Nos últimos tempos muito tem sido dito sobre as necessárias mudanças no ensino. O mantra das reformas neoliberais é o ensino e a avaliação de competências e habilidades. Com isso, os defensores da proposta insinuam diversas coisas, mas principalmente uma suposta cisão entre teoria e prática. Que são coisas distintas não é preciso de muita inteligência para perceber. São duas palavras, logo só podem apontar para duas coisas distintas. Mas o fato de tratarmos de palavras e coisas distintas não quer dizer que uma prática possa ser descolada de uma teoria. Faça um teste, caro leitor: acenda ou apague uma lâmpada sem utilizar nenhuma teoria. Se for preciso ir até um interruptor e apertar um botão para alguma direção, então é preciso uma teoria. E por trás dessa teoria várias outras são necessárias: para fabricar os interruptores, os fios, as lâmpadas, para instalar esses componentes, para produzir e distribuir eletricidade e, claro, para produzir os instrumentos utilizados para produzir, por sua vez, os componentes. Ainda assim dizem que competências e habilidades são mais relevantes. É preciso saber fazer! Mas fazer o quê? Como? Isso tudo é “só teoria”? Aparentemente, essa é a proposta. Se não for, há uma inconsistência que torna imprestável a proposta; se for, também.
Ainda nesta direção, é importante observar que na Grécia Antiga a palavra teoria (θεωρία) indicava capacidade especulativa ou vida contemplativa. A capacidade especulativa requeria e requer o exercício da potência do pensamento na constante inquirição do mundo em que fenômenos se manifestam, alguns compreensíveis a primeira vista, outros envoltos em dificuldades e exigindo observação e meticulosa investigação para alcance de usa compreensão. Por seu turno vida contemplativa implicava e implica disposição para observar atenta e pacientemente o mundo, a existência em seu sempiterno devir. A contemplação permite e exige do ser humano disposição para o alcance da compreensão de que a vida e os entes que se apresentam no mundo se circunscrevem numa dinâmica existencial transitória, contingente, mas ao mesmo tempo necessária ao equilíbrio da vida, do mundo, do cosmo em sua totalidade. Sob tais pressupostos, nada mais prático que a teoria na medida em que permite aos seres humanos o alcance da compreensão da dinâmica da vida em sua totalidade. Ou dito de outro modo, o alcance da compreensão somente é possível a partir do exercício da especulação e da contemplação, ou seja, no momento em que nos damos o direito de pensar a existência por própria conta e risco. Ao abrir mão da teoria nos enfiamos num fazer instrumental que nos conduz ao entendimento, ao funcionamento das coisas a partir do reducionismo mecânico da ação produtiva sobre o mundo. Nosso tempo é um tempo carente da experiência com o pensamento, de exercitar o pensamento na concretude dos desafios sociais, políticos, econômicos que se apresentam em sua instrumentalidade cotidiana.
É nessa direção que estamos vendo a proliferação de discursos sobre soft skills (habilidades flexíveis) e hard skills (habilidades duras/rígidas). Supostamente, hard skills podem ser mensuradas e facilmente apreendidas. São aquelas ensinadas nos cursos superiores. As soft skills, por outro lado, seriam difíceis de mensurar e mais relacionadas à personalidade de cada um. Aqui há mais um engodo: conhecimento não pode ser mensurado. Não é areia para ser ensacado, transportado em caminhões e muito menos para ser retirado de algum lugar. O conhecimento não pode ser comprado. O alcance de um título escolar, ou acadêmico a partir do pagamento regular da mensalidade não é garantia alguma de que indivíduos tenham alcançado algum conhecimento consistente. Uma tal concepção apenas legitima propostas como a de substituir humanos por robôs. Se o conhecimento fosse quantificável, o corolário mais lógico seria o de que aparelhos eletrônicos poderiam armazenar mais conhecimento, logo teriam uma predisposição maior às hard skills. A educação seria supérflua e mais importante seria aprender a fazer. Ainda neste contexto, trata-se de reconhecer diferenças entre informação e conhecimento. A informação constitui-se no relato de fatos, de acontecimentos em seus aspectos conjunturais, ou mesmo na apresentação de dados estatísticos sobre um determinado recorte da realidade. Sob tais perspectivas, cotidianamente se produzem muitas, senão trilhões de informações em função da quantidade de fatos, de acontecimentos e pesquisas sobre aspectos pontuais levadas adiante pelos departamentos de marketing de empresas e de governos, mas também por instituições públicas e privadas de pesquisa. Inúmeras informações disponíveis para consumo imediato e, na medida de seu consumo instantâneo para serem descartadas. Por seu turno o conhecimento requer disposição para o tratamento analítico das informações, o que significa tempo e esforços para selecioná-las a partir de um objeto de pesquisa previamente estabelecido, de objetivos e hipóteses constituídas. O conhecimento requer verificação das fontes de informação, a apreciação do rigor com que foram coletadas e, sobretudo a análise de sua efetiva correspondência fenômenos da mesma espécie, o que poderá conduzir a compreensão suficiente dos mesmos. O conhecimento requer tempo reflexivo suficiente para afirmar, ou desconsiderar determinado conjunto de informações. O conhecimento não pode ser simplesmente consumido, precisa se compreendido. Nesta direção, é preciso que nos questionemos em que momento a informação se desvinculou do conhecimento na contemporaneidade. Sabe, caro leitor, quem faz sem saber que faz? Os outros animais. A única espécie animal que tem consciência do que faz é o homo sapiens sapiens, mas aparentemente está entrando em extinção, pois não parece mais saber que sabe (sapiens sapiens). Muitos preferem terceirizar o pensamento. Por fim, a segunda falácia da dicotomia soft-hard skills: se é mais fácil aprender uma hard skill, por que são necessárias as universidades? Mais do que isso, por que os universitários reprovam? Por que se formam sem saber absolutamente tudo sobre o campo que passaram anos estudando? Será porque não é tão “fácil” assim?
Interessa a nós, nesta coluna, especificamente uma habilidade que, devido à péssima qualidade dos pretensos conceitos (soft e hard skills), certamente fruto da baixa qualidade dos estudos de hard skills de quem os propôs sem ter aprendido suficientemente algo que há de muito fácil na filosofia (um conceito é apenas uma abstração que não pode dar conta do mundo, mas precisa possibilitar minimamente diferenciação entre uma coisa e outra), não conseguimos classificar: segurar canetas. A habilidade para segurar uma caneta, mas principalmente para escrever com uma caneta já foi uma grande arte. Não apenas pela pequena quantidade de pessoas letradas, mas também pela dificuldade para uma escrita sem borrões ao usar penas e canetas tinteiro. Quem teve a experiência, como nós, de escrever com caneta tinteiro sabe bem a dificuldade para escrever um texto sem nenhum borrão. Há técnicas para segurar a caneta, apoiar a mão no papel, escrever, encher o depósito de tinta etc. Em grande medida essas habilidades se perderam por conta do aparecimento de canetas esferográficas, como a caneta BIC.
A caneta BIC foi criada pelo italiano Marcel Bich e por Edouard Buffard. Em 1944, os dois sócios compraram uma fábrica no interior da França para produzir instrumentos de escrita e, em 1950, lançaram a caneta esferográfica BIC, inspirada na caneta esferográfica do húngaro László Biró[i]. De lá para cá, as canetas tinteiro perderam espaço e, com elas, também fomos perdendo as respectivas técnicas de manuseio. Escrever com caneta esferográfica é bastante mais simples, as canetas são mais baratas e a produção é mais rápida. Vários motivos de ordem econômico-pragmática resultaram na substituição das canetas tinteiro pelas canetas esferográficas, não obstante as primeiras continuarem a existir. Ora, se interessa à educação valorizar as habilidades, por que “a economia desprestigia” (sim, de acordo com os neoliberais, a economia é um ser vivo, com vontade própria, humor e muita fome – o fato mais estranho é que não conhecemos ninguém com o nome Economia, mas ouvimos falar de mulheres com esse nome a todo momento e elas nos parecem muito irritadas e perigosas!) a habilidade de manusear uma caneta mais complexa?
Evidentemente seria negligência de nossa parte desconsiderar o argumento dos conservadores, mas, sobretudo dos aristocratas para quem a BIC democratizou o acesso das massas a caneta. Ora fenômenos sociais de massificação conduzem necessariamente a degenerescência da nobre arte de escrever manuseando caneta tinteiro, ou mesmo outras canetas em suas refinadas características técnicas. Ou seja, a massificação conduz necessariamente a mediocrização da arte da escrita e, sobretudo da despersonalização de cada caneta tinteiro, ou outras canetas imponentes utilizadas ao longo do percurso histórico nas assinaturas de declaração e guerra, de tratados de paz, de afirmação de limites territoriais e tantas outras assinaturas estratégicas e fundamentais para comunidades, povos e países. Com a massificação houve a perda da aura da caneta, de seu status civilizatório. Agora qualquer um, do milico ao capitão, qualquer um pode assinar. Basta ter uma caneta BIC por perto.
Mas o que isso tem a ver com governos? A capacidade de um governante pode ser, ainda que não quantitativamente, constatada pelas habilidades que demonstra. Assim como um pedreiro que não sabe rebocar uma parede tem pouca habilidade para exercer a profissão, um governante que não sabe segurar uma caneta tinteiro também tem pouca habilidade para escrever, logo... Resta apenas assinar às pressas o trabalho feito pelos rábulas. Claro que um governante sempre tem assessores. Geralmente estão à altura: tão grandes ou tão medíocres quanto o governante. Um governante que opta sempre por fazer as coisas do jeito mais aligeirado e irrefletido não tem skill nenhuma. Ou, melhor, tem duas skills: dizer que tem skills e assinar rapidamente os documentos, talvez sem ler nada, e preferencialmente se forem documentos referentes à compra de milhões de reais em lagostas, caviar, camarões e leite condensado.
Se as canetas falassem provavelmente teríamos outra compreensão dos fatos, dos acontecimentos e dos personagens que as utilizaram. Por outro lado, se tomarmos a famosa obra de Georg Orwell, “A Revolução dos Bichos”, talvez não seja despropositado pensar na “Revolução da Caneta BIC”, afinal para além da postura elitista da aristocracia que a acusa de massificação do acesso à caneta e a escrita é preciso reconhecer os avanços na cultura popular promovido pela caneta BIC. Mais pessoas passaram a escrever com caneta. Antes o lápis dominava a cena. Mas, quando a escrita do lápis não interessava, era fácil apagá-la definitivamente. Mais pessoas escrevendo com caneta BIC significa mais ideias transitando, motivando os leitores, promovendo questionamentos, articulando movimentos sociais, articulando a luta pelos direitos individuais e sociais. Porém, é preciso considerar que a extensão da fama da caneta BIC cobra seu preço, o fato de não estar isenta de cair nas mãos de governantes ineptos, operadores da lógica neoliberal, xenófobos, misóginos que no silencio da madrugada assinam portarias, decretos, medidas provisórias retirando direitos individuais e sociais, entregando os ativos do Estado aos interesses privados.
Notas e Referências
[i] https://br.bicworld.com/sobre-nos/nossa-heranca-sua-paixao
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597
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