FORUM SHOPPING NO DIREITO BRASILEIRO: UMA QUESTÃO DE ÉTICA

19/03/2023

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

1 A inesperada relação dos termos Forum e Shopping: o que é Forum Shopping?

O convite para apresentar esse modesto estudo foi recebido após a publicação da Revista da Procuradoria-Geral do Estado de Santa Catarina do artigo Forum Shopping na Judicialização da Saúde[i]. Embora aquela proposta fosse relacionada mais especificamente com esse fenômeno na avalanche de ações de saúde que tomou conta do Poder Judiciário, esse problema é geral e aplica-se a qualquer situação do Direito.

Mas, afinal, o que é Forum Shopping? Antes de se chegar nesse termo, pouco utilizado no direito brasileiro, mas razoavelmente conhecido nos Estados Unidos, na comunidade jurídica internacional e em questões de direito internacional, é apropriado tratar dos termos de modo individualizado.

Forum refere-se a Juízo, a unidade judicial que irá exercer o papel de Estado-Juiz, de julgador, para cada litígio que é apresentado. Costuma ser usado como referência a problemas de competência, quando o objetivo é identificar quem irá julgar o litígio. Através da competência, fica definido quem irá aplicar o direito ao caso concreto e declarar a solução jurídica correta. Por uma questão de segurança jurídica, algo que não deve ou deveria ser subjetivo.

Shopping representa, contudo, exatamente a primeira imagem que o termo traz a mente: o ato de realizar compras. É o momento em que um consumidor busca um produto específico ou uma solução que ainda desconheça para atender uma necessidade sua. Neste momento, então, avalia quais são os locais mais apropriados para busca do bem, realiza pesquisa de mercado, pode visitar alguns estabelecimentos (de modo presencial ou online) e passa a avaliar o custo-benefício da compra a ser feita, dentre as opções de produto e estabelecimento que possui.

Mas, diante dessas duas definições tão diversas e constantes de realidades quase que antagônicas, como é possível que ambas se juntem para formar a ideia de Forum Shopping?

Forum Shopping pode ser definido como a opção pela parte ou seu advogado dentre diversas possibilidades de órgãos judiciais para apresentar uma demanda, o que importa avaliar as possibilidades de êxito conforme o entendimento adotado em cada unidade diferente. Em termos mais simples e diretos: qual o Foro trará uma maior probabilidade de o direito ser reconhecido ou rejeitado.

O Forum Shopping também pode ser chamado de cherry picking entre Juízos. Este é um outro termo curioso e de uso surpreendente no direito. Cherry picking sugere aquele ato da pessoa que deseja comer uma cereja e passa a examinar suas opções, para escolher a mais bonita, a maior, a mais doce, a mais vermelha... O uso do termo no direito é justamente para causar espanto. Para que o profissional imediatamente tenha noção do qual inapropriada a atitude é para o ambiente jurídico. Infelizmente, ela ocorre com frequência, quando, por exemplo, um Juízo escolhe uma corrente doutrinária dentre várias ou parâmetros de direito transnacional de um país específico, sem mínimo cuidado. Cabe a crítica: por qual motivo se escolheu aquela Corte, daquele país – e não de outro?[ii]

 

2 Algumas situações de Forum Shopping no Direito Brasileiro

Quando pode ocorrer, então, o Forum Shopping no Direito Brasileiro? Algumas possibilidades são colocadas abaixo:

A) Competência federal e estadual: o protocolo de uma ação pode variar pela presença ou não de um ente federal no litígio. Como essa realidade decorre da existência de uma situação de interesse do órgão federal, em tese, não haveria problema. Contudo, a evolução destes debates passou a tratar a situação de interesse do órgão federal como subjetivo e – pior – definir que haveriam situações nas quais o autor poderia escolher se deseja incluí-lo ou não;

B) Juizado especial e Justiça ordinária: os Juizados Especiais, sem adentrar na real utilidade, correção ou coerência da inspiração nas Small Claim baseadas em juízo de equidade excepcionais até na common law, foram criados para tratar de demandas de baixo custo. Inicialmente, não haveria problema, se um conflito ficaria no primeiro, se abaixo de X, e no segundo, se acima de X. Entretanto, a possibilidade de renunciar o excedente (à alçada) e mesmo de repartir ações em porções que caibam no Juizado permitem que o autor escolha o local de protocolo;

C) Ações ordinárias e mandados de segurança: o popular MS costuma modificar a competência por foro definido conforme a autoridade. Uma ação claramente arcaica e desnecessária (mas não em desuso), que só existia pelas limitações, dificuldades ou demora de tutelas de urgência até 1994, atualmente permite ao interessado escolher o local onde pretende apresentar seu pedido, conforme a jurisprudência; e

D) Por situações de residência múltipla, indefinida ou fictícia: a definição de foro conforme a residência tinha o objetivo de facilitar o acesso à justiça. Essa ideia é atualmente discutível, senão absurda. Afinal, como a Justiça Brasileira é substancialmente eletrônica, o local da prática de grande parte dos atos é o mesmo: a internet. Isso permite que interessados escolham local de protocolo “flexibilizando o conceito de competência”, quando possui mais de um local de permanência durante o ano, não possui nenhum ou mesmo pela apresentação de um endereço duvidoso. 

 

3 Possíveis classificações de Forum Shopping 

É possível cogitar duas classificações de Forum Shopping por dois critérios:

A) Conhecido ou desconhecido: se a questão já foi abordada pelo Poder Legislativo e/ou Judiciário (conhecido), ou surgiu por alterações legais ou de fato, sem que exista debate na lei ou jurisprudência (desconhecido); e

B) Legítimo ou ilegítimo: a questão apresentou-se ao Poder Judiciário ou ao Poder Legislativo, que deve decidir se considera aceitável (legítimo) ou não (ilegítimo).

 

4 O Direito e a busca DA solução justa/legal/correta 

Se o leitor estiver confuso até esse momento sobre o qual inapropriada é a relação deste termo com o Direito – ou com uma concepção saudável de Direito – isso é salutar. Realmente, qualquer perspectiva que venha a tratar a prestação jurisdicional como um mercado deve instigar medo e curiosidade científica.

Afinal, se fosse legítimo que o jurisdicionado – como um verdadeiro consumidor – decidisse livremente qual Juízo lhe convém por lhe dar maior possibilidade de decisão favorável, a ideia de solução justa, legal ou no mínimo a mais correta para um conflito conforme o ordenamento passa a ser falta. Afinal, tudo dependeria das lentes do “prestador escolhido”.

Destaca-se a precisa avaliação de Rosa Maria Nery de Andrade sobre o funcionamento do direito:

Atingir o conhecimento científico acerca de um fenômeno jurídico pressupõe a capacidade de exercício racional de quem – partindo do conhecimento de um fato, de uma norma ou de um valor, ou do sentido de um termo que se emprega, ou mesmo da situação jurídica complexa ou simples da experiência humana do direito – busca, através da argumentação, atingir o saber, ou seja, a solução (abstrata ou concreta) dos casos que foram escolhidos como objeto de investigação científica[iii].

O direito obviamente pode admitir debates. É dever do operador jurídico saber avaliar cenários, na busca do mais adequado, o menos duvidoso e, acima de tudo, aquele mais apropriado ao ordenamento jurídico. Admitir, contudo, que a prestação jurisdicional não deve ser estável, constante, dotada de segurança jurídica e isonomia, contudo, é algo muito diferente.

A Justiça tem o compromisso com os jurisdicionados de aplicar a lei ao caso concreto. Isso não pode oscilar dentro de um mesmo caso concreto, especialmente se a única variável for a escolha do local de protocolo por uma das partes.

 

5 O Juiz Natural como um dos guardiões da ética e da justiça no Poder Judiciário

A garantia processual relacionada à competência é o princípio do Juiz Natural, contido na Constituição Federal em seu artigo 5º, XXXVII, que estabelece: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

As garantias processuais – importante recordar – correspondem a séculos de batalha dos indivíduos contra violência sofrida diante de atos de outros ou do Estado. É resultado de sofrimento, martírio, escravidão e injustiças históricas que marcaram gerações durante a história da humanidade.

O documento que melhor reflete e condensa essas conquistas, bem como provavelmente um dos maiores avanços sociais, é a Magna Carta, que recentemente comemorou 800 anos de histórica. Ela é basicamente um tratado de paz entre o Rei João e os Barões mais relevantes da Grã-Bretanha, descontentes com a crueldade e com a péssima gestão financeira e política do militar, que acabará de ser expulso de territórios ocupados pela França pela segunda vez no reinado. Para garantir a paz e o Poder, o monarca outorga aos cidadãos garantias e direitos que. Tem-se uma transição de uma monarquia absolutista para o rule of law e as bases do devido processo legal[iv]. Colhe-se dos artigos 39 e 40:

Nenhum homem livre será preso, privado da Liberdade, excluído ou exilado, ou de qualquer outro modo arruinado, nem será perseguido ou sofrerá persecução, exceto por julgamento legalmente realizado pelos seus pares ou pela lei da terra.

Não se pode privar, negar ou retardar um direito ou a justiça a qualquer um[v].

Este documento fixou as bases históricas do Estado Democrático de Direito, influenciou a Constituição dos Estados Unidos da América e a sua própria independência[vi].

A relevância das garantias processuais também é encontrada na literatura. “O Processo”, célebre obra de Franz Kafka, narra a história de Josef K., um homem preso e processo sem garantias mínimas que permitam-lhe defender-se ou ao menos compreender qual a acusação à qual responde[vii]. Já o “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare conta a história da cobrança de uma dívida garantida por uma libra de carne do corpo do devedor. A execução é conduzida sem respeito ao modo menos oneroso ao devedor e a humanidade do direito, de forma que o credor busca que ela seja retirada de seu coração, o que causaria seu óbito[viii].

Antes que se cogite excepcionar qualquer garantia, é importante conhecer seu histórico e finalidade. O Juiz Natural, ao contrário da clássica nomenclatura, garante a prévia definição de um Juízo – não um Juiz, pessoa específica – para analisar o superveniente conflito. Evita-se a posterior escolha de um Juízo propenso a beneficiar ou prejudicar alguém, o que fere a obrigatória impessoalidade do Estado.

Dois termos clássicos são associados ao princípio do Juiz Natural:

a) o brocardo forum non convenient, pelo qual um Juízo incompetente (ou duvidoso) deve declinar o exercício da jurisdição ao Juízo correto.

b) a vedação de Tribunal de Exceção, como repulsa à idéia de se ter um julgador posteriormente definido a decidir um conflito passado.

O Juiz Natural é uma prerrogativa que, basicamente, se presta a guiar os juristas em três cenários:

a) proibir Juízos não pretéritos;

b) alertar para competência dúbia, para definir a correta;

c) evitar competência dúplice ou múltipla. 

Não se trata de mero formalismo ou cautela vazia. No estudo supracitado, é proposto um exercício fictício:

Cria-se um exemplo teórico: um Estado passa a tolerar forum shopping para exigir tributos, eleva a carga tributária e o peso das punições e possibilidades expropriatórias. Dentre supostos três Juízos competentes, escolhidos pelo Estado para realizar a cobrança, o Juízo “A” possui uma postura ativista e frequentemente impede qualquer satisfação tributária. O Juízo “B” aplica as leis, mas impede que excessos violem garantias fundamentais. O Juízo “C”, por fim, segue as medidas mais extremas para cobrar os tributos. Neste contexto, a estrutura do Estado pode ser usada para que os apoiadores dos governantes sigam para o primeiro, os seus críticos para o último e os neutros para o moderado.

Uma vez admitida a violação da garantia, basta que a estrutura de poder desenvolva uma má ideia e um desejo de aplicá-la para a democracia entrar em colapso[ix].

 O Juiz Natural precisa ser protegido, como base ética para Administração da Justiça, como as demais garantias processuais.

 

6 A incompatibilidade da escolha de Juízo com uma Administração da Justiça ética

Retoma-se, então, as premissas seguidas por esse estudo:

Premissa 1: O Juiz Natural é uma base ética da Administração da Justiça, ao assegurar que o Juízo estará previamente fixado antes mesmo de existir o conflito. Com isso, impede-se que um Juízo posteriormente definido será mais benéfico ou prejudicial a uma das partes. Isso não significa que uma alteração de competência tenha ou teria esse propósito – o princípio tem como finalidade evitar o mero risco de isso ocorrer.

Premissa 2: Forum shopping pressupõe a existência de múltiplos Juízos competentes (dois ou mais), o que obviamente fere a garantia do Juiz Natural, que corresponde a um Juízo previamente definido.

Premissa 3: Para que exista um forum shopping realmente disponível ao autor, ele precisa ser legitimado pelo Estado através do Poder Judiciário e/ou do Poder Legislativo, uma vez que, ser o Juízo correto for definido, a suposta escolha se converterá doravante em uma litigância de má-fé[x]

É absolutamente incabível que o Estado, pelo seu Poder Judiciário ou Legislativo, admita que as partes escolham quem analisará um conflito. O direito precisa ser estável, isonômico, seguro. A existência de um direito ou de uma liberdade, a ocorrência ou não de uma violação e a possibilidade de uma pessoa ser protegida ou restringida pela Justiça não deve oscilar conforme se escolhe um Juízo para protocolar uma ação.

Do contrário, não há mais direito. Não há mais lei. Não há mais segurança jurídica. Tudo poderá variar conforme o protocolo. E o jurisdicionado, tal qual um consumidor, passaria pelo histórico de decisões de cada unidade avaliando suas possibilidades, para identificar qual “estabelecimento” é o mais adequado para buscar o “seu produto”. Esse cenário equivale a uma das formas de falência da Justiça. Antes de tudo, uma falência moral. O Estado tem o dever de coibir cenários de Forum Shopping sempre que eles se apresentarem.

 

Notas e referências

[i] DIAS, Bruno de Macedo. Forum Shopping na Judicialização da Saúde: o juiz natural como uma base ética na Administração da Justiça. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de Santa Catarina, n. 12, 2022. pp. 31-68.

[ii] JACKSON, Vicki C. Constitucional Engagement in a Transnational Era. New York: Oxford University Press, 2010, p. 114.

[iii] ANDRADE, Rosa Maria Nery de. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. P. 31

[iv] VINCENT, Nicholas. Magna Carta: from King John to western liberty. In: GOLDWIN, Lawrence. Magna Carta history, context and influence. Londres: University of London Press, 2018. pp. 25-40.

[v] VINCENT, Nicholas. Magna Carta: from King John to western liberty.

[vi] DICKINSON, Harry T. Magna Carta and the American Revolution. In: GOLDWIN, Lawrence. Magna Carta history, context and influence. Londres: University of London Press, 2018. pp. 79–100.

[vii] KAFKA, Franz. The Trial (kindle version). Traduzido por David Wyllie. Amazon: 1925.

[viii] SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice (Kindle). Amazon Classics, 2017.

[ix] DIAS, Bruno de Macedo. Forum Shopping na Judicialização da Saúde: o juiz natural como uma base ética na Administração da Justiça.

[x] São as mesmas premissas da obra anterior, portanto, transcritas: DIAS, Bruno de Macedo. Forum Shopping na Judicialização da Saúde: o juiz natural como uma base ética na Administração da Justiça.

 

 

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