HC 126.292 – Por um “aufklärung” metateórico

27/02/2016

Por Laura Mallmann Marcht - 27/02/2016

A decisão deste dia 17 de fevereiro no Supremo Tribunal Federal refletiu de que modo nosso “Guardião da Constituição” tem a tutelado Certamente, aos que buscam por um país mais autoritário na execução de suas leis, bradaram palmas fervorosas à decisão proferida a partir do HC 126.292. Esta permitiu a possibilidade da execução da pena após decisão condenatória confirmada em segunda instância, deixando os estudiosos da ciência jurídica perplexos, dado que a Constituição brasileira passou a exercer um caráter meramente político no contexto atual.

É necessário voltar às origens, aos fundamentos básicos, para evidenciar como um dos maiores legados da teoria do direito foi gradativamente relativizado. Já nas disciplinas introdutórias do curso, é apresentada a famosa pirâmide de Kelsen. Nessa pirâmide, encontram-se na base, as leis ordinárias, decretos e resoluções. Após, estão os códigos. Logo acima, estão as leis de caráter supralegal. E no topo, encontra-se a Constituição. Ainda é possível evidenciar acima da Constituição, uma "norma hipotética fundamental", que irradia em toda estrutura.

Reducionista dizer que essa é a origem do positivismo jurídico, mas é marco fundamental para o direito que conhecemos hoje. Acompanhando essa estrutura analítica, é válido citar em que aspecto do Garantismo Jurídico essa teoria se insere. Diante dos diversos textos já produzidos por nossa página Garantismo Brasil, como Garantismo Jurídico, Por uma Concepção Substancial de Democracia, Garantismo Brasil e Sconfinato e Retomando o Garantismo Jurídico, não é necessário apresentar o conceito da teoria em seu amplo aspecto.

Porém, faz-se crucial entender porque o Garantismo não é abolicionista, conforme já enfatizado pelo texto O sistema penal e a proposta relegitimante minimalista, produzido pelo professor Maiquel Dezordi, e também pela Palavra do Coordenador, produzido pelo professor Alfredo Copetti Neto, coordenador do projeto.

Diferente do que se imagina, o Garantismo tem como primado o positivismo jurídico. É com o nascimento das Constituições modernas que surge a preocupação com o indivíduo enquanto cidadão. Essas estabeleciam um poder mínimo, tutelando certos direitos fundamentais, como as liberdades individuais, políticas e econômicas. A ruptura com o Estado Absoluto faz surgir um “Estado legislativo de Direito”, no qual o princípio da legalidade é a única fonte de validade e existência do direito.

Com o surgimento da ideologia liberal, com os “direitos de”, que preconizam a não intervenção estatal por meio de vedações legais capazes de limitar a atuação do poder estatal, é que foi possível notar as primeiras manifestações jurídicas e sociológicas das Cartas Magnas. Trata-se da criação de garantias liberais negativas de não prestação, de conservação do passado por meio da coerção, assim explicando o uso do direito penal como exemplo a aplicabilidade do garantismo.

É com o nascimento do Estado de direito liberal e através do princípio da legalidade, que se torna possível o reconhecimento do direito como fonte de legitimação. Nesse sentido, a metateoria (teoria do direito) tem por base o positivismo jurídico, relacionando o direito como é, ao direito como deve ser. Somente a partir dos pressupostos de Kelsen, foi possível atribuir à teoria do direito o reconhecimento como disciplina autônoma e sistemática para além da análise da estrutura formal dos ordenamentos jurídicos, havendo a ruptura o entre Direito e Estado.

Já no constitucionalismo contemporâneo, o que se visa é a recomposição das nações das experiências ditatoriais, através do princípio da dignidade da pessoa humana. O Estado de direito social transcorre de uma construção histórica e por essa razão não se pode dizer que os direitos sociais buscam substituir os direitos de liberdade, uma vez que visam se aderir aos direitos de liberdade para dar maior aporte e dignidade ao povo, surgindo um “Estado Constitucional de Direito”.

Como os direitos de liberdade, os direitos sociais são também fundamentais e impelem ao Estado a obrigação de agir de forma a garantir melhora nas condições de vida do cidadão. Trata-se da tutela de direitos de subsistência, são garantias sociais positivas por obrigarem o Estado a construir um plano para o futuro. Desta forma, se reconhece a existência do Estado de direito liberal e Estado de direito social, sem que um anule de seu ordenamento as premissas do outro, mas se perfilhando a possibilidade de independência de ambos.

Através do positivismo jurídico, Kelsen introduziu nas Constituições contemporâneas o juízo de constitucionalidade das leis existentes, porém inválidas, através de revisões constitucionais. Isto é, introduziu a possibilidade de discutir a constitucionalidade das normas constitucionais e infraconstitucionais, em casos de antinomias ou lacunas, o que hoje conhecemos por Supremo Tribunal Federal.

A teoria do direito é axiomatizada e analisa as formas e estruturas do direito positivo, buscando suprir as demandas que o direito tradicional não consegue prover. Divide-se em três partes: a análise da semântica, da pragmática e sintática. Neste contexto, é a semântica a teoria que tem por objeto o campo de investigação dos fenômenos e das experiências jurídicas. Esta se subdivide em três interpretações: a dogmática jurídica, a sociologia do direito e a filosofia política.

A dogmática jurídica tem como campo de investigação as normas jurídicas que regulam os comportamentos humanos. Trata-se da análise do discurso do legislador e de sua pretensão, aqui se avalia o grau de validez da norma, diz respeito ao dever ser das normas. Já na sociologia do direito, inverte-se o objeto. Nela, se investigam os comportamentos humanos que são regulados pelas normas jurídicas, os fatos. Trata-se da análise dos atos jurídicos, avaliando o grau de efetividade das normas, é o ser ou não ser das normas.

Através da dogmática jurídica, é possível determinar o grau de validade de determinada norma, analisando a validade no sentido formal e no sentido substancial, assim como através da sociologia, é possível determinar o quão efetiva é determinada norma. Garantista é todo sistema que se conforma com seu modelo e o satisfaz efetivamente.

Diferentemente da dogmática e da sociologia jurídica, a filosofia política ou da justiça, não é empírica, mas sim valorativa e de ponto de vista externo. A teoria do direito não deve ser apenas um conjunto de normas, mas também um conjunto de fatos. A filosofia, do ponto de vista político ou moral, não diz respeito a apenas um ser ou dever ser, mas sim um dever ser ético-político do ponto de vista externo e um ser do direito em seu conjunto, próprio das outras interpretações semânticas.

Nesse contexto, a conclusão que se chega é a mesma: o Estado Constitucional de Direito brasileiro voltou às origens jusnaturalistas. Diversos foram os princípios violados e relativizados pelo Tribunal que deveria fortificá-los! Para os que criticam o positivismo jurídico – ou até mesmo acreditam apenas nesse –, as raízes kelsenianas possibilitaram a discussão das normas jurídicas positivadas, para que estivessem de acordo com o topo da pirâmide, a Constituição Federal.

Dessarte observa-se que não há mais a discussão do dever ser ético-político das normas na mais supina instância, há apenas a preferência pela manutenção da ordem pública, revelando uma falsa sensação de segurança pública. Para ponderar sobre o caso, é necessário voltar ao ponto de partida.

Qual o fundamento do princípio da legalidade? E o da presunção da inocência? Porque é necessário haver um devido processo legal antes de qualquer condenação? E o direito à ampla defesa? São perguntas com respostas aparentemente óbvias, mas essas foram claramente esquecidas.

A prisão preventiva virou pena privativa de liberdade. Contudo, a questão mais pertinente – e que deveria ser refletida – é a seguinte: quais são os sujeitos que, condenados em segunda instância, continuam na via recursal? Indubitavelmente são aqueles que não possuem condições econômicas de prosseguir com uma ação do gênero. O fim da decisão proferida ainda permanece nebuloso, mas não é difícil imaginar qual seja.

Quantas medidas inconstitucionais serão necessárias para que haja um “aufklãrung”[1] nos dias atuais? O cenário revela que pouco importa qual é o tamanho ou plano da Constituição, pois esta pode ser altamente garantista no plano político - como efetivamente é -, mas pode não ser efetiva juridicamente no contexto em que está inserida – ou por quem está sendo resguardada -.


Notas e Referências:

[1] Esclarecimento. Refere-se ao Iluminismo.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução Carmen C. Varriale, João Ferreira, João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. 1330 p.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 764 p.

______________. Principia iuris: teoria del derecho y de la democracia. Teoría del derecho. Tradrução Perfecto Andrés Ibáñez, Carlos Bayón, Marina Gascón, Luis Prieto Sanchís e Alfonso Ruiz Miguel. Madrid: Trotta, 2011. 952 p.

COPETTI NETO, Alfredo. Uma perspectiva garantista do liberalismo e da democracia: marcos históricos e possibilidades contemporâneas edificados a partir de Principia Iuris. In: Tulio Vianna; Felipe Machado. (Org.). Garantismo Penal no Brasil - Estudos em Homenagem a Luigi Ferrajoli. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 23 p.

______________; FISCHER, Ricardo Santi. O Paradigma Constitucional Garantista em Luigi Ferrajoli: A Evolução do Constitucionalismo Político para o Constitucionalismo Jurídico. Curitiba: Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, 2013. 409-421 p.


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Laura Mallmann Marcht

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Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.

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Imagem Ilustrativa do Post: P1170044 // Foto de: Suzanne LaGasa // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/lagasa/5322335479 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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