Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
Relações entre o Direito e a arte se fazem possíveis, pois a arte, assim como o Direito, é um produto cultural. Além do mais, de acordo com Barthes, a “morte do autor” ocorre quando o receptor de uma mensagem, reinterpretando o sentido, atribui um outro significado ao texto.
Falar sobre Chico Buarque demanda uma breve digressão: trata-se de um autor racialmente hegemônico, leia-se, branco, do Sudeste, mais ao gosto da classe média brasileira que um Cartola, por exemplo. Ou um Batatinha. Ou João do Vale, cantor negro, maranhense, autor de “Carcará”, cantada em parceria com Chico. O pai deste, Sérgio Buarque de Holanda, escreveu “Raízes do Brasil”.
Nessa obra, Sérgio analisa um fenômeno chamado “bacharelismo”, isto é a supervalorização, no Brasil, de um diploma universitário. E do próprio bacharel.
Assim, levando em conta que o(a) bacharel (a) em Direito é o bacharel (a) por excelência, alguns assim chamados via pronome de tratamento, fazer um link entre Direito e uma canção de Chico Buarque é um risco: poderíamos estar agindo de acordo com a cultura do bacharelismo, ao sabor das “palavras bonitas e argumentos sedutores”, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda.
Assume-se o risco, sabendo que a alta cultura é uma forma de exercício de poder, de re-afirmações hierárquicas de classe e raciais. E a obra de Chico, convenhamos, é considerada alta cultura.
Problematizações à parte, “Geni e o Zepelim” pode suscitar algumas interpretações interessantes:
“De tudo que é nego torto/do mangue do cais do porto/ ela já foi namorada/o seu corpo é dos errantes/dos cegos dos retirantes/ é de quem não tem mais nada (...) é a rainha dos detentos/das loucas dos lazarentos/dos moleques do internato.”
O Direito Penal, dizem os autores, é uma conquista do Iluminismo, aquele movimento que colocou o homem (europeu) no centro do universo. Assim, o Direito Criminal significaria um freio ao arbítrio do poder de punir, uma verdadeira garantia ou “carta magna” do delinquente, diria Vont Lizst[1].
Às figuras citadas acima, na música de Chico, o ramo do Direito que melhor lhes abarca seria o Penal. Em regra, é quando o Estado com eles se preocupa, historicamente. Essas figuras desviantes - “nego torto”, “loucas”, “moleques do internato” seriam os destinatários certos da norma penal, embora o discurso oficial de igualdade perante a lei nos diga que “a lei é para todos”.
O internato dos moleques, “negos tortos”, em sua maioria, não difere muito das prisões.
Assim, se o Direito Penal, um direito humano de 1ª geração, está ocupado em proteger e punir os desviantes, esse ramo jurídico seria como a Geni, digno de pedras e cuspes. Poderíamos falar nos “direitos humanos”, que não se preocupam com o cidadão de bem, de acordo com o senso comum.
O homem de bem joga pedra na Geni. Mas, se na passagem bíblica, os apedrejadores de Madalena também tinham lá seus pecados, na música de Chico não é diferente. Surge um objeto aéreo de guerra, o zepelim, cujo comandante está disposto a destruir a cidade onde vivem os homens e mulheres de bem. Porém, para não levar o apocalipse e a destruição àquela localidade, o comandante faz uma condição: quer uma noite com a Geni.
Os homens de bem da cidade, “o prefeito, o bispo, o banqueiro”, imploram à Geni para que esta atenda ao pedido. Se Geni fosse o Direito Penal, a Advocacia Criminal e a Defensoria Pública, o “cidadão de bem”, ao receber a intimação/chamado do comandante – “aparelhos repressivos de Estado[2]” (Judiciário, Ministério Público e Polícias), vai reclamar para si as garantias penais e processuais penais, tão execráveis, tão ligadas somente a bandidos, dentre outras “chicanas processuais”. Sim, eles vão querer um(a) advogado (a) criminal. Ou defensor(a) público(a), para si ou para os seus.
E vão desejar proteger a própria imagem, ou dos seus, da execração pública, do “apedrejamento virtual”, via mídias sociais ou tradicionais. “(...) ela é um poço de bondade”. “você pode nos salvar(...) bendita Geni.” Cantaria Chico.
E, o “Direito dos bandidos”, o Direito e Processo Penal, passariam a ser benditos[3].
Mas, na música analisada, após conseguirem convencer Geni a se deitar com o comandante, este vai embora, após uma noite “lancinante” com aquela. E Geni, quando pensa que poderá dormir em paz, é acordada com os gritos das pessoas de bem, com direito a pedras e palavrões, novamente.
Notas e Referências
[1]https://sites.usp.br/cienciascriminais/franz-von-liszt-e-a-politica-criminal/
[2] Para Althusser, os órgãos encarregados pela persecução penal são aparelhos repressivos de Estado. In ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editora Presença, 2000.
[3] Sobre o tema: www.justificando.com/2016/06/28/o-que-e-a-presuncao-geni-de-inocencia-no-processo-penal/
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