GIG ECONOMY E AS RELAÇÕES DE TRABAHO

02/07/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

O Direito do Trabalho no Brasil foi instituído com base em uma relação laboral cuja subordinação e requisitos para configuração das relações empregatícias eram diferentes das mantidas atualmente. Com a propagação das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTIC) surgiram novas formas de trabalho para as quais a legislação que está posta nem sempre apresenta respostas satisfatórias, demandando uma atualização das regras laborais e de sua interpretação que devem ocorrer de acordo com a nova realidade das relações líquidas em que vivemos.

O Direito, assim como o comportamento humano e as relações de trabalho, também sofrerá as consequências das mutações sociais e buscará regulamentá-las no intuito de realizar o bem comum e atingir a pacificação social.

As mudanças do Direito do Trabalho estão intrinsecamente ligadas às Revoluções Industriais e suas características essenciais. A cada Revolução Industrial surge a necessidade de serem efetuados ajustes entre a modernidade advinda dessas revoluções e as relações laborais, de modo que haja incorporação importante de novas e antigas tecnologias. Assim, a Quarta Revolução Industrial, que atualmente se apresenta, é fruto de transformações que vêm acontecendo há tempos e fomenta a inteligência artificial, a robótica, os drones, a internet das coisas, a estocagem de dados e de energia, etc.

A Quarta Revolução Industrial combina tecnologias inovadoras capazes de aprimorar a indústria e potencializar sua produtividade, com a utilização de robôs, segurança cibernética, impressão 3D, integração horizontal e vertical de sistemas, informação em tempo real, big data, entre outras. Há potencial de melhorar a qualidade de vida e de trabalho de determinadas pessoas e devem-se criar novos empregos menos centrados nas tarefas executadas e mais focados nas habilidades trazidas para o trabalho, pois robôs podem ser excelentes para tarefas repetitivas e restritas, mas os seres humanos têm maior capacidade de usar a criatividade para enfrentar a resolução de problemas complexos e inéditos.

A economia disruptiva, que torna obsoleta determinadas profissões, deve ser analisada com cautela e equilíbrio, tendo em vista a necessidade de conciliação entre capital e trabalho para a existência de uma sociedade próspera.

A tendência é que parte considerável das empresas atue por meio de plataformas digitais e a alteração provocada na sociedade em razão das novas tecnologias faça com que o contrato de trabalho não se mantenha inalterável.

A organização social em rede incrementa a produtividade e a eficiência na organização, conduzindo ao crescimento econômico. Portanto, a organização centralizada e hierarquizada, fundamentada na divisão funcional do trabalho, acabará substituída por uma estrutura descentralizada, embasada em projetos por resultados, o que favorece outras formas de contratação.

Considerando a nova conjuntura, trabalhar por meio de aplicativos não exige mais os mesmos requisitos da prestação de serviço nos moldes como constatamos hodiernamente, pois, diante da nova tecnologia disponível, as atividades podem ser feitas à distância, de forma fluída.

Nesse contexto, importante mencionarmos o surgimento da “Gig Economy”. Os instrumentos da “Gig Economy” possibilitam o contato direto entre as pessoas e as empresas localizadas em qualquer lugar do mundo sem que haja (supostamente) formação de vínculo de emprego, bastando o uso de plataformas on-line para que ocorra essa relação, podendo abranger uma enorme variedade de serviços.

Independente da posição adotada, um fato é certo: a economia caracterizada pela oferta de serviços através de plataformas digitais vem crescendo e grande parte da população disputa digitalmente o próximo trabalho informal. Tais plataformas oferecem serviços sob demanda, executados por trabalhadores temporários, sem vínculo com o contratante e com a plataforma que faz a intermediação.

Muitos desses trabalhadores optarão pelo labor sob essa modalidade há vista as jornadas flexíveis e mais autonomia. Entretanto, para milhões de trabalhadores não haverá escolha – participarão da “economia de bicos” pelo fato de não terem obtido melhor ou sequer outra colocação.

Inconteste que a GIG Economy deu acesso a uma rede extremamente ampla de trabalhadores. Isso, por sua vez, concede um nível de flexibilidade inédito para as partes envolvidas. Os trabalhadores são fornecidos “just-in-time” e são pagos apenas durante os momentos em que realmente trabalham para um cliente. Porém, tais trabalhadores não se encaixam em nenhuma das categorias profissionais regulamentadas, o que já está ensejando problemas em relação aos serviços prestados sob tal forma.

O Ministério Público do Trabalho de São Paulo ingressou com duas ações civis públicas contra aplicativos de entrega, pois, segundo referido órgão. tais empresas tratam os trabalhadores de maneira ilegal; por outro lado, as empresas afirmam inexistir qualquer irregularidade e mencionam a reinvenção da logística.

Importante destacar que a discussão relevante nessas ações civis públicas é o limbo jurídico em que esses profissionais se encontram, que faz com que seja premente a regulamentação desses aplicativos de entrega

Hodiernamente, tais profissionais nem sequer conseguem entender se devem reivindicar melhorias como profissionais autônomos ou como empregados. A questão da autonomia ou existência de relação de emprego não é nova, sendo certo que, em agosto de 2018, o Ministério Público de São Paulo ingressou com ação civil pública em face de um determinativo aplicativo, no importe de R$200.000.000,00 (duzentos milhões de reais), onde para os promotores restou devidamente demonstrado que os profissionais acabam sendo de certa forma usados pelo aplicativo e que o desequilíbrio de mercado acaba por provocar um “dumping social” sobre as empresas tradicionais, de acordo com a Lei Federal nº 12.529/11, que estrutura a concorrência.

Em fevereiro de 2019, igualmente, o Ministério Público do Trabalho ingressou com a mesma ação em face de outro aplicativo pelo mesmo motivo: burla da relação de emprego, pedindo o reconhecimento de emprego e o pagamento de multa por dano moral coletivo no importe de R$24.000.000,00 (vinte e quatro milhões de reais) por não ser o aplicativo um fim, mas um meio para a operacionalização de sua atividade principal.

Ao serem utilizados os serviços das plataformas digitais, estas simplesmente conectam o consumidor a um provedor que oferecerá o serviço naquele dado momento. Dessa forma não se pode afirmar que estamos diante de uma relação de emprego típica: o trabalhador se vê obrigado a vestir um manto (e se apresentar no mercado de trabalho) como pseudo-empreendedor. Todavia, não significa que referida prestação de serviços não se enquadraria em outra modalidade de contratação prevista pela legislação.

A “GIG Economy” é uma realidade nos tempos atuais e apesar de conduzir a força de trabalho para o individualismo, há que se analisar se será mais eficaz quando acompanhada de interdependência, embora seja difícil imaginarmos uma relação de emprego com tão pouca supervisão e tamanha autonomia, pois como é sabido a configuração do vínculo de emprego exige a presença cumulativa de todos os requisitos dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho.

As relações de trabalho estão se adaptando às circunstâncias variáveis do mundo moderno e aos sistemas de trabalho on demand. Há grandes mudanças acerca da liberdade e autonomia na condução dos serviços, não se exigindo o cumprimento de horários pré-determinados ou carga horária mínima, podendo haver relação de emprego sem supervisão e com autonomia diante de uma configuração legal de relação de emprego que não exige a presença cumulativa de todos os requisitos do artigo 2º e 3º da CLT. O que precisamos saber é como será regulamentada essa nova forma de contratação e como ficará a figura do trabalhador que não recebe salário, férias remuneradas, vale-refeição, horas extras, FGTS, dentre outros encargos trabalhistas. Essa nova modalidade é adequada para a atual realidade de escassez de empregos formais e estáveis?

Embora a Lei nº 13.467/17, conhecida como “Reforma Trabalhista”, tenha surgido com o objetivo de modernizar as relações laborais, adequando a legislação trabalhista às novas relações de trabalho, não o fez de forma aprofundada acerca dos reflexos da aplicação, desenvolvimento e uso das novas tecnologias sobre as relações atuais, bem como sobre as novas formas de contratação que surgirão com o avanço tecnológico, o que enseja dúvidas e insegurança jurídica.

Verifica-se, portanto, que a implantação das novas tecnologias da informação aliada à competitividade do mundo moderno provoca a quebra do paradigma clássico do Direito do Trabalho, com o surgimento de diversas modalidades de contrato, formas de associação ou variações dos modelos existentes, tais como: o contrato a termo, o trabalho temporário, a domicílio, a tempo parcial, o teletrabalho, o intermitente, por exemplo.

Conforme bem adverte o professor Nelson Mannrich ao citar outros autores:

“Crowdsourcing, para Jef Howe, citado por Graciela Bensusán, equivale ao ato de tornar um trabalho, tradicionalmente desempenhado por um agente determinado (geralmente um trabalhador), e subcontratá-lo à um grupo indefinido e geralmente grande de pessoas , por meio de convocação aberta . Embora classificado de autônomo, o crowdworker reúne características de três modalidades atípicas de emprego: trabalho temporário, a tempo parcial ou por meio de agência. Com a economia gig, a oferta e demanda de atividades laborais unem-se on line como lembra Juan Raso. É verdade que surgem, assim, novas oportunidades de trabalho, mas pode ser o caminho para uma severa precarização das condições”[1]

A expectativa de que a revolução tecnológica traria mais tempo e liberdade ao trabalhador não parece se coadunar à realidade, pois o uso das tecnologias vem precarizando as relações de trabalho através da sedutora e ilusória ideia de liberdade.

Ao mesmo tempo em que o trabalhador pensa ter se libertado do vínculo empregatício, a “uberização das relações de trabalho” mantém uma nova forma diferente de controle e fiscalização sobre eles.

A chamada “uberização do trabalho” nada mais é do que uma nova forma de organização, controle e gerenciamento do trabalho: o trabalhador é um nano empreendedor e a empresa não é a empregadora, mas sua parceira, não havendo qualquer tipo de contrato de trabalho ou prestação de serviços.

Esses trabalhadores passam a ser definidos como microempreendedores que têm liberdade sobre seu próprio trabalho, não têm patrão, administrando os riscos do empreendimento, não contando com direitos que vinham associados à exploração de seu trabalho.

Importante para a compreensão do fenômeno da “uberização das relações de trabalho” é não olharmos apenas para as inovações tecnológicas, mas também para o que há de mais precário e socialmente invisível no mundo do trabalho, restando evidente que a combinação entre precarização e desenvolvimento tecnológico está no cerne do desenvolvimento capitalista.

Ao pensar em economia digital devemos analisar o grande contingente de trabalhadores que vivem a ameaça do desemprego, o rebaixamento do valor da força de trabalho, os bicos, as duplas jornadas de trabalho, lembrando sempre que as relações de trabalho são naturalmente desequilibradas, permanecendo a exploração do homem pelo homem, a prevalência do capital em detrimento do  social.

Talvez no futuro a solução seja criar uma nova categoria legal de trabalhadores, que estariam sujeitos a determinadas regulamentações e cujos “empregadores” seriam responsáveis por alguns determinados custos, como reembolso de despesas e remuneração.

Portanto, há necessidade da manutenção de uma adequada legislação apta a proteger o trabalhador para que a força de trabalho humana não seja explorada de forma desarrazoada, mas também que proteja àqueles que têm a função social de gerar os empregos e produzir riqueza.

Deve-se buscar o equilíbrio entre os negócios daqueles que detêm os meios de produção e o direito ao trabalho digno daqueles que vendem sua mão de obra. Torna-se imperioso amoldar o contrato de trabalho aos novos modelos de trabalho para frear o desmantelamento do Direito do Trabalho e seus princípios protetores.

Permitir a redução das relações de emprego a patamares insignificantes dentro do mundo do trabalho ensejaria a eliminação da proteção ao trabalhador, cuja construção é tão importante à humanidade. Mas uma legislação por demais rigorosa e que também não proteja aqueles que detêm os meios de produção não é a solução. O melhor caminho é o equilíbrio.

 

Notas e Referências

[1] Mannrich, Nelson. Futuro do direito do trabalho, no Brasil e no mundo. Revista LTr., São Paulo, p.1293, Nov.2017.

 

 

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