Fux versus Toffoli ou como ainda é feio jogar cigarro no chão

27/01/2020

Sócrates afirmou que a ética trata de um assunto muito importante: “saber como devemos viver". Sabemos que a filosofia moral é uma tentativa de dar alguma compreensão mais ou menos sistemática da natureza da moralidade. Entretanto, ainda que se buscasse uma definição simples de moralidade, o intento sempre esbarraria no fato de ser isso impossível. A controvérsia é imensa. Há muitas teorias e cada uma delas propõe uma concepção diferente do que significa viver moralmente.

É fácil imaginar a gama de questões passíveis de serem levantadas a respeito do que é certo e do que é errado fazer. Não é fácil falar de ética e moralidade.

Agora imagine que um sujeito se senta no banco de uma praça e puxa uma carteira de cigarros do bolso. Retira um cigarro, acende e fuma até a última tragada. Terminado o ritual, tantas vezes repetido no mesmo dia, o sujeito vai à procura de um lugar para depositar a ponta do seu cigarro. Porém, ao olhar para o chão, percebe que há muitas pontas de cigarro naquele local, possivelmente por ser um local bastante frequentado por fumantes que também lançam a sobra do seu prazer suicida no chão. Um cigarro a mais, não vai fazer diferença. O sujeito joga a sua ponta, se levanta e vai embora.

Desviando todas as controvérsias sobre ética ou sobre etiqueta, tomada como a pequena ética ou, simplesmente, como boas-maneiras, não resta nenhuma dúvida que o comportamento do nosso querido fumante é censurável. Agiu mal. Não é correto jogar ponta de cigarro no chão. É feio.

Nesse escrito, porém, não quero falar dos males do cigarro, nem do maior agente poluidor dos oceanos (que é a ponta de cigarro). Quero fazer um convite à reflexão sobre os nossos pequenos pecados, nossos pequenos erros diários, nossas pequenas faltas cotidianas e de como isso vai sendo naturalizado por nós mesmos e por todos. Quero fazer um convite para que pensemos sobre a ética (grande ética) e sobre a etiqueta (pequena ética). Mais do que isso, quero propor o debate sobre como nossa vida se torna medíocre e nossa comunicação se torna violenta, quando abandonamos a ética nas decisões e na relação com o Outro.

Dizer por favor, obrigado, bom dia; sair da cama e arrumá-la; recolher a bandeja ou os pratos depois de consumir o alimento; lavar a louça e as roupas íntimas; dar a preferência para as pessoas idosas; tudo isso é sinal, simplesmente, de boa educação. Pequena ética. Grandeza.

Não sou daqueles que acredita que o mundo está vivendo, atualmente, a maior crise de valores de todos os tempos. Depois de ler alguns livros de 300 e 400 antes de Cristo, sobre a visão que os gregos tinham do seu tempo, por exemplo, já dá para desistir da ideia de que o nosso tempo é o mais difícil ou que a nossa crise é a mais aguda. Vivemos os problemas do nosso tempo e não resta dúvida que a nossa tarefa é, exatamente, discutirmos aquilo que afeta o nosso modo de vida e as decisões (diárias) que tomamos. É no cotidiano que vamos (des)construindo tudo aquilo que importa para uma vida virtuosa (Aristóteles). Desde a ponta de cigarro no chão à falta de educação com o garçom, passando pelas grandes decisões que afetam a vida de toda a nação, o certo é que estamos destruindo valiosas possibilidades de construção de momentos positivos de convivência.

Quando a ética é esquecida (a grande e a pequena), a comunicação tende a ser violenta e o que decorre disso é a perda da chance de entrega do nosso melhor ao Outro. Entre a compaixão e a violência, sem que haja a devida reflexão sobre as consequências das nossas atitudes, vamos nos dessensibilizando, nos amortecendo, perdendo a capacidade de ternura (Vinícius de Moraes). Isso acontece quando deixamos de cumprimentar, de abraçar, de elogiar, de agradecer, de dizer que amamos, de reconciliar, de perdoar. Isso acontece quando somos corruptos, desonestos, injustos. A perda da chance de uma ação ética mostra como a violência toma conta da nossa vida cotidiana, mesmo sem notarmos.

O que eu quero dizer é que não podemos esquecer a importância da ética nas grandes decisões e nas pequenas atitudes cotidianas, sob pena de irmos nos acostumando a pensar que o Outro não importa ou que o Outro não se importa. Não podemos perder a chance de uma atitude compassiva, não-violenta, que considera o Outro, que vai além da simples satisfação das vontades próprias e dos interesses pessoais. É fundamental escutar com respeito, assim como entender que os sentimentos são indicativos de necessidades e que a comunicação clara, verdadeira, sincera, pode mostrar os caminhos para uma relação cercada de amor e acolhimento (Marshall Rosenberg).

Enquanto eu estava escrevendo esse texto, recebi do meu amigo Salo de Carvalho, uma cópia do discurso proferido por ele, na condição de Patrono, na formatura da FND. O texto primoroso, como sempre, traz uma citação que peço licença para transcrever aqui: “No universo do utilitarismo, um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servira música, a literatura ou a arte.” (Ordine, A Utilidade do Inútil)

Não podemos perder a capacidade de sensibilidade. Tampouco a capacidade de indignação. Ser compassivo, não quer dizer ser submisso ou alienado.

O Outro importa.

Agora imagine que o Ministro Luiz Fux deferiu liminar em Medida Cautelar nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, no dia 22 de janeiro. Fux reformou a decisão proferida pelo seu colega e Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, notadamente no que diz respeito à Audiência de Custódia, Arquivamento do Inquérito e Juiz de Garantias. Assumindo a posição de Presidente, pela licença do titular do cargo, o Ministro Fux atropelou o que havia decidido seu colega e tornou sem efeito a liminar há pouco concedida.

De uma só vez, Luiz Fux: 1) passou por cima da decisão do Ministro Dias Toffoli; 2) agiu politicamente em relação ao Juiz de Garantias, atendendo aos anseios do Ministro Sérgio Moro e em afronta clara ao Poder Legislativo; 3) agiu corporativamente em relação à Audiência de Custódia, ao atender o pleito das Associações de Juízes; 4) agiu de forma contraditória, já que decidiu contra a sua posição, que foi acolhida pelo Plenário, conforme votação em plenário da ADI 5.240, quando defendeu a realização da audiência de custódia nos exatos termos do novo art. 310.

Luiz Fux se sentou na cadeira de Ministro do STF, acendeu seu cigarro e, depois de algumas baforadas, jogou a ponta ao chão. O Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, não importa. O que importa é a vontade e os interesses de Luiz Fux.

Vamos discutir ética e etiqueta, para além dos bons modos. Vamos discutir indignação, crítica e constrangimento epistemológico. À advocacia incumbe usar da palavra para a defesa da ética, porque os Ministros do STF podem muito, mas não podem tudo.

Por isso, com Bertolt Brecht, vale insistir:

Desconfiai do mais trivial,

na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito

como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada,

de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural

nada deve parecer impossível de mudar.

Mais não digo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: STF // Foto de: Andréia Bohner // Sem alterações

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