“Guerra às drogas”: criminalização da cultura latino-americana e africana, e o dilema do policial e traficante feridos - Por Aphonso Vinicius Garbin

16/12/2016

 Por Aphonso Vinicius Garbin – 16/12/2016

Andrea Costa Dias, em entrevista para Revista Cult, disse: “Fala-se muito em drogas como se fosse uma coisa só, mas existe uma riqueza de sentidos e de possibilidades em relação a elas que acaba ficando de fora. É um discurso que se centra numa dicotomia: sou a favor, sou contra; é ilegal, é legal; é permitido, é proibido”.

A “guerra às drogas” é um lugar nessa temática, e nele o assunto não se esgota. Inicia-se.

Pois bem!

A cultura do punitivismo está a todo vapor no Brasil. Ainda que exista alguma resistência por boa parte da doutrina, tal posição não encontra reflexo na Justiça e na opinião do senso comum (tal como no badalado “dilema da Fátima Bernardes”: policial levemente ferido e traficante gravemente ferido, qual você socorreria?).

I. “Guerra às drogas”

Grande parte do problema que enfrentamos atualmente quanto à segurança pública, começa com uma briga por nós comprada, mas que não é nossa: a “guerra às drogas”, que nada mais é que uma visão americacentrista e eurocentrista com o proibicionismo das drogas culturalmente latinas e africanas.

As drogas hoje ilegais, produzidas a partir de ervas nativas de regiões latinas, africanas e, até mesmo, asiáticas, são parte da cultura de tais povos. A coca, por exemplo, era utilizada por tribos latino-americanas em rituais de guerra.

Nos tempos de apartheid na África do Sul, de segregação racial americana, na popularidade do presidente Richard Nixon, houve o fomento da “guerra às drogas”, dito por ele como “inimigas número um da sociedade”.

Desde então, ela é responsável pela manutenção do status quo daquela sociedade da segunda metade do século vinte, especialmente nos países latino-americanos; negros, pardos e pobres marginalizados pelo uso de drogas comuns em suas culturas, brancos de alta sociedade degustando as melhores bebidas (alcoólicas – drogas legalizadas), todas de origem europeia (vodka, wisky, champagne, cerveja, etc.) - também de sua cultura.

Maria Lucia Karam[1] adverte que, tornando crime condutas comuns praticadas em todo o mundo através da criminalização de determinadas drogas, tal atitude impulsiona uma inclinação para outorga de poderes punitivos ilimitados, de modo que a “guerra às drogas” se volta contra determinados produtores, consumidores e comerciantes delas, não todos, mas os mais vulneráveis entre eles, ou seja, os pobres, marginalizados, não brancos, desprovidos e sem acesso ao poder[2].

E no cenário atual brasileiro, amparado nesse contexto, a “guerra às drogas” trás dois trágicos desfechos, (a) a morte de jovens, negros e/ou pobres do subúrbio, policiais e civis, vitimando mais que os efeitos da droga em si; (b) a dificuldade de reabilitação, ante a marginalização do usuário, e a reprovação às políticas públicas de reparação de danos, fomentando, daí, a ocorrência de diversos delitos patrimoniais com o único fito de sustentar o vício.

A droga é ilegal, o comércio é praticado na ilegalidade, o universo do crime traga os viciados. O reflexo disso é isso que está ai, o Poder Judiciário, no campo criminal, trabalha em sua maioria para tentar reparar os danos decorrentes dessa guerra. Crimes contra o patrimônio e de drogas representam a esmagadora parcela das ações e execuções penais no país, tendo como agentes negros e/ou pobres de subúrbio.

Para se ter noção, assim como no Brasil, “Nos cárceres dos Estados Unidos da América, repletos de condenados por crimes relacionados às drogas tornadas ilícitas, sua população não está representada de maneira uniforme. Os índices de prisões de afro-americanos são muito superiores aos índices de prisões de brancos, em gritante desproporcionalidade com sua presença na população como um todo. Negros são dez vezes mais suscetíveis de serem abordados, revistados e detidos do que brancos. Negros formam 13,5% d a população dos Estados Unidos da América, mas 37% dos que são detidos por violações a leis de drogas são negros; mais de 42% dos que estão em prisões federais e quase 60% dos que estão em prisões estaduais por violações a leis de drogas são negros. A taxa de encarceramento nos Estados Unidos da América é de 716 presos por 100 mil habitantes. Quando se consideram a penas os homens afro-americanos, sobe para cerca de 4.700 presos por 100 mil habitantes. Na África do Sul, em 1993, à época do apartheid, eram 815 por 100.000 habitantes os homens negros sul-africanos nas prisões. [...] O alvo preferencial da “guerra às drogas” brasileira também é claro: os mortos e presos nessa guerra – os “inimigos” – são os “traficantes” das favelas e aqueles que, pobres, não-brancos, marginalizados, desprovidos de poder, a eles se assemelham[3].

II. A desumanização do traficante e do usuário

Essa pincelada é apenas para deixar claro que nesse quadro de violência institucionalizado, é que os traficantes e viciados são estigmatizado em seu seio social, que sua morte é preferível à pequena dor física do “cidadão de bem”, os conhecedores de seu vício e suas práticas lhes retiram o humano, o direito a viver, lhe associam a qualquer conduta delituosa que aparece na proximidade, pois “a partir da superexposição de algumas características particulares que diferenciam o sujeito em foco das demais pessoas [...] Cria um recurso classificatório que permite categorizar pessoas, grupos e locais como normais e anormais, superiores e inferiores, bons e maus. O efeito imediato do processo de estigmatização é a redução da pessoa ao estigma: ‘deixamos de considera-lo [sujeito estigmatizado] criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. [...] Para além desta inferiorização do sujeito estigmatizado – que será bastante útil para os sistemas punitivos autoritários justificarem o uso desmedido da força para a neutralização social ou, até mesmo, para a eliminação física dos anormais – a construção de uma identidade gera, no corpo social, determinadas expectativas positivas em relação ao comportamento do portador do estigma: expectativa de que a pessoa considerada anormal realize condutas anormais, ou seja, que o criminoso pratique crimes, que o louco cometa atos insanos; que o viciado se mantenha no vício; que o mau aluno seja reprovado; que o mentiroso produza falseamentos e distorções da verdade; que o enganador induza as pessoas a erro”[4].

Nesse enfoque, no quadro de guerra às drogas brasileira, Eugênio Zaffaroni, Salo de Carvalho, Vera Malaguti, Vera Regina de Andrade, Orlando Zaccone, são criminologos que vem denunciando o principal alvo da Polícia, da Justiça Criminal e da sociedade brasileira: os viciados e pequenos comerciantes de drogas, moradores de periferia, os quais, por consequência, também são principais vítimas dessa.

III. Numa palavra

A “guerra às drogas”, briga que não é nossa, que criminalizou nossa cultura, mas que mesmo assim a assumimos, falhou, conduzindo e tornando necessárias novas alternativas, tais como à legalização com políticas públicas de desestímulo ao uso e reparação de danos, que já vem se mostrando eficientes em países que adotaram a ideia (a exemplo de Portugal).

Tal como afirmou Vera Regina Pereira de Andrade, prefaciando a obra “A Política Criminal de Drogas no Brasil”, de Salo de Carvalho, “O universo da drogadição, ainda que ilusoriamente envolto numa profunda sensação de prazer, é um universo de dor. O universo do castigo, simbolizado e institucionalizado no sistema penal, também o é”. Devemos abandonar a ideia de desumanização do traficante (preto, pobre e favelado), que não merece a atenção da sociedade, pelo contrário, por sua situação problemática, este sim merece cuidado especial, meio eficiente de evitar crimes, e não apenas repará-los.

É latente que, no mundo, tomou-se o “discurso universal, atemporal e a-histórico sobre a questão das drogas, como se a situação de cada país e de cada droga fosse similar à de outros[5]. Não! Cada país tem sua cultura, seu momento histórico, sua diversidade, devemos respeitá-las, notadamente nossos cidadãos, especialmente, repita-se, os problemáticos.

A “guerra às drogas” é apenas uma parcela de algo mais amplo, o “mercado da droga”. A criminalização das drogas culturalmente utilizadas por povos de países de terceiro mundo é apenas um tentáculo dessa barbárie, causando o exterminou de determinada classe de “indesejáveis” com aval da população vítima dessa mesma regra.

Como disse Michel Foucault, e para encerrar, “As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma que há boa música e má música, há boas e más drogas. E, então, da mesma forma que não podemos dizer somos “contra” a música, não podemos dizer que somos “contra” as drogas[6], de modo que, criminalizar uma cultura é criminalizar a alma de um povo.


Notas e Referências:

[1] KARAM, Maria Lucia. Proibição às drogas e violação a direitos fundamentais. LEAP Brasil. Disponível aqui. Acessado em 18out2016, fl. 02

[2] KARAM, Maria Lúcia. Legalização das drogas. 1. ed. São Paulo: Estudoseditores.com, 2015 (coleção para entender direito), em YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Vítimas da guerra. Empório do Direito. Disponível aqui. Acessado em 17nov2016

[3] KARAM, Maria Lucia. Proibição às drogas e violação a direitos fundamentais. LEAP Brasil. Disponível aqui. Acessado em 18out2016, fl. 03

[4] CARVALHO, Salo de; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. Sensacionalismos a Sangue Frio: a ruptura da narrativa do crime em Truman Capote. Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global. 2. v., n. 2, jul.dez/2013. Disponível aqui. Acessado em 11nov2016, p. 37 e 38

[5] OLMO, Rosa del. A Face Oculta Droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, em BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 59

[6] in Uma entrevista: sexo, poder e política. Revistas Eletrônicas da PUC-SP. Traduzido do francês por Wanderson Flor do Nascimento. Disponível aqui. Acessado em 14dez2016, p. 265


Aphonso Garbin. . Aphonso Vinicius Garbin é Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Advogado Criminalista. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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