No início do século passado, a Europa atravessava um período de intensa turbulência política – muito em razão de acontecimentos já do final do século XIX, já que alguns Estados europeus estavam inconformados com a partilha de territórios asiáticos e africanos para fins de colonização. Enquanto França e Inglaterra puderam explorar as terras estrangeiras – extremamente ricas em matéria-prima, colonizando-as, países como a Alemanha e a Itália haviam sido excluídos do processo “imperialista”, fato que, não isoladamente, pode ser considerado como a gênese do primeiro grande conflito mundial – não apenas, repita-se.
Além de matéria-prima, havia também uma disputa intensa por novos mercados consumidores e, por conseguinte, uma perigosa corrida belicosa, ocasionando uma constante apreensão geopolítica, especialmente entre os países europeus.
Como afirma Bobbio, foi mais precisamente “nos fins do século XIX que se iniciou o estudo sistemático dessa série de fenômenos, isto é, só então surgem as primeiras teorias sobre o Imperialismo, dando origem a uma sequência de análises que nunca deixaram de se desenvolver, em quantidade e qualidade, até hoje. Isto está evidentemente ligado ao fato de que, nas últimas décadas do século XIX (particularmente depois de concluída a unificação italiana e alemã, em 1870), se iniciou uma fase histórica marcada por uma especial intensidade e qualidade dos fenômenos imperialistas. Com efeito, entre 1870 e a deflagração da Primeira Guerra Mundial, deu-se a repartição quase completa da África entre os Estados europeus e a ocupação (em que participou também o Japão e, em medida mais restrita, os Estados Unidos) de vastos territórios da Ásia, ou sua subordinação à influência europeia (China, Pérsia, império otomano[1].”[2]
Arendt lembra, de mais a mais, que “somente após a triunfal expansão imperialista das nações ocidentais nos anos 1880 cristalizaram-se em movimentos, seduzindo a imaginação de camadas mais amplas. As nações da Europa central e oriental, que não tinham possessões coloniais e mal podiam almejar a uma presença no ultramar, decidiram então que ´tinham o mesmo direito à expansão que os outros grandes povos e que, se não (lhes) fosse concedida essa possibilidade no além-mar, (seriam) forçadas a fazê-lo na Europa`.”
Tais nações, continua, “tinham de procurar colônias no continente e expandir-se de modo geograficamente contínuo a partir de um determinado centro de poder.”[3]
Lembre-se que França e Alemanha – duas das nações mais poderosas da Europa - eram rivais históricas, desde que os franceses, no final do século XIX, perdeu para os alemães a região da Alsácia-Lorena – e a queriamna de volta, durante a Guerra Franco Prussiana ou Guerra Franco-Germânica (iniciada em 19 de julho de 1870 e finda no dia 10 de maio de 1871). Nesta guerra, o Reino da Prússia recebeu apoio da Confederação da Alemanha do Norte, da qual fazia parte, e do Grão-Ducado de Baden, do Reino de Württemberg e do Reino da Baviera.
A vitória germânica escreveu o desfecho da unificação alemã sob o comando da Alemanha, ao tempo em que também marcou a queda de Napoleão III e, consequentemente, da Monarquia francesa e sua substituição pela Terceira República.
Ademais, os pangermanistas e pan-eslavistas, considerando-se Estados e povos continentais, tinham uma tendência nacionalista e unificadora, o que aumentava a tensão no Velho Mundo.
De toda maneira, como se sabe, o marco histórico considerado como o desencadeador do primeiro grande combate mundial foi, sem dúvidas, a morte, por homicídio, de Francisco Ferdinando, príncipe do Império Austro-Húngaro, durante sua visita a Saravejo (Bósnia-Herzegovina). O assassinato foi atribuído a um membro de um grupo sérvio conhecido como “Unificação ou Morte” ou “Mão Negra”, organização nacionalista que recorria ao terrorismo como uma forma de atividade política, e tinha conexões com alguns elementos pan-eslavistas do governo da Sérvia.
O Império Austro-Húngaro, insatisfeito com as providências tomadas pela Justiça da Sérvia em relação ao assassinato, declarou guerra à Sérvia no dia 28 de julho de 1914, iniciando-se a Primeira Guerra Mundial.
Em um dos campos da batalha estavam a Itália, o Império Austro-Húngaro e a Alemanha – formando a Tríplice Aliança. Do outro lado entrincheirava-se a Tríplice Entente, formada pela França, Rússia e Reino Unido. Apenas em 1917 os Estados Unidos juntaram-se aos países da Tríplice Entente, especialmente em razão de interesses comerciais que tinham com a Inglaterra e a França.
Em 11 de novembro de 1918 acabava o conflito mundial, com a assinatura do Tratado de Versalhes (verdadeira gênese da Segunda Guerra Mundial), deixando para trás, aproximadamente 10 milhões de pessoas mortas, o triplo de feridos (entre civis e soldados), a destruição de campos agrícolas e de indústrias, além, por óbvio, de um prejuízo econômico monumental.
Pois bem.
Um ano após o início da guerra, Freud, então com 58 anos, escreveu um pequeno texto – porém magistral – que intitulou “A desilusão causada pela guerra”[4], mostrando-se alarmado com o conflito mundial de grandes proporções. Com este mote, o pai da psicanálise – nunca superado -, mergulhou mais uma vez – e com precisão, como quase sempre o fazia – na alma e na natureza humanas.
Diante do início ainda da guerra, Freud já constatava “que jamais um acontecimento destruiu tantos bens preciosos da humanidade, jamais confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão radicalmente o que era elevado.”
Notava, aparentemente surpreendido, que mesmo os homens das ciências estavam apaixonados pelas respectivas causas. Assim, por exemplo, “o antropólogo tem que declarar o adversário um ser inferior e degenerado, o psiquiatra tem que diagnosticar nele uma perturbação espiritual ou psíquica.”
A guerra, então, “trouxe a... desilusão. Não é apenas mais sangrenta e devastadora do que guerras anteriores, devido ao poderoso aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas pelo menos tão cruel, amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu.”
É bem verdade que Freud admitia que sempre haveria guerras “enquanto os povos viverem em condições tão diferentes, enquanto divergirem de tal modo no valor que atribuem à vida individual, e enquanto os ódios que os dividem representarem forças psíquicas tão intensas.” Ele temia, no entanto, que esta guerra, em especial, deixasse “um legado de amargura que por longo tempo tornará impossível o restabelecimento dos mesmos.”
E ele tinha razão. O referido Tratado de Versalhes, que pôs fim oficialmente aos combates, foi a origem – a um só tempo, portanto – da Segunda Guerra Mundial, pois, nos termos em que foi imposto aos derrotados, causou forte impacto e profundo ultraje na população derrotada, o que contribuiu, por exemplo na Alemanha, para a queda da República de Weimar em 1933 e a ascensão do Nazismo. O resultado já sabemos...
A Primeira Grande Guerra mostrava-se impressionantemente diversa de todos os outros conflitos enfrentados pela Humanidade. Ela ultrapassava “todos os limites que nos impusemos em tempos de paz, que havíamos chamado de Direito Internacional, não reconhece as prerrogativas dos feridos e dos médicos, a distinção entre a parte pacífica e a parte lutadora da população, nem os direitos de propriedade.” A guerra a tudo transpunha “em fúria enceguecida, como se depois dela não devesse existir nem futuro nem paz entre os homens.”
No seu texto, Freud faz uma digressão a respeito do monopólio estatal na “distribuição” da (in) justiça, afirmando que “o Estado proíbe ao indivíduo a prática da injustiça, não porque deseje acabar com ela, mas sim monopolizá-la, como fez com o sal e o tabaco.” Sendo assim, o Estado em guerra permite a ele próprio a prática de “qualquer injustiça, qualquer violência que traria desonra ao indivíduo”, agindo contra o inimigo, “não apenas da astúcia autorizada, mas também da mentira consciente e do engano intencional, e isso numa medida que parece ultrapassar o costumeiro em guerras anteriores.”
Em especial, ao que parece pela leitura do texto, duas coisas provocaram uma grande decepção em Freud. A primeira teria sido “a pouca moralidade mostrada exteriormente por Estados que nas relações internas posam de guardiães das normas éticas.” A segunda, “a brutalidade do comportamento de indivíduos que, como membros da mais elevada cultura humana, não acreditaríamos capazes de atos semelhantes.”
Este segundo ponto, esta segunda decepcionante constatação do psicanalista, leva-o a perguntar como se dá “o processo mediante o qual um indivíduo alcança um mais elevado estágio de moralidade?” Uma primeira resposta – “ele é bom e nobre desde o início, de nascimento” – não foi levada em consideração pelo escritor. Já a segunda resposta àquela indagação deveria partir do pressuposto “de que se está diante de um processo de desenvolvimento”, consistente “em que as más inclinações do ser humano são nele extirpadas e, sob influência da educação e do ambiente cultural, substituídas por inclinações para o bem.”
Esta segunda resposta também foi refutada por ele, pois, “na realidade não existe nenhuma ´extirpação` do mal” e justamente a investigação psicanalítica mostrara “que a essência do homem consiste em impulsos instituais[5] de natureza elementar, que são iguais em todos os indivíduos e que objetivam a satisfação de certas necessidades originais.”
Ora, como diz Freud, tais impulsos “não são bons nem maus em si. Nós os classificamos dessa forma, a eles e a suas manifestações, conforme sua relação com as necessidades e exigências da sociedade humana.”
Assim, impulsos tidos como maus pela comunidade – o egoísmo e a crueldade, exemplificava Freud -, estão, na verdade, “entre os primitivos”, percorrendo eles “um longo caminho de desenvolvimento até chegarem a se tornar ativos no adulto.”
Às vezes, outrossim, determinadas reações “contra certos instintos criam a ilusão de uma mudança em seu conteúdo, como se o egoísmo se tornasse altruísmo e a crueldade, compaixão.”
Aqui, o pai da psicanálise explica o fenômeno que ele denomina de “ambivalência afetiva”, quando “alguns impulsos instintuais aparecem em pares de opostos quase que desde o início.” Assim, por vezes “o amor intenso e o ódio intenso surgem com muita frequência unidos na mesma pessoa”, acontecendo mesmo, e não raramente, de ambos os dois impulsos afetivos “tomarem a mesma pessoa por objeto.”
Superado após esse processo (doloroso, digo eu), com todos os seus percalços, forma-se, então, “o que chamamos de caráter de uma pessoa, e que sabidamente é classificado de ´bom` ou ´mau` de maneira muito precária”, pois, afinal de contas, diz Freud, “um ser humano é raramente bom ou mau por inteiro, em geral é ´bom` nesse aspecto, ´mau` naquele outro, ou ´bom` em determinadas circunstâncias e decididamente ´mau` em outras.”
Ademais, dois fatores atuam para a transformação dos instintos “maus”. O primeiro, de natureza interna, “consiste na influência exercida nos instintos maus – egoístas, digamos – pelo erotismo, pela necessidade humana de amor no sentido mais amplo. Pela intromissão dos componentes eróticos os instintos egoístas são transformados em sociais.”
O segundo fator, este de natureza externa, é justamente “a coação exercida pela educação, que representa as demandas do ambiente civilizado, e que depois prossegue no influxo direto do meio cultural”, de uma tal maneira “que tendências egoístas cada vez mais se convertam em altruístas, sociais, pela adjunção de elementos eróticos.” Essa “coação externa, que a educação e o meio exercem, contribui ainda para mudar a vida instintual da pessoa em direção ao bem, para transformar seu egoísmo em altruísmo.”
Ocorre que a vida na sociedade civilizada obriga os seus integrantes a viverem em constante tensão em relação às exigências de natureza moral, obrigando-os “a um distanciamento ainda maior de sua disposição instintual”, sendo-lhes imposta “uma contínua repressão instintual.” Tais repressões, quando tomadas no âmbito da sexualidade, “em que é mais difícil efetuar essa repressão, ocorrem os fenômenos reativos das afecções neuróticas.”
Já em outros espaços – que não o da sexualidade – tal coação externa “não traz consequências patológicas, mas se exprime em malformações de caráter e na permanente propensão de os instintos inibidos irromperem em busca de satisfação, quando a oportunidade se apresenta.”
Eis, então, que surge a hipocrisia e o hipócrita, ou seja, aquele “obrigado a reagir continuamente segundo preceitos que não são expressão de seus pendores instintuais.” Ademais, “a nossa atual civilização favorece de maneira extraordinária a produção de tal espécie de hipocrisia.” Aliás, Freud vai ainda mais além para afirmar que esta nossa civilização, na verdade, “está edificada sobre essa hipocrisia, e que teria que admitir profundas mudanças, caso as pessoas se propusessem viver conforme a verdade psicológica. Portanto, existem muito mais hipócritas culturais do que homens realmente civilizados.”
De toda maneira, ele próprio admite que “a manutenção da cultura, ainda que sobre uma base tão duvidosa (a hipocrisia, lembro), oferece a perspectiva de preparar o caminho, em cada nova geração, para uma transformação instintual mais ampla, portadora de uma cultura melhor.”
Portanto, conclui Freud “que era injustificada a amargura e a dolorosa desilusão pela conduta incivilizada de nossos concidadãos do mundo nesta guerra.” Tratava-se apenas de uma ilusão, pois, “na realidade eles não desceram tão baixo como receávamos, porque não tinham se elevado tanto como acreditávamos.”
Ou seja, na verdade, os homens em guerra, ao deixarem de lado suas limitações de natureza moral, foram instados a se livrar daquela coação externa – sempre duradoura -, permitindo-lhes “temporariamente a satisfação de seus instintos refreados.” Logo, essa transformação instintual “pode ser desfeita – duradoura ou temporariamente – por interferências da vida”, como a guerra, por exemplo, razão pela qual pode-se “esperar que em tempos mais tranquilos se restabeleça o enobrecimento de seus instintos.”
Por fim, um “enigma” não decifrado pelo maior psicanalista da história da humanidade, revelado nas últimas linhas do texto: “Por que os povos-indivíduos de fato se menosprezam, se odeiam, se execram, e isso também em períodos de paz, cada nação fazendo o mesmo?”
“Eu não sei o que dizer sobre isso. É como se todas as conquistas morais do indivíduo se apagassem quando se junta um bom número ou mesmo milhões de pessoas, e restassem apenas as atitudes mais primitivas, mais antigas e cruas.”
[1] O Império Otomano, “ao contrário dos impérios ocidentais, era um império não-cristão, o centro e o agente do islamismo, protetor dos Lugares Santos. Herdou o legado do Califado dos árabes e a missão de difundir o islamismo pelo mundo. Para o Ocidente, os conflitos com os otomanos podiam ser vistos como uma continuação das cruzadas medievais contra as terras árabes.” (Kumar, Krishan, Visões Imperiais, Lisboa: Edições 70, uma chancela de Edições Almedina, 2017, página 113.
[2] Dicionário de Política, Volume I, Bobbio, Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco, Brasília: Editora UnB, 10ª. edição, página 611.
[3] Arendt, Hannah, Origens do Totalitarismo – Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo, São Paulo: Companhia de Bolso, 2012, página 314.
[4] O texto consta do Volume 12 das Obras Completas de Sigmund Freud – “Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos – 1914 – 1916”, publicadas no Brasil pela Editora Companhia das Letras, em 2010, e traduzidas por Paulo César Lima de Souza (desde a versão original escrita em alemão). O texto, na 3ª. reimpressão da coleção, consta às fls. 210 a 229.
[5] Segundo o próprio tradutor, esta versão não é “muito satisfatória para ´triebregungen`, termo cunhado por Freud e composto de ´Trieb` mais ´Regung` (´ligeiro movimento, impulso, emoção).” Segundo ele, em versões para a língua espanhola, aparecem as expressões “tendencias instintivas” ou “mociones pulsionales.” Os italianos traduziram para “moti pulsionali.”
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