Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
“Triste, louca ou má. Será qualificada. Ela a quem recusar...”
(Francisco, elHombre)
Da esquina sentia-se o cheiro do caruru cozinhando. O banquete seria completo: vatapá, acarajé, abará, galinha, farofa de dendê e banana frita. A sambinha ficaria por conta dos sobrinhos de dona Zizi. A vizinhança alvoraçada com a expectativa da comemoração. Festança sem horário para acabar.
Dete organizara tudo no capricho, feliz como há muito não ousara ser. Tinha motivo para celebrar.
Lembrava-se bem do dia que começou a labutar, aos onze anos. Passava roupa para ajudar nas despesas da família. As queimaduras nos braços a lembravam de ser mais cuidadosa na tarefa. A mãe, empregada doméstica, acostumara os filhos a frequentar a igreja. Dona Vanda costumava repetir a ladainha:
-Deus não permitirá que nenhum dos meus filhos dê prá ruim.
Dete mal acordava, vestia a farda encolhida, tomava dois goles de café, uma nesga de pão e lá se ia cantarolando com o pequeno caderno embaixo do braço. Ser professora era o sonho. Foi obrigada a trocar a escola pelo trabalho, ceder lugar aos irmãos menores, eles também teriam tempo contado para o colégio.
As vezes a mãe a presenteava com algum livro usado, herança das filhas das patroas. Dete encantada, lia e relia as estórias, passeava em outros mundos, onde podia ser heroína ou vilã.
- Oh menina desligada. Vive na lua.
Aos quinze anos, finda a missa a mãe lhe apresentou Lucivaldo, vinte anos mais velho que ela. Homem forte, de poucas palavras nem feio nem bonito, porteiro do Fórum, concursado.
Reparara na mocinha ajeitada e calada. Parecia ser direita.
Estranhou o sujeito carrancudo, de poucos amigos. Pressentia que o amor dalí passara longe.
Dona Vanda a alertou:
- Amor não mata fome. Casamento hoje em dia é milagre. Louvado seja Deus!
Na troca de alianças, Lucivaldo se comprometeu; as contas da casa seriam dele. Após o casamento Dete não trabalharia mais. Ele também decidiu, residiriam em bairro decente, longe do subúrbio. Ela teria que dedicar-se exclusivamente a quem a escolheu por esposa.
Poderia até estudar, depois de limpar, cozinhar, passar e costurar para ele.
Lucivaldo trazia no peito rancor pela mãe, ainda pequenoela sumira na estrada com um jovem caminhoneiro. A magoa, ele aprendeu a desafogar nas “branquinhas”.
O tempo ensinou a Dete a “criar couro forte”. Um ano após o casamento, assistiam futebol, enquanto ele bebia. O time favorito perdeu e desatou enxurrada de xingamentos. Sem saber o que fazer tentou acalmá-lo:
-É só uma partida, sussurrou, afagando -lhe o ombro.
Em revide o estalar dos ossos seguida de dor aguda.
- Abestalhada! Bateu a porta, sumiu no quarto.
As lágrimas não aliviaram o choque. Dete demorou a pegar no sono. Deitada no pequeno sofá da sala tentou convencer a sí mesma:- Se não tivesse aberto a boca ele não teria me machucado.
Na manhã seguinte preparou o café, o esperou acordar. Não trocaram palavras. A olhou de soslaio, o pulso estava mal enfaixado, saiu apressado.
Nos fins de semana depois de algumas doses virava bicho. Ela aprendeu a aguentar porrada, chorar baixinho, não incomodar. Rezava forte, colocara na cabeça a fé salvava.
Na casa ao lado morava dona Zizi, viúva e cozinheira de mão cheia. Tornaram-se amigas.
Com o tempo a pancadaria aconteciacom mais frequência. Dona Zizi aperriada com os baques e gemidos, foi à casa da vizinha. Lucivaldo rescendia a cachaça, mal a reconheceu. Ela queria dar uma palavrinha com Dete. A enxotou aos berros. Mulher dele não tinha amizade com vagabunda. Bateu-lhe a porta na cara.
Trancada no quarto Dete apertava a bocatentando conter o soluço. No canto escuro da parede imaginavaLucivaldo tombado na sala, olhos semi abertos, engasgado no próprio vómito.
Lucivaldo invadiu o quarto:
-A próxima vez quebro a cara dessa velha. Sai daqui!
Dia seguinte, acanhada foi desculpar-se com a vizinha. Dona Zizi notou o corte no lábio inchado, nos ombros marcas roxas, doídas. Abraçou a moça, era pele e osso. Pediu que prestasse queixa. Os sobrinhos dariam um tranco em Lucivaldo, aprenderia a respeitá-las. Conhecia bem o tipo, “valente com mulher”. Dete suplicou silêncio. O problema era o alcool. Tudo passaria, fizera promessa.
Dona Zizi a contra gosto acatou. Depois do ocorrido, ao topar com o covarde, cuspia no chão e mudava de calçada. Lucivaldo não reagia, talvez por “consideração” aos sobrinhos musculosos da idosa.
Boatos corriam. A maioria da vizinhança se compadecia dapobre mas ninguém abria a boca. Em Dete crescia umasombra no coração.
Quando lhe deslocou o ombro justificou no hospital; fora assaltada. Da vez que ele lhe deu um soco e perdeu boa parte da audição; inventou acidente de bicicleta. Buscava sempre novo pronto atendimento, assim escondia a violência sofrida. Engravidara um vez mas por “queda” perdeu o bebê.
Nenhuma criança merecia nascer naquele martírio.
Passou a usar vestidos compridos, camisas de manga. Ocultavam hematomas. Na hora das pancadas, a todo custo protegia o rosto. Quando ele estava “ possuído”, ela se fantasiavainvisível.
Imagens surgiam com mais frequência na hora das surras.Bastariamduas gotas de veneno na bebida do desgramado. O fim estaria alcançado. Passada a porrada a culpa a chacoalhava. Aterrorizada rogava perdão aos céus.
Não procurava ajuda, carregava seu tormento. O peso da aliança aniquilara as forças, a vergonha liquidara a coragem.
Não tinha para onde ir. A mãe falecida, quanto aos irmãos carregavam o fardo da miséria. A rua é o que restaria. Ancorada em orações sobrevivia refém do medo.
.....
O final do campeonato chegara. No sábado, Lucivaldocomprou ingresso do jogo. Vestido com a camisa do time e bandeira na mão, saiu de casa. Tomaria um esquente no boteco. Depois da partida celebraria a vitória certa. Não teria hora para voltar.
Ela torcia para o time ganhar, assim, ele chegaria cansado, bêbado, quem sabe contente. A comida o esperaria na geladeira. Com sorte, apagaria. Mas se o time perdesse, o pior lhe aguardava. No quarto, acendeu vela, orou com fervor e se entregou ao sono.
O time não cantou vitória, o placar: três a zero. A cada gol, geladas desciam raivosas. À noite, Lucivaldo saiu azedo e zonzo do estádio.
Próximo da arena dois jovens festejavam o campeonato.
...
No estacionamento Angelo vibrava com a vitória do timão. Comprara um pequenino uniforme, mimo envolto em papel vermelho. A esposa estava grávida, o primeiro filho do casal. Saiu atrasado da loja se encontrariam na pizzaria.
....
Lucivaldo avistou os rapazes com a camisa da equipe adversária.
- Time de merda!
- É com a gente? Perguntou o mais forte dos dois.
- Cambada de veado! Destilou a ira .
- Cala a boca. Cê não aguenta um tapa.
- Não tenho medo de marica.
Um dos rapazes empurrou Lucivaldo, tombou flácido ao chão.
- Sai. Bêbado!
- Te arrebento...gaguejou.
Conseguiu levantar-se amparando-se ao poste. Um dos jovens acalmou o amigo.
-Deixa prálá, vamos nessa.
Lucivaldocontinuou gesticulando ao vento.
Do outro lado da avenida avistou uma moça brincando com o estandarte do time inimigo. Coração em cólera, cerrou os punhos, acabaria com a vadia.
Ao atravessar a pista “vadia” foi a última palavra que balbuciou antes de ser atingido pela caminhonete desgovernada de Angelo.
....
Dete, acordou surpresa, passavam das oito horas. Esperava encontrar Lucivaldo escornado na sala. O celular alertou, devia comparecer ao Instituto Médico Legal reconhecer um corpo ou o que restara dele.
No necrotério Dete sentiu-se leve, abençoada quase feliz. Mal conseguia esconder o sorriso, Lucivaldo transformara-se em boneco de cera; amassado, pisoteado, estraçalhado e esquecido por alguma criança travessa. Intacta, no defunto, restara apenas a aliança que insistia em reluzir no dedo.
Enquanto recebia os pêsames, libertava-se da algema dourada que lhe aprisionara tanto tempo.
Dias depois compareceu a repartição do finado. Ao informarem do direito a pensão não conteve as lágrimas. Seus pedidos, finalmente atendidos. Celebraria a vida e a liberdade em grande festa.
Imagem Ilustrativa do Post: Cocktails // Foto de: Yvette Chew // Sem alterações
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