Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann
Neste texto apresentam-se resultados da pesquisa de mestrado, realizado entre 2018 e 2019, sobre a desterritorialização de crianças e de adolescentes reassentados no Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) Jatobá, localizado no perímetro urbano da cidade de Altamira, Sudoeste do Pará. De acordo com estudos realizados em comunidades ribeirinhas de Altamira, Herrera e Santana (2016, p.5) assumem “[...]que há a desterritorialização dos sujeitos locais, ou seja, há ruptura de suas referências na relação com a natureza e nas próprias interações sociais entre os sujeitos”.
O mote está em abordar as implicações da reprodução sistêmica do capital, a partir do Grande Objeto Espacial (Santos, 1995), a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que tem em sua matriz energética o desencadeamento das rupturas dos laços afetivos, simbólicos e culturais das crianças e dos adolescentes. Para tanto, foram analisadas as implicações sociais desencadeadas pela Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHE Belo Monte), como objeto estratégico para reprodução sistêmica do capital, que aproveita as desigualdades sociais, geradas e impulsionadas pelo próprio sistema, desrespeitando os direitos humanos estabelecidos em lei, em especial, aos direitos das crianças e dos adolescentes, promulgado na Constituição Federal de 1988 (CF/88), reconhecido como prioridade absoluta de atendimento socioestatal (artigo 227 da CF/88 e artigo 4º do Estatuto da Criança do Adolescente – ECA/Lei nº. 8.069/1990).
A implantação da UHE Belo Monte, na região da Volta Grande do Xingu, tendo a cidade de Altamira/PA, como cidade polo, foi operacionalizada desconsiderando as necessidades de atendimento e de cumprimento das suas condicionantes, intensificando, os problemas gerados nas condições de vidas das crianças e dos adolescentes impactados diretamente pelo empreendimento, principalmente devido o descumprimento constitucional e do ECA. Todavia, o aporte de grandes objetos na região amazônica tem possibilitado diferentes pesquisas, por vez articulando, em redes, as mais distintas áreas do conhecimento, centradas no conceito de Território, para analisar as interferências dos objetos capitalistas nas dinâmicas locais, as vezes desconsiderando conotação teórica apropriada, apenas atrelando a delimitação puramente política-institucional nas amarrações de disputa por poder. Por isso, enfatiza-se a necessidade, durante a interpretação, de considerar as relações de coexistências no espaço social e seus eixos de sucessões na constituição do espaço produzido pelas relações de territorialidades, não só dos adultos, mas, também, das crianças e dos adolescentes, compreendidos aqui como sujeito que percebem e refutam as situações condicionadas pelo deslocamento compulsório.
“Na Amazônia, nos últimos anos, tem-se percebido a chegada de novos agentes que mantêm relação com processos de expansão capitalista. Desde a década de 1970, observam-se transformações substanciais tanto no campo quanto na cidade, estruturadas pelas técnicas informacionais do capitalismo globalizado” (MOREIRA e HERRERA, 2016, p.8)
De certo, a UHE Belo Monte, implantada em 2011, na região da Volta Grande do Xingu, representa um objeto de caráter globalizador, ao se instalar no território somado há intencionalidades e estratégias de conjuntura política e econômica, desencadeando mudanças significativas.
A cidade de Altamira, lócus da pesquisa, de acordo Miranda Neto e Herrera (2016) é uma cidade média e exerce o papel de centralidade na rede urbana da Região de Integração do Xingu, passa obedecer a lógica de reprodução capitalista em função da materialização do novo evento capitalista, UHE Belo Monte, marcado pela perversidade capitalista ao deslocar compulsoriamente crianças e adolescentes de seus territórios, sobremaneira por não subsidiar adequadamente para re-criação dos espaços, sobretudo, nos RUC, planejado e construído pelo empreendedor para reassentar as famílias que residiam na Área Diretamente Afetada – ADA/Urbana, ou seja, que estavam em locais abaixo da cota 100. Destaca-se que a situação descrita, caracteriza a desterritorialização na mobilidade, pois, ao afastar as crianças e os adolescentes de seus territórios originais, rompem com elementos de identidade e de pertencimento, mudam estruturalmente os modos de vida.
Devido a vulnerabilidade social e o deslocamento ser uma ação intrínseca ao empreendimento, caberia ao consórcio construtor (empreendedor) a responsabilidade de planejar e proporcionar políticas/ações compensatórias e reparadoras dos danos gerados às famílias para que essas pudessem recriar caminhos no novo espaço. No caso das crianças e adolescentes a situação é agravada devido o rompimento de elos com espaços de lazeres que não mais serão percebidos nos espaços planejados, caracterizando a perda do acesso plural do rio, e, com isso, a perda da liberdade.
A reestruturação urbana sofrida na cidade de Altamira, seu novo ritmo social, não explicado apenas pela anatomia do lugar, mas nas manifestações do lugar em um território relacional, continua a desconsiderar ou pelo menos secundariza a necessidade e importância de ações que permitam a reterritorialização das crianças e dos adolescentes, ou seja, que garantam o reconhecimento e adaptabilidade nos novos espaços, facilitando a criação de elementos identitários. No entanto, o que se percebe é a ruptura e o distanciamento daqueles de suas origens, de suas famílias e de seus modos de vida, contribuindo para as condições de vulnerabilidade das crianças e mais ainda dos jovens que são levados a perversidade das periferias segregadas.
Em entrevista concedida a pesquisa, em abril de 2018, foi destacado que:
“[..] há uma carência muito grande nisso sabe, de propor espaços que capacite ele e que possa colocar no mercado de trabalho, então isso em Altamira não tem, isso entendeu. Isso tem uma carência muito grande e os bairros que mais sofrem são os RUC`s, e eu acho que isso poderia ter, até porque a gente ta gerando riqueza aqui do lado. Então esse dinheiro todo, esse lucro todo que é gerado por Belo Monte, suprir nessa ausência, poderia realizar nesses espaços né [...]” (Entrevista gravada em 10 de abril de 2018).
Neste fragmento da entrevista chama atenção a ausência de investimento para criar e propiciar meios de re-produção social sob infraestruturas urbanas. Notadamente que se atrela tal contexto devido o grande objeto ao se instalar no território e começar a comandar as ações impondo a racionalidade do global em detrimento as necessidades dos sujeitos locais. Além disso, configura uma nova paisagem ao urbano, no qual o substrato espacial das antigas áreas de ocupações foi totalmente alterado, comandando o movimento da sociedade e transformando as coisas e os objetos, dando-lhes novas características, em um processo dialético (SANTOS, 2006, p.95).
Noutros termos, pode-se assumir que a cidade tem transformado suas estruturas obedecendo processos que, estrategicamente, garantem a reprodução sistêmica do capital, a medida que condiciona a cidade a uma nova funcionalidade, devido aporte, como diz Santos (2013), de um evento capitalista moderno. Reproduz a lógica do atraso, das desigualdades sociais e, com isso, ampliando as contradições inerentes a reprodução ampliada do capital. Esse contexto permite afirmar a concretização do território relacional (SOUZA, 2001), materializando as desigualdades, os conflitos, as violações e os direitos humanos, sobretudo, como destacou Conceição (2019, p.73), quanto ao “público de maior vulnerabilidade a esses grandes eventos, como as crianças e os adolescentes”.
O cotidiano dos sujeitos locais, em específico das crianças e dos adolescentes, colocados ao centro desta pesquisa, demonstraram a perversidade do capital ao se inserir no território, desconsiderando as territorialidades, e consequentemente deslocam, separam, distanciam e, por fim, desterritorializam as crianças e os adolescentes. Como destaca o fragmento da entrevista da criança que destaca: “[n]ão gostei de sair de lá. Porque era bom, e sinto saudades do rio e da escola Dom Clemente, de ir a igreja, escrever e ler, de brincar de casinha” (Entrevistado C41, dia 11 de setembro de 2018).
Por fim, assume-se neste texto a reflexão introdutória acerca da interferência do grande objeto, UHE Belo Monte, com reprodução da lógica capitalista que, ao explorar o potencial hídrico da bacia do Xingu, estabelece uma nova dinâmica no espaço urbano de Altamira pautada na perversidade do deslocamento compulsório de crianças e adolescentes, e suas famílias, aprofundando as desigualdades sociais, a medida que novas e velhas violações aos direitos humanos são materializadas nos novos espaços urbanos da cidade de Altamira, com destaque aos RUC, planejados estrategicamente para receber os deslocados compulsoriamente de seus territórios, num movimento considerado como processo em que desfavoreceu os já desfavorecidos, inviabilizando o direito à cidade. Notadamente, das crianças e dos adolescentes que possuíam relação de pertencimento com o rio e viviam com liberdade, os espaços públicos das áreas centrais da cidade e com o deslocamento compulsório para os RUC, não só desrespeitaram os direitos humanos estabelecidos em lei, e, ainda mais, os direitos das crianças e dos adolescentes, conforme consta no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e no artigo 4º do Estatuto da Criança do Adolescente (Lei nº. 8.069/1990).
Notas e Referências
CONCEIÇÃO, R.S. A Desterritorialização das crianças e dos adolescentes em Altamira-PA face a UHE Belo Monte: uma análise das territorialidades no RUC Jatobá. Dissertação defendida em fevereiro de 2019.
HERRERA, J.A.; SANTANA, Nelivaldo Cardoso . Empreendimento hidrelétrico e famílias ribeirinhas na Amazônia: desterritorialização e resistência à construção da hidrelétrica Belo Monte, na Volta Grande do Xingu. GEOUSP: espaço e tempo, v. 20, p. 250-266, 2016.
MIRANDA NETO, JOSÉ QUEIROZ DE; HERRERA, J.A.. Altamira-PA: New central role and urban restructuration since the arrival of Belo Monte? Hydropower. CONFINS (PARIS), p. 1-34, 2016.
MOREIRA, R. P.; HERRERA, J. A. A expansão do capital por grandes projetos: desafios ao ordenamento do território no município de Altamira-Pará. Revista GeoNorte, v. 7, p. 1315-1330, 2013.
SANTOS, M. Os grandes projetos: sistema de ação e dinâmica espacial. In: CASTRO, E. M. R.; MOURA, E. E.; MAIA, M. L. Industrialização e grandes projetos: desorganização e reorganização do espaço. Belém: NAEA-UFPA, 1995. p.. 13-20.
SANTOS, M. Técnica, Espaço, Tempo. São Paulo, Edusp2013.
SOUZA, Marcelo José Lopes de. O território: sobre espaço e poder. Autonomia e desenvolvimento. In CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.77- 116.
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