Coluna Stasis

1

O que é a guerra? É a expressão exacerbada da violência. É a racionalização do uso da força na promoção da violência desenfreada, a serviço da destruição do humano e do mundo humano. A guerra é aniquilação parcial, ou total do outro. É a manifestação brutal da vontade de submissão e, humilhação do outro.  A guerra é o subproduto do desequilíbrio nas relações de poder entre grupos humanos, povos e países.  Os seres humanos são seres cujas relações são transpassadas pelas relações de poder. Desde tempos imemoriais as guerras são feitas em função do domínio dos corpos como primeira fronteira, dos territórios, de controle de riquezas naturais, de escravização dos povos derrotados. Nas guerras não há vencedores, senão apenas dor, sofrimento, cicatrizes, humilhação, dominação e morte.

Mas não desconsideramos que “a política é a guerra continuada por outros meios”[i], e nem que a economia é a guerra continuada por outros meios[ii], o que significa dizer que a economia é o palco artificialmente projetado para simular uma relação de estabilidade e consenso, ao passo que ininterruptamente são manipuladas e desencadeadas estratégias de guerra para chantagear, extorquir e compelir. Nesse palco, guerra e política são intercambiáveis e intercambiadas. O liberalismo é somente o elemento de convencimento, de captura psíquica por meio do discurso da liberdade, com todas as suas circunstâncias, formas e consequências (p. ex. os engodos do sujeito-empresa e da meritocracia).

Porém, se temos condições de definir o que é a guerra, porque não conseguimos nos livrar das guerras? Após milhares de anos guerreando sobre a superfície da terra, infringindo a morte a milhões de seres humanos, o que nos impede de abolirmos definitivamente a brutalidade das guerras? Hannah Arendt chamou a atenção ao longo de sua obra para o fato de que as monstruosidades do século XX não se constituíam novidade e asseverava que não só não são novas, como não são raridade. Talvez o problema, portanto não esteja nas respostas sobre o que é a guerra, mas no próprio questionamento sobre sua definição. Talvez se trate de reposicionarmos o questionamento em busca da condição que confere fundamento à guerra como expressão exacerbada da violência. Por ser a violência uma disposição que encontramos cotidianamente nas manifestações da natureza e, no mundo humano, talvez esta inviabilize de certo modo considerá-la como fundamento primeiro da guerra. E, se a violência se constitui como fundamento da trágica condição humana, se faz mister retornar uma vez mais ao questionamento: o que é o humano?

O filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben (1942...), a partir de uma variável heideggeriana, em sua obra: “O Aberto: o homem e o animal” argumenta que o humano é resultante de um ato de violência perpetrado pelo dispositivo da linguagem. O dispositivo da linguagem, assim como tantos outros dispositivos, ao incluir o humano na polis, na cidade-comunidade o exclui da animalidade. A cisão da animalidade imputa ao humano a abertura para a constituição do mundo humano, marcado continuamente pela lógica da inclusão e da exclusão (das relações entre humanos, que se constituem em relações de poder, do humano com o espaço, e do humano para a transformação do espaço). Ou seja, o mundo humano somente pode se constituir e se manter sob a violência que lhe é originária. Assim, todo o esforço civilizatório, religioso, jurídico, educacional e técnico (porque é a partir da técnica que se transforma o espaço, que também violenta a condição natural pré-existente) é conter o ímpeto desta fratura originária, da violência constitutiva do humano.  Para o referido filósofo e jurista, trata-se de compreender suficientemente esta condição originária como possibilidade de paralisarmos a máquina civilizatória em curso em suas variáveis na forma da máquina antropológica, política, jurídica, política, técnica e econômica em curso. Nesta perspectiva, não faz sentido ser a favor ou contra a guerra, mas analisar como paralisar a máquina de produção de violência exacerbada que se alimenta dos corpos de homens e mulheres que se encontram em seu caminho de destruição. É preciso pensar e agir no reposicionamento de uma forma-de-vida que desative a lógica da violência originária que nos constitui como humanos e, nos exige a manutenção deste mundo humano perpassado pela lógica da inclusão e exclusão. É preciso potencializar a potência do pensamento, para quem sabe, pensar em possibilidades de formas-de-relação entre humanos e entre humanos e espaço considerando o cuidado com a vida.

 

2.

O diagnóstico realizado por pensadores como Hannah Arendt, Foucault, Deleuze, Benjamin e Agamben, - entre tantos outros pensadores, que poderiam ser citados e, salvaguardadas suas diferenças teóricas e conceituais - é apropriado e urgente para a compreensão de aspectos constitutivos do mundo em que vivemos. Estes autores demonstram de forma sibilina, que, sobretudo, os séculos XIX e XX, ao constituírem-se com a expressão por excelência do projeto social, político, jurídico e econômico da modernidade, pautado na ciência, técnica, na razão moral, na massificação da educação, nos avanços na medicina, entre outras áreas científicas, também se criou o palco da racionalidade instrumental que possibilitou a produção da morte em escala inédita, sobretudo nos campos de batalha.

A despeito da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1791), da constituição do Estado de direito, de inúmeras convenções, protocolos e cartas de intenções debatidas, assinadas e acordadas nos fóruns internacionais, a vida em sua totalidade e a vida humana foram expostas a toda forma de violência e, consequentemente a máquina da produção em massa de cadáveres funcionou e funciona ininterruptamente. É ao Estado moderno, este birô do capital em suas variadas fases, mercantilista, industrial, imperialista, de mercado, globalizado que coube promover a “destruição criativa” (Schumpeter) todas as vezes que o regime de acumulação do capital se sentiu pressionado pelos avanços sociais com a diminuição de sua lógica de concentração. Braudel disse: o capitalismo só triunfa quando encontra o Estado, quando é o Estado.

É no interior do Estado burguês moderno, detentor do monopólio da violência (Weber), que a lógica do capital promove a disseminação, no tecido social, do fascismo como forma de desestruturar conquistas sociais, direitos civis, direitos individuais, direitos humanos, direitos difusos. Fascismo, totalitarismo, ditaduras militares ou civis, populismos, pertencem a condição constitutiva do capital, sem os quais não se conseguiria manter a lógica de expropriação do trabalho, dos bens naturais comuns à comunidades e povos. É no interior dos Estados liberais (com modo de produção de orientação capitalista), fascistas e totalitários que se desenvolvem os ideais nacionalistas, racistas, xenófobos, homofóbicos, misóginos, que se impõem sobre parcelas excluídas da população, mas incluídas no âmbito violência fascista.

É sob tais pressupostos, que há certa unanimidade nestes pensadores ao apontarem para o incômodo e paradoxal fato de que as guerras sangrentas, aviltantes da condição humana, que atravessaram o século XIX e o século XX resultaram no interior das democracias liberais de mercado. A contradição insofismável do liberalismo econômico reside no fato de que a liberdade de mercado está sempre a exigir o braço fascista, totalitário e/ou ditatorial do Estado. Além disso, qualquer suposto erro de percurso na condução dos autoritarismos enseja a entrada em cena dos cães de aluguel do capital para pleitear mais liberalismo como forma de saída do buraco criado pelo próprio liberalismo. Em bom português: há uma orgia interminável (e apenas sutilmente confessada) entre liberalismos e autoritarismos. A grotesca falácia da liberdade de mercado se revela na concentração da riqueza socialmente produzida, na socialização da miséria para dois terços da população mundial, na dependência ad aeternum de países periféricos à lógica neocolonial dos países centrais, na destruição ambiental avassaladora a partir dos interesses estratégicos estatais e das corporações globais nas mais variadas áreas para a sobrevivência humana.

Diante do exposto, tomar posição a favor da Ucrânia ou da Rússia revela de forma tácita a mediocridade violenta do debate em curso. Esta guerra desumana, sangrenta, faminta de corpos, ávida pelo consumo da vida de homens, mulheres, crianças, de jovens soldados no obediente exercício de seu oficio de matar é filha dileta do fascismo, que por sua vez é filho dileto do capital (do modo de vida vinculado ao modo de produção capitalista).  Ou seja, a guerra entre Ucrânia e Rússia é a lógica do capital se manifestando a partir do desespero dos países centrais que conformam uma corporação política, militar, empresarial, midiática e estelionatária, que se impõe ao mundo pelo controle de reservas de recursos naturais, pelo controle do desenvolvimento científico e tecnológico, entre outras razões. O absurdo de mais esta guerra movida pelo (por relações de disputas de poder, dominação e riqueza) capital pode ser constatado pelo fato de que Zelensky, presidente da Ucrânia, apresentar-se como expressão política do fascismo que controla aquele país. Por sua vez Putin é um nacionalista conservador. Ambos, subprodutos da lógica do capital (de um modo de vida atrelado à violência da exploração e usurpação). Não esqueçamos que Hitler, Mussolini, seus aliados e seus algozes todos invariavelmente eram “crias” do capital e, árduos defensores da liberdade de mercado. No rastro destas aberrações políticas e estatais advindas da lógica do capital amontaram-se milhões de corpos.

 

3.

Diante do exposto é preciso considerar o convite de Agamben para tornar inoperosa a máquina antropológica, a máquina jurídica nacional e internacional, a máquina política e técnica, a máquina econômica que vigia, controla, comanda, determinando o modo de vida de bilhões de indivíduos meros produtores e de consumidores. É preciso escapar por entre os dedos dessa lógica maniqueísta e moralista, à qual tentam nos reduzir cotidianamente. Seres humanos reduzidos em suas formas de vida à luta pela sobrevivência, que os fazem observar o mundo a partir da estreiteza de estímulos binários, como se seres humanos, suas ações, ou mesmo manifestações de eventos naturais podem ser analisados a partir de juízos de valor como bons ou meramente maus.  Ou ainda, como ser a favor ou contra os russos, ou os ucranianos. Ou se é a favor do capital e, portanto um capitalista, mesmo que desprovido do acesso ao capital, ou se é um comunista, que é algo que não sabe o que é ..., mas que dizem todos os dias que é algo ruim, mau, que come criancinhas ... e assim, nessa estreiteza binária de mundo, dos produtores e consumidores, que consomem também as notícias da guerra, o sangue dos mortos em batalha, a si próprios ao desconsiderarem que todos são consumidos todos os dias pela guerra que o capital (este modo de vida marcado pela violência) empreende contra o trabalho, contra a vida humana em sua totalidade. Portanto, é preciso resgatar a pergunta que Deleuze reputou inaugural da verdadeira crítica: qual o valor do valor?[iii] Esta guerra não é nossa... é como todas as outras mais, uma guerra do capital, do capitalismo agora financeiro global… Mas, como bem chama a atenção Arendt, temos o direito de esperar alguma iluminação, embora com olhos tão habituados à sombra, forjados pela violência originária do dispositivo da linguagem que nos lançou na polis, na cidade comunidade, tentamos tatear pela mesma linguagem alcançar essa possibilidade de entendimento.

Paralisar a máquina civilizatória, em todas as suas frentes já anunciadas, contudo, pode significar dar-nos o direito de “fazer uma experiência com a potência do pensamento”. Pensar por própria conta e risco… Qual o valor da guerra? Comecemos por aí...

 

Notas e Referências

[i] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso dado no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 22. Trata-se aqui da célebre inversão da proposição de Carl von Clausewitz, para quem “a guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”. Em suma, podemos dizer que existem relês que levam da guerra à política e da política há guerra, ininterruptamente.

[ii] “a economia não substitui a guerra, mas a continua por outros meios, e que passam necessariamente pelo Estado: a regulação da moeda e o monopólio legítimo da força para a guerra interna e externa. [...] a economia da dívida transforma a ‘guerra civil mundial’ (Schmitt, Arendt) num emaranhado de guerras civis: guerras de classe, guerras neocoloniais contra as minorias, guerras contra as mulheres, guerras de subjetividade.” ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2021, p. 15 e 27.

[iii] “Kant não conduziu a verdadeira crítica porque não soube colocar seu problema em termos de valores; este é então um dos principais motivos da obra de Nietzsche. [...] a filosofia dos valores [...] é a verdadeira realização da crítica, a única maneira de realizar a crítica total, isto é, de filosofar ‘com o martelo’. [...] O problema crítico é o valor dos valores” DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ovídio de Abreu Filho. São Paulo: N-1, 2018, p. 9.

 

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