Função judicial: “agir incorreto” e “insolvência intelectual”

28/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 28/03/2015

       

 No âmbito humano do jurídico há dois tipos de primatas: primatas que usam toga e primatas que não as usam. O juiz é um primata com toga a quem cabe, a partir da letra fria, estática e fixa das normas como geradoras de expectativas seguras, humanizar o sistema jurídico, tornando-o compassivo.

Quais são os traços de caráter que deve possuir um bom juiz? Quais são as virtudes que necessita um juiz para desempenhar seu trabalho de um modo excelente e com conhecimento? É possível separar a ética e a competência intelectual da atuação da função judicial no processo de interpretar, justificar e aplicar o Direito? Ou melhor, é razoável conceber a atividade interpretativa, que pretenda ser digna de crédito na atualidade, desvinculada da virtude moral e da formação pessoal do sujeito-intérprete em um Estado republicano?

De um modo geral, parece algo cada vez mais habitual observar que os cidadãos reclamam para si um âmbito de privacidade que não estão dispostos a permitir que desfrutem certo tipo de indivíduos, especialmente quando se trata de determinados servidores públicos. Como cidadãos, exigem que se respeite seu próprio direito à intimidade; reclamam, entre outras coisas, que não se conheçam dados sobre sua vida privada, sobre seu próprio corpo, suas crenças morais e religiosas ou que não se interfira arbitrariamente na formulação de seus planos de vida. Por outro lado, ao mesmo tempo alçam suas vozes cada vez com uma maior assiduidade e contundência solicitando e prestando informações acerca das atitudes individuais, as relações pessoais, os bens particulares, as aptidões e o comportamento moral das pessoas públicas, de funcionários, políticos e também de juízes.

No caso particular dos juízes, uma das razões que se oferece para justificar esse fato é que dado que tomam decisões que afetam ao conjunto da sociedade, os cidadãos têm direito a saber em mãos de quem estão depositadas suas vidas e os destinos de sua comunidade. O que este tipo de indagação sobre os aspectos pessoais dos juízes procura evitar é a mera ilusão de parcialidade, de moralidade e/ou de competência profissional, ao mesmo tempo em que busca manter a confiança pública nos membros que compõem o poder judiciário. E não se trata precisamente de algo carente de significado e importância, posto que, se um dos deveres impostos pelo sistema à magistratura é que os juízes devem abster-se de realizar condutas que diminuam seu cargo e sua função, a administração da justiça não é (não pode ser) independente do caráter virtuoso e da formação profissional daqueles a quem cabe concretizá-la. Sem instituições justas, sem juízes justos e competentes mal pode funcionar adequadamente a vida democrática.

Desgraçadamente, alguns magistrados perdem de vista o valor moral e impessoal do direito, além de elidir a advertência de que uma “das enfermidades mais perigosas que pode contrair o espírito humano é ignorar sua própria ignorância”. Olvidam que a ordem de direito somente tem alguma utilidade quando é possível remeter todo conflito ou conduta ilícita de indivíduos ou grupos sociais a uma normatividade que assegure que as decisões vão mais além do interesse que poderia prevalecer em uma empresa familiar. Desconsideram, enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da ideia de direito e da justiça que o fundamenta, a exigência e a responsabilidade ética que têm de criar e manter a credibilidade na qual deve descansar a inabalável confiança dos cidadãos acerca de sua atividade.

É certo que há valores, princípios e normas que não se cumprem, que se violam, que são “letra morta”, que se modificam ou se interpretam segundo convenha aos interesses de determinados indivíduos ou grupos. Todos sabemos que os labirintos dos tribunais estão entre os lugares mais inseguros do País e que impetrar uma ação judicial, na grande maioria das vezes, representa para o cidadão (pela enraizada e “caconômica”[1] morosidade da justiça) uma verdadeira suspensão de sua dignidade. Todos temos uma ideia fixa, verdadeira ou não, contrastável ou não, do imperfeito, parcial e às vezes descomprometido (ética e intelectualmente) desempenho do poder judiciário.

Mas há um limite. O direito  segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, quero dizer, de que não se vende impudicamente ao melhor pagador ou se entrega nos braços de quem lhe utiliza de modo exclusivamente instrumental. Assim que a melhor resposta às perguntas antes formuladas parece ser negativa. Não! Não há que permitir que as limitações habituais de nossas capacidades intelectuais, a deslealdade institucional e os impulsos de duvidosa virtude se diluam nos excessos de uma pessoalidade arrogante e caprichosa, e que o cinismo e a estupidez humana se imponham por encima do nível moral e intelectual que reservamos a nossos congêneres verdadeiramente humanos. Não há que escamotear à sociedade a evidência de que, sob a casca do Estado de Direito, a virtude moral constitui (ou deveria constituir) condição sine qua non para o pleno e legítimo exercício da função jurisdicional. Isto por um lado.

Outra questão de fundo relativa à função judicial diz respeito à preparação intelectual dos magistrados. Posso estar de acordo em duas teses básicas: (i) que aprovar em um concurso público, concluir uma carreira universitária (ou pós-universitária) e dispor de alguma experiência jurídica em tempo e forma não é garantia de grande solvência intelectual ou de que se possui habilidades suficientes para julgar qualquer coisa; (ii) que pode haver (e houve) juízes sem alguns desses requisitos que fazem (e fizeram) um grande papel em seus cargos e que são (e eram) pessoas dotadas de uma extraordinária sensatez, honradez e perspicácia. Descarto, pois, as exceções por um lado e por outro e me contento com umas poucas evidências elementares.

A primeira é que por estas terras é cada vez mais comum a existência de magistrados cuja solvência intelectual é a todas as luzes escassa, personagens sem a mais mínima cultura digna desse sentido. A segunda, que é sabido e muitas vezes constatado pelas decisões que tomam, que alguns juízes (e/ou seus avatares, os assessores) padecem de uma escassez crônica de conhecimento jurídico e consistência argumentativa, um supino desprezo pela qualidade de suas sentenças, uma indiferença feroz frente à cidadania e uma aberrante falta de compromisso institucional com a celeridade e a eficácia que exige a administração da justiça.

De fato, ainda que a espécie humana não possa suportar demasiada realidade e inevitavelmente cada um de nós subestime o número de indivíduos estúpidos que circulam pelo mundo do judiciário, o certo é que nele há demasiada estupidez, mediocridade e ignorância deliberada, e que não são poucas as vaidades e os interesses pessoais e/ou corporativos que desfilam pela passarela da justiça. E essa incompetência transcendente, dissimulada por egos e reputações, acaba por gerar uma nefasta e perigosa circularidade em que o sistema jurídico se retroalimenta com suas inanidades.

Daí que a pergunta que com frequência se formulam as pessoas razoáveis é a de como é possível que algumas pessoas dotadas de uma desesperante insolvência intelectual cheguem a alcançar esse tipo de posição de poder e de autoridade. Como é possível que seja uma experiência tão comum encontrar com magistrados que não tomam distância da paroquiana concepção de sacerdote da legalidade, que não deixam de predicar uma inocente “concepção missioneira” do “que fazer” jurídico, que não disponham da humildade intelectual necessária para reconhecer e saber valorar a enorme quantidade de informação que lhes resulta impossível obter, que não sintam a incessante necessidade de questionar continuamente os limites do próprio conhecimento, que não são conscientes das limitações que conformam sua própria personalidade e seu caráter, que não percebam serem vítimas da chamada “síndrome do ciclista” (baixam a cabeça para os que estão por cima e pisam os que estão por baixo) e/ou que não suspeitam constantemente do cego (auto) convencimento de que não há mais que uma maneira correta de ver a realidade, a saber, a sua própria[2].

E o que resulta mais grave, ademais do aumento do potencial nocivo de uma pessoa estúpida no poder, é pensar que esse tipo de dano também toma a forma do que os juristas chamam “lucro cessante”. Quer dizer, de que não se trata de ver somente o que, apesar dos pesares, se tem, senão de dar-se conta do que por causa desses pesares se deixa de ter, de como poderiam marchar as coisas se todos os indivíduos com o poder para julgar-nos fossem pessoas de bem e intelectualmente preparadas.

Nesse caso, o lucro cessante é indiscutível. Renunciamos a grandes doses de justiça e segurança porque permitimos que nos julguem alguns lorpas, porque nos recriamos sinistra e perversamente na confiança ao incapaz e ao desonesto, porque nos acostumamos a não poder conceber que o judiciário possa estar organizado de nenhum outro modo, porque consentimos que suspendam nossa dignidade em cada processo que se eterniza, porque jogamos nossa cidadania à roleta russa e masoquistamente desfrutamos com o risco de que nos levem à pique o Estado de Direito. Enfim, porque em nossa atomizada e desesperada ilusão da “justiça”, acabamos por perceber que o judiciário que temos hoje é o único judiciário possível: perdemos a imaginação, abandonamos por vontade própria a ideia de «honestidade brutal» (moral e intelectual).

Em minha opinião, e aqui termino, é de vital importância a formação que o magistrado receba, a experiência profissional e a solvência intelectual de que disponha, e que nelas se atenda convenientemente uma adequada e acreditada preparação ética. Ninguém dotado de poucas luzes, que prefere a penumbra ou a noite em que todos os gatos são pardos, deveria ser juiz. Nas palavras de Ernst Fuchs, somente “un juez bien formado, tanto teórica como éticamente, puede llevar a cabo correctamente la valoración del Derecho, es decir, su personalidad y su carácter son esenciales si hemos de poder confiar en sus decisiones.”

Para dizê-lo de uma forma franca, no contexto dos fatores e influências que condicionam o processo de interpretação e tomada de decisão, precisamente por ser irredutível à perfeita rasoura de uns tantos, a falta de excelência moral e de solvência intelectual não constitui nenhuma bendição. E porque “en el mundo no hay nada peor que los que la cabeza se sirven sólo para sacudirla” (B. Brecht), o bom magistrado é aquele que sabe que a virtude e a solidez intelectual são coisas que se praticam, não coisas que se proclamam.


Notas e referências:

[1] Segundo Gloria Origgi, a caconomia [ou “Kakonomia”, palavra que procede de uma voz grega, Kakos (pior, mau), com  a que se vem a designar “economia do pior” ou “economia do medíocre”] descreve um estranho tipo de situação em que há uma muito difundida predileção pelos intercâmbios medíocres que se mantêm ao menos enquanto ninguém se queixe da situação: algo assim como uma silenciosa preferência pela mediocridade ou pelas normas que regulam os intercâmbios da pior maneira possível. Os mundos caconômicos são mundos em que a gente não somente convive com o escasso rigor próprio e alheio senão que espera realmente que esse seja o comportamento geral: confio em que o outro não cumprirá plenamente suas promessas porque quero ter a liberdade de não cumprir eu as minhas e, ademais, não sentir-me culpado por isso. O que determina que este seja um caso tão interessante como estranho é o fato de que em todos os intercâmbios de natureza caconômica ambas as partes parecem haver estabelecido um duplo acordo: por um lado, um pacto oficial pelo qual os dois intervenientes declaram ter a intenção de realizar um ou mais intercâmbios com um elevado nível de qualidade e, por outro, um acordo tácito pelo qual não somente se permitem rebaixar essa suposta qualidade senão que coincidem inclusive em esperá-las. Deste modo, ninguém se aproveita do outro, já que a Kakonomia se acha regulada pela mútua assunção de um resultado medíocre (ou serôdio), ainda que alguns se aventurem a afirmar publicamente que o intercâmbio teve em realidade um alto nível de qualidade. Em resumo, uma típica e cotidiana relação jurídica processual.

[2] Suponho que se o Judiciário não se desmorona (se não se desmorona mais) é graças a que os bons juízes fazem seu trabalho e mantêm a maquinaria em funcionamento, apesar da sublime incapacidade intelectual  e a escura natureza de alguns de seus congêneres. O único problema é que um edifício em chamas necessita algo mais que alguns bombeiros.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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