiz tenha consciência desse seu papel.

Mas subsistem, também, categorias antigas de princípios, atreladas ao paradigma do positivismo ainda em uso: os chamados princípios gerais do direito. Segundo Rafael Tomaz de Oliveira, os princípios gerais do direito são reminiscências do jusnaturalismo, como figuras capazes de suprir eventuais lacunas no direito sob a ótica positiva e de reduzir eventuais contradições que pudessem surgir da interpretação dos códigos.[2] Do jusnaturalismo também advém sua forma de aplicação, como axiomas de justiça a partir do qual a dedução seria feita. Eles se extrairiam, em última análise, da própria lei.[3] Não há, assim, uma referência à Constituição – omissão que também é, em nosso estágio de evolução da teoria constitucional, absolutamente inaceitável. Terminam tendo, hoje, o mesmo destino dos princípios ad-hoc: nenhuma força cogente porque não são princípios, normativamente considerados.

Lenio Streck dá o nome de pan-principiologismo[4] a essa prática de criar princípios ah-doc, como se fosse possível, a partir da assunção de uma ideia de “elasticidade” semântica da Constituição, rompê-la por meio da retórica. Sempre, claro, ao bel prazer do intérprete e conforme seus valores pessoais (leia-se, arbitrariedade). Em razão da prévia hierarquização funcional que estamos assistindo, esses supostos princípios ou são fabricados ou referendados e posteriormente reproduzidos nas instâncias superiores e utilizados como álibis teóricos nas decisões desses tribunais e pelos juízes das esferas iniciais da Jurisdição. Uma rápida reflexão denuncia sua auto-referência, seu caráter de embuste discursivo, uma vez que são desatrelados da produção de sentidos a partir da Constituição e dos tratados internacionais incorporados à nossa ordem jurídica. Sua força é de pura eloquência vazia, fruto, como já dito, do impacto do significante.

Nesse ponto, aliás, cabe acrescentar uma questão muito importante. Há uma diferença ontológica entre regras e princípios – os verdadeiros, os princípios pragmáticos ou problemáticos,[5] e não esses embustes retóricos ad-hoc. Regras e princípios são diferentes, mas não estão cindidos. Os princípios são a inserção do mundo prático no direito. Não são uma “abertura da interpretação”, como querem os neopositivistas.

Isso significa que não se aplicam princípios isoladamente (ou o que seria do direito se o juiz pudesse julgar sempre com base no princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, diretamente?). E nem regras são aplicadas diretamente. Isso porque não há uma regra que não tenha um princípio que a sustente normativamente. Toda regra só pode ser entendida a partir da existência de um princípio instituidor. E os princípios são sempre considerados sob a ótica constitucional.[6] Princípios validam ou invalidam regras. Sendo assim, não existem, dentro de uma ideia de Estado de Direito, princípios que não tenham um fundamento na Constituição e nos tratados internacionais incorporados à nossa ordem jurídica, como ressaltamos. Por isso não existem os tais princípios ad-hoc.

Há uma antecipação de sentido em toda norma que deriva de uma regra, e a referida regra se fundamenta em um princípio, embora tal princípio nem seja percebido pela cotidianidade como ocorre quando um ator jurídico se depara com um caso que considera “fácil”. Somente quando no plano hermenêutico se torna problemática a compreensão é que ele aparece. Mas o princípio sempre esteve lá, validando ou não a regra, na atribuição de sentido que é a norma. Lembramos, aliás, que sempre compreendemos o texto (regras e princípios) como normas, na facticidade. Portanto, como dizemos aqui nesse escrito, não existem casos fáceis ou difíceis a priori, isto é, longe da faticidade.

Se todo ente só é no seu ser, não há regras que não digam respeito a algo. Não existem conceitos em abstrato, longe da faticidade. A distinção entre regras e princípios, assim, não é estrutural como quer Alexy. Como acentua Streck, os princípios representam a tentativa de resgate de um mundo prático abandonado pelo positivismo. E as regras são meios para garantir um “estado de coisas” desejado. Mas essa distinção só pode existir no plano apofântico. No plano hermenêutico, da compreensão, não há cisão, apenas diferença. Como novamente explica Streck,

A diferença é que sempre há uma ligação hermenêutica entre regra e princípio. Não fosse assim, não se poderia afirmar que atrás de cada regra há um princípio instituidor. Esse princípio, que denominamos instituidor, na verdade, constitui o sentido da regra na situação hermenêutica gestada no Estado Democrático de Direito. Essa é a especificidade; não é um princípio geral do direito, um princípio bíblico, um princípio (meramente) político. No fundo, quando se diz que entre regra e princípio há (apenas) uma diferença (ontológica, no sentido da fenomenologia hermenêutica), é porque regra e princípio se dão, isto é, acontecem (na sua norma) no interior do círculo hermenêutico. O sentido depende do outro, a partir desse engendramento significativo.[7]

Conceitos Assertóricos

Além disso, há, também, a criação de chavões, de jargões com pretensão metajurídica. Da mesma forma com o que acontece com os princípios ad-hoc, são álibis retóricos que servem para o exercício da vontade poder de quem os utiliza. Esses clichês são utilizados de maneira atemporal e abstrata, de modo a encobrir seu caráter de manipulação discursiva da razão instrumental. O caso concreto fica obnubilado em detrimento de teses. O conceito assertórico é o que se põe no lugar da facticidade. Mas ele também é vazio de um sentido a priori, até porque não existe um sentido a priori das coisas – as coisas não têm essência. O positivismo esconde a facticidade. Na busca da pureza, faz-se necessário o sacrifício do mundo prático. E com isso se dá abertura para uma atribuição de sentidos descolada da realidade do caso concreto. Sem concretude, barra-se a inserção da Constituição no mundo. Possibilita-se, assim, o exercício da vontade de poder. E quanto mais autoritária uma sociedade, maior o manejo desses recursos para fins destoantes dos apregoados na Constituição e nos tratados internacionais que incorporamos.

Para facilitar o entendimento do que vem a ser um enunciado assertórico, trazemos alguns exemplos. “O ordinário se presume; o extraordinário se prova” – foi com esse chavão que a ministra Rosa Maria Weber fundamentou seu voto pela condenação de José Dirceu no afamado julgamento da ação penal 470. Ocorre que na sua famosa obra do século XIX, Malatesta disse que o ordinário, no processo penal, é sempre a inocência;[8] assim, descolada de seu contexto, a frase acima se tornou uma mera ferramenta retórica que, diante da corruptela do uso dos precedentes judicias (Cap. 5), serviu para fins completamente contrários ao sentido atribuído pelo próprio autor, tornando-se uma protorregra dentro de uma tradição inautêntica. Outro: “a palavra da vítima tem especial importância nos crimes contra os costumes”. Tem ou não tem. Isso vai depender do caso concreto. Um julgamento não é algo tão simplório que caiba em um chavão.

Acerca dos conceitos assertóricos, Lenio Streck faz a historicidade do tão conhecido e usado “legítima defesa não se mede milimetricamente”. O leading case dizia respeito a um caso em que o acusado, após ver a vítima conversando com a esposa daquele, foi tomar satisfações e após ter sido insultado, descarregou o revólver, tendo uma das balas atingido a vítima nas costas. E assim, o enunciado, descolado de sua facticidade,

[…] passou a ser aplicado a casos concretos de faca contra revólver, pedaço de pau contra espingarda, um simples puxar de um pente para justificar a legítima defesa putativa e até mesmo para justificar a ‘legítima defesa da honra’ (sic), para citar apenas algumas das hipóteses.[9]

Descolados da facticidade, esses enunciados assertóricos são como produtos em uma prateleira. No supermercado dos conceitos, eles estão à disposição. É só pegar, pôr no carrinho e usá-los como se bem quiser.[10] São o coringa do jogo. O problema é que a atribuição de sentidos não pode ser um jogo no qual se exercita (escamoteadamente) a vontade de poder.

 

Notas e Referências:

[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, op. cit., p. 147-149.

[2] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito, op. cit., 2008, p. 50.

[3] Ibid., p. 51.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, op. cit., p. 102-103.

[5] Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito, op. cit., 2008, p. 50.

[6] E diz Streck “Por isso, todo ato interpretativo (portanto, aplicativo) é ato de jurisdição constitucional. Mesmo quando o problema parece estar resolvido mediante a aplicação da regra, deve o intérprete – e se trata de um dever constitucional que tem a sua dimensão ditada pelo nível de seus pré-juízos legítimos (ou ilegítimos) – verificar se o princípio que subjaz à regra não aponta em outra direção (quando não se está diante de simples análise paramétrica, em que a regra afronta princípios ou preceitos constitucionais).” (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 315).

[7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 305-306.

[8] Para Malatesta, existem dois princípios que regem a prova. Um que ele chamou de princípio lógico – que advém dos meios de convicção que o espírito humano possui e também no modo de ser das coisas. Para ele, “na colisão entre um facto positivo e um facto negativo, quem afirma o facto positivo tem de o provar, com preferência a quem afirma o facto negativo. É o velho brocardo: probatio incumbit ei qui dicit, non qui negat.” O outro é o princípio ontológico, sempre superior ao lógico e que apregoa que o ordinário é as pessoas não cometerem crimes. E arremata: “O homem no maior número dos casos não comete acções criminosas, o homem ordinariamente é inocente; a inocência por isso presume-se. A presunção da inocência não é portanto mais do que uma especialização de grande presunção genérica, que expusemos: o ordinário presume-se. E como, pelo princípio ontológico, presumindo-se o ordinário, é o extraordinário que deve provar-se, segue-se daí que, aberto o debate judiciário penal, é à acusação que cumpre a obrigação da prova” (MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 2. ed. Tradução de J. Alves de Sá. Lisboa: Livraria Clássica, 1927, p. 141.)

[9] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, op. cit., 2011, p. 102-103.

[10] O STJ, por exemplo, é o Walmart. Tem chavões oriundos de julgados para todos os gostos. Para os mais duvidosos (e inacreditáveis), inclusive.

 

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