Gestão de bens de crianças e de adolescentes: considerações sobre o caso Larissa Manoela

31/10/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Sempre que temos uma situação de grande repercussão na mídia, é comum vermos a proliferação de análises jurídicas sobre o tema. Geralmente, não comentamos casos específicos, já que qualquer entendimento deve se basear em fatos comprovados em processo judicial e não no que se fala na imprensa. Contudo, a administração de bens de crianças e adolescentes que tem uma fonte de renda, seja pelo desempenho de uma atividade artística, cultural ou esportiva seja por qualquer outro motivo, é um assunto recorrente e que precisa ser tratado com atenção, uma vez que conflitos dessa natureza podem ter repercussões profundas na vida familiar dos envolvidos.

Primeiramente, devemos relembrar que crianças e adolescentes são considerados “incapazes” para o Direito Civil, precisando de representação (quando forem absolutamente “incapazes” – art. 3º CCB/02) ou de assistência (quanto forem relativamente “incapazes” – art. 4º CCB/02) para a prática de determinados atos, em especial, aqueles de natureza patrimonial.

Em segundo lugar, os pais são legalmente responsáveis por administrar os bens dos filhos e podem usar os frutos desse patrimônio, o que chamamos de usufruto (arts. 1.689 a 1.693 do Código Civil). Essa é uma herança que remonta ao Direito romano, como decorrência do patria potestas e que foi minimamente adaptada ao Direito nacional, com algumas restrições.[1]

Nesse sentido, caso os pais desejem vender o patrimônio ou contrair obrigações que vão além da administração, eles precisam de autorização judicial e, caso haja conflito de interesses dos pais com a prole, esses mesmos filhos podem buscar o Poder Judiciário para fazer valer seus interesses (arts. 1.691 e 1.692 do Código Civil). A mesma lei exclui dessa administração e desse usufruto, valores recebidos pelo adolescente maior de 16 anos em razão do trabalho, bem como os bens que ele tenha comprado com seus rendimentos. Devemos lembrar que, também para o Código Civil, o adolescente com mais de 16 anos civil ou comercialmente estabelecido ou que, em razão de uma relação de emprego[2], tenha economia própria é considerado emancipado, ou seja, totalmente “capaz” de praticar autonomamente os atos da vida civil (art. 5º do Código Civil).

Recentemente, vimos que essas regras nem sempre conseguem garantir que não haja algum tipo de abuso dos pais em relação ao patrimônio dos filhos. Esse é um tema que precisa ser discutido, tendo em vista que, nos últimos anos, além de atores e esportistas mirins, há uma legião de crianças e adolescentes que estão produzindo conteúdo digital e obtendo renda.

Contudo, a situação que chamou a atenção de todos não ocorreu com uma criança ou um adolescente que ganhou destaque no mundo virtual. No dia 13 de agosto de 2023, o programa global Fantástico expôs uma entrevista com a cantora, autora e atriz Larissa Manoela e colocou em foco a discussão sobre a administração dos bens dos filhos pelos pais. Embora a atriz tenha conquistado o seu primeiro papel de destaque em 2012, aos 11 anos, ela teve sua primeira aparição na televisão em 2006 na série Mothern, do canal GNT, quando tinha 6 anos.[3]

O caso de Larissa Manoela chamou atenção pelo fato de os pais terem constituído uma empresa – o que fez com que eles não estivessem sob as regras restritivas do poder familiar – e estipulado a participação da filha em apenas 2% da empresa criada. Notem que, de 2006 a 2016, os pais estariam sujeitos a proibições legais, mas a empresa que administrava a carreira da atriz foi criada em 2014, época na qual Larissa tinha 13 anos.[4][5]

O fato de a artista “ter aberto mão” dos 18 milhões de reais que as empresas em seu nome tinham de patrimônio chocou o país. A partir da divulgação dessa história, onze projetos de lei (PL), tendo sido seis deles propostos no dia 15 de agosto – dois dias após a divulgação da reportagem –, foram elaborados e tramitam na Câmara dos Deputados, alguns deles recebendo o nome de Lei Larissa Manoela. Três desses PLs criam um crime específico para o abuso do patrimônio dos filhos e curiosamente estabelecem a mesma pena: detenção de seis meses a dois anos (PL n. 3.914/2023, PL n. 3.929/2023 e PL n. 3.997/2023). Com exceção do PL n. 3.914/2023 – que só cria o crime, todos os PLs trazem restrições à administração e ao usufruto dos bens de crianças e de adolescentes. Todavia, curiosamente somente três deles realmente seriam efetivos na vida da atriz, uma vez que trazem restrições às sociedades empresárias as quais têm como um dos sócios uma criança ou um adolescente.

Não deixa de chamar atenção que somente em dois dos projetos, há a preocupação em estabelecer que cabe ao gestor promover o bem-estar físico global das crianças ou dos adolescentes (PLs ns. 3.919/2023 e 3.929/2023). Estranha é a redação do último PL apresentado – PL n. 4.990/2023, que exclui do usufruto dos pais o patrimônio recebido pelo filho em decorrência do exercício de atividades artísticas, culturais e esportivas, mas obriga a esses pais, tutores ou responsáveis legais a  agir com boa-fé e visar o bem-estar de crianças e de adolescentes na gestão desse patrimônio, como esses gestores pudessem agir de outra forma quando gerem qualquer outro patrimônio. O PL n. 3.960/2023 determina que caberia ao Conselho Tutelar acompanhar periodicamente os trabalhadores mirins para assegurar que seus direitos estejam sendo cumpridos. Isso diz muito sobre o tipo de preocupação que nossos legisladores têm efetivamente com a população infantoadolescente.

Mudanças legislativas com o intuito de adequar as normas para que os institutos jurídicos protejam melhor os interesses patrimoniais de crianças e de adolescentes são bem-vindas. Contudo, abordar somente questões patrimoniais desatreladas da promoção dos aspectos existenciais é pensar com a visão patrimonialista do Código Civil de 1916 e não com o viés promocional da existência nos moldes de nosso texto constitucional.

 

Notas e referências 

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 5 out. 2023. 

COULANGES, Fustel de. Cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2009.

ENTENDA por que Larissa Manoela rompeu com os pais e como ficam os negócios da atriz agora: ela deixou com Silvana Taques e Gilberto Elias R$ 18 milhões de seu patrimônio. O Globo. 14 ago. 2023. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/gestao/noticia/2023/08/entenda-por-que-larissa-manoela-rompeu-com-os-pais-e-como-ficam-os-negocios-da-atriz-agora.ghtml. Acesso em: 5out. 2023.

LARISSA Manoela: De ‘Carrossel’ no SBT a protagonista na Globo; relembre a carreira da atriz. Estadão, 13 ago. 2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/gente/quem-e-larissa-manoela-relembre-a-carreira-da-atriz/. Acesso em: 5 out. 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.914/2023, de 15 de agosto de 2023. Acrescenta o artigo 244-C à Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, para instituir o crime de violência patrimonial contra a criança e o adolescente. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.919/2023, de 15 de agosto de 2023. Cria a “Lei Larissa Manoela” para regulamentar a gestão do patrimônio de menores que exerçam atividade artística. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.929/2023, de 15 de agosto de 2023. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para dispor sobre a proteção da criança e do adolescente em casos de conduta abusiva na gestão patrimonial, financeira e econômica dos recursos advindos de sua carreira artística ou esportiva. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.960/2023, de 16 de agosto de 2023. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) objetivando regulamentar percentual máximo relativo à administração do patrimônio dos filhos menores. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.997/2023, de 18 de agosto de 2023. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil e a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de promover a preservação patrimonial de crianças e adolescentes. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.990/2023, de 16 de outubro de 2023. Acrescenta o art. 1.693-A ao Código Civil – Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília: Câmara dos Deput

[1] Fustel de Coulanges ensina que em Roma todo patrimônio pertencia a família e o pai era o dono e gestor de tudo. Segundo ele, “[N] não podia adquirir nada; os frutos de seu trabalho, os benefícios de seu comércio iam para o pai”. (Coulanges, 2009, p 104).

[2] A lei fala em relação de emprego e não de trabalho. Com isso, se o adolescente for um prestador de serviços ou tiver um contrato de exploração de direito de imagem, em tese, ele teria que provar o seu estabelecimento civil, uma vez que a relação de trabalho é comprovada documentalmente pela assinatura da carteira de trabalho ou judicialmente por decisão judicial.

[3] LARISSA Manoela: De ‘Carrossel’ no SBT a protagonista na Globo; relembre a carreira da atriz. Estadão, 13 ago. 2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/gente/quem-e-larissa-manoela-relembre-a-carreira-da-atriz/#:~:text=Larissa%20come%C3%A7ou%20a%20atuar%20em,interpretando%20a%20cantora%20quando%20crian%C3%A7a. Acesso em: 5 out. 2023.

[4] ENTENDA por que Larissa Manoela rompeu com os pais e como ficam os negócios da atriz agora: ela deixou com Silvana Taques e Gilberto Elias R$ 18 milhões de seu patrimônio. O Globo. 14 ago. 2023. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/gestao/noticia/2023/08/entenda-por-que-larissa-manoela-rompeu-com-os-pais-e-como-ficam-os-negocios-da-atriz-agora.ghtml. Acesso em: 5 out. 2023.

[5] Segundo informações da revista Pequenas empresas grandes negócios trazidas pela própria Larissa, ela tinha uma segunda empresa na qual era a única sócia, mas toda a gestão era feita pelos pais que podiam decidir tudo referente ao empreendimento sem o seu aval.

 

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