Garantias, prerrogativas e vedações para os membros da Defensoria Pública sob o viés Constitucional

22/08/2018

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

A Constituição Cidadã, que em 05 de outubro deste ano completa 30 anos, dedica um capítulo inteiro às funções essenciais da justiça (Capítulo IV): O Ministério Público (Seção I), a Advocacia Pública (Seção II), a Advocacia (Seção III) e a Defensoria Pública (Seção IV).

         Neste texto, iremos nos ater à Defensoria Pública e suas prerrogativas garantidas constitucionalmente, de modo a contribuir no fortalecimento do Estado democrático de Direito. 

         Consiste a Defensoria em instituição criada pelo Estado e voltada primordialmente à defesa dos necessitados, ou seja, aqueles que não podem custear um advogado sem prejuízo de sustento próprio ou da família. Surge em um momento de retomada democrática, após 21 anos em que o país esteve sob um regime autoritário e de inquestionável supressão dos direitos individuais.

Com a finalidade de assegurar a todos a igualdade material positivada no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, a Defensoria Pública surge em um momento de premente necessidade de fortalecimento das instituições do país que garantam o acesso à justiça de qualidade.

Dessa forma, aos defensores públicos foram asseguradas garantias, (art. 134, § 1º da CF/88 c/c arts. 43 e 127 da LC nº 80/1994), de modo a destacar sua fundamentalidade no Estado Democrático de Direito. São elas:

(i) inamovibilidade (consiste na vedação da remoção do Defensor Público do órgão de atuação onde o mesmo esteja lotado para qualquer outro independentemente de sua vontade, ou seja, de modo compulsório);

(ii) a independência funcional (atribuindo autonomia ao convencimento técnico-jurídico dos defensores, que o exercem de forma independente e livre)

(iii) irredutibilidade dos vencimentos (prerrogativa conferida a todos os servidores públicos, nos termos do art. 37, inciso XV, CF/88);

(iv) estabilidade (sendo adquirida, na qualidade de ocupante de cargo público, após três anos de efetivo exercício).

Quanto às prerrogativas enunciadas para os integrantes da carreira, a LC nº80/1994, dispõe na Seção III, em seus artigos 44 e 128. Destacaremos as seguintes:

(i) todos os membros da Defensoria são detentores do direito à prisão especial ou em sala especial de Estado Maior, com direito a privacidade e, após sentença condenatória transitada em julgado, ser recolhido em dependência separada, no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena;

(ii) os defensores não serão presos, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante, caso em que a autoridade fará imediata comunicação ao Defensor Público-Geral;

(iii) os defensores serão intimados pessoalmente em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, mediante entrega dos autos com vista, contando-se-lhes em dobro todos os prazos;

Sobre a intimação pessoal e a contagem do prazo em dobro, STF e STJ possuem algumas decisões importantes:

(i) O STF, no HC 70514-RS[1], entendeu que a prerrogativa do prazo em dobro no processo penal, apesar de o MP não gozar da mesma prerrogativa, é constitucional, até que a Defensoria Pública se instale e se organize efetivamente, vale dizer, até que sua estruturação em âmbito estadual alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública. Trata-se da figura da chamada “lei ainda constitucional” ou “inconstitucionalidade progressiva”, na qual a Corte considera que a lei, que é temporariamente constitucional, tornar-se-á inconstitucional tão logo circunstâncias de fato forem implementadas.

(ii) Nos HCs 89710-SP[2] e 89315-SP[3], o STF decidiu que a intimação pessoal do defensor dativo tornou-se obrigatória apenas para intimações ocorridas a partir do advento da Lei 9.271/1996, que incluiu o §4º ao art. 370 do CPP, conferindo ao defensor dativo atuante na área penal a referida prerrogativa. Note-se, destarte, que os atos processuais anteriores à lei e em desacordo com ela não podem ser considerados nulos. Por outro lado, quanto à prerrogativa do prazo em dobro, não se aplica ao advogado dativo.[4]

(iii) Ainda sobre a prerrogativa do prazo em dobro, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela possibilidade de extensão da prerrogativa da contagem em dobro dos prazos processuais aos advogados conveniados à Defensoria Pública, desde que estejam atuando no processo por sua indicação. Outrossim, reafirmou a impossibilidade de concessão da contagem em dobro dos prazos processuais aos advogados dativos, em razão de não integrarem o quadro estatal da assistência judiciária. Os advogados credenciados à Defensoria Pública, por outro lado, atuam no feito por sua indicação e em decorrência do convênio firmado com a OAB, de forma que não se pode equipará-los aos advogados dativos em geral. Por tais razões, estendeu-se pela possibilidade da extensão da referida prerrogativa.[5]

(iv) Ademais, acerca da intimação pessoal do Defensor Público no Juizado Especial, o STF se posicionou no sentido de sua dispensabilidade, sendo bastante que a intimação se faça pela imprensa oficial. Tal entendimento afasta a incidência do art. 370, § 4°, CPP, conferindo aplicação, com base no princípio da especialidade, ao art. 82, §4º, da Lei n° 9.099/1995.[6]

(v) Os órgãos da Defensoria são destinatários de honorários advocatícios se vencedores na causa mesmo que a atuação tenha ocorrido em face da pessoa jurídica de direito público à qual pertença. Para o STF, em julgamento proferido em sessão plenária, após as Emendas Constitucionais 45/2004, 74/2013 e 80/2014, tornou-se possível “a condenação da União em honorários advocatícios em demandas patrocinadas por aquela instituição de âmbito federal, diante de sua autonomia funcional, administrativa e orçamentária, cuja constitucionalidade foi reconhecida[7]”. Esta nova visão da Corte deve provocar a revisão da súmula 421[8] do STJ, cujo enunciado adota como pressuposto a noção equivocada de que a Defensoria seria um órgão sem autonomia, cujos recursos seriam provenientes das verbas do Estados ou da União.

(vi) Para que a Defensoria Pública de um Estado possa atuar diretamente no STJ, deverá possuir escritório de representação em Brasília, caso contrário, as intimações daquele Tribunal nos processos de interesse da DPE serão feitas para a DPU, sendo este um entendimento jurisprudencial do STJ, reafirmado em dezembro de 2016 pela 6ª Turma no julgamento do Agravo Regimental no HC 378.088/SC[9]. Assim, enquanto os Estados, mediante lei específica, não organizarem suas Defensorias Públicas para atuarem continuamente na Capital Federal, inclusive com sede própria, o acompanhamento dos processos em trâmite no STJ constitui prerrogativa da Defensoria Pública da União.[10]

Ainda no que se relaciona com as prerrogativas, vale lembrar que em 2010 o STF apreciou uma ação direta de inconstitucionalidade[11], referente a certos dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro concernentes às prerrogativas para os defensores públicos. No aspecto que agora nos interessa, concluiu pela inconstitucionalidade do dispositivo que estabelecia como prerrogativa do defensor público poder requisitar administrativamente de autoridade pública e dos seus agentes ou de entidade particular certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos, providências necessárias ao exercício de suas atribuições. Foram duas as principais justificativas que embasaram a decisão: primeiramente cuidou-se de evitar a criação de um “superadvogado”, com “superpoderes”, o que certamente quebraria a igualdade com outros advogados, que precisam ter certos pedidos deferidos pelo Judiciário. Também considerou a Corte que tal prerrogativa implicaria “além de interferência em outros poderes, prejuízo na paridade de armas que deve haver entre as partes”.

Dentre às vedações impostas aos defensores pela Constituição da República, encontra-se a de exercer a advocacia fora das atribuições institucionais.

Sobre o tema, já decidiu o STF[12] a inconstitucionalidade do art. 137, da LC nº 65/2003, de Minas Gerais que, ao organizar a Defensoria Pública do Estado, permitiu aos defensores públicos exercer a advocacia fora de suas atribuições institucionais até que sejam fixados os subsídios dos membros da carreira. De acordo com a Corte, sobre o dispositivo em análise pode-se dizer que

é flagrante a sua desarmonia com a norma veiculada pelo art. 134 da Constituição do Brasil, que repudia o desempenho, pelos membros da Defensoria Pública, de atividades próprias da advocacia privada. A LC 80 / 1994 define expressamente, nos artigos 46, 91, 130 e 137 ser vedado o exercício da advocacia pelos membros da Defensoria Pública, quer no âmbito estadual, quer no federal. E, ainda na eventual inexistência do texto da lei, o exercício da atividade que se cuida fora das atribuições institucionais é categoricamente proibido desde o advento da Constituição de 1988. Os §§ 1º e 2º do art. 134 da Constituição do Brasil, veiculam regras atinentes à estruturação das defensorias públicas que o legislador ordinário não pode ignorar.

A título de conclusão, afirma-se que com o intuito de resguardar uma prestação isonômica e efetiva da tutela jurisdicional aos hipossuficientes, a Defensoria Pública ocupa posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro. Observa-se sua constante presença nos tribunais superiores do país, além de significativa ampliação legislativa de suas garantias e prerrogativas.

A atribuição de autonomia funcional às defensorias representa o fortalecimento das entidades essenciais à justiça, de modo que previsões isoladas constantes na Lei Orgânica da Defensoria Pública vêm assumindo lugar de destaque no cenário jurídico, sendo detalhadas por leis que estruturam o Estado Democrático e Social Brasileiro. 

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União: Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 16 de agosto de 2018.

________. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de  1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 1994. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/leicom/1994/leicomplementar-80-12-janeiro-1994-363035-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em 16 de agosto de 2018.

_______. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004.
Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc45.htm. Acesso em 10 de agosto de 2018.

_______. Emenda Constitucional nº 74, de 06 de agosto de 2013. Altera o art. 134 da Constituição Federal. Diário Oficial da União: Brasília, 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc74.htm. Acesso em 10 de agosto de 2018.

________. Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014.
Altera o Capítulo IV - Das Funções Essenciais à Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes, e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Diário Oficial da União: Brasília, 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc80.htm. Acesso em 10 de agosto de 2018.

MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 6.ed. rev. ampl. e atual.Salvador: JusPODIVM, 2018.

[1].      Rel. Min. Sydney Sanches, julgado em 23.03.1994, Tribunal Pleno.

[2].      Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 12.122006, Primeira Turma, noticiado no informativo 452.

[3].      Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 19/09/2006, Primeira Turma.

[4].      CR 7870-EU-Estados Unidos da América (AgR-AgR), Rel. Min. Marco Aurélio, julgada em 07.03.2001, Tribunal Pleno.

[5].      STJ, HC 30799-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 05.05.2005, Quinta Turma.

[6].      HC 81446-RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 16.04.2002, Primeira Turma, noticiado no informativo 362.

[7].      AR 1937 AgR, Plenário, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 30/06/2017 

[8].      “Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença.”

[9].      AgRg no no HC 378.088/SC, STJ, Rel. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 06/12/2016.

[10].     AgRg no AREsp 230.296/AL, STJ, Rel. Min. Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 28/05/2013.

[11].     ADI 230-RJ, STF, Rel. Min. Cármen Lúcia, noticiada no Informativo 573, STF.

[12].     Na ADI 3.043-MG, STF, Rel. Min. Eros Grau, noticiada no Informativo 424, STF.

 

 

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