O direito, enquanto ciência, se propõe como meio de enfrentar questões coletivas e individuais, permitindo a relação entre Estado e o povo, bem como limites nas relações privadas.
Segundo Miguel Reale “podemos dizer, sem maiores indagações, que o Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção, de solidariedade"[1].
Por meio de um sistema normativo intrincado conseguimos compor um mosaico de vedações a partir de estruturas que se erguem da norma ou que são representadas por ela.
A questão é entender que enquanto o direito possa criar realidade, uma realidade institucional[2], também pode refletir acontecimentos com a intenção de regulá-los, e não raras às vezes vê escapar de si alguns aspectos da realidade que interessam para o andamento da justiça e para a credibilidade das instituições, outrossim, para a defesa social.
Neste último ponto, naquilo que escapa dos enunciados legislativos, segue a doutrina e a jurisprudência garantindo uma mutação necessária para que não dependam, unicamente, de modificações legislativas morosas e, desde que possível e dentro de critérios hermenêuticos, que não venham substituir o legislador.
A doutrina também serve para delinear e refletir situações que confrontam a norma e que apesar de não exigirem regulamentação devem ser conceituadas com clareza de modo a evitar que o exegeta possa legitimar condutas sem a necessária sistematização, estendendo ou restringindo em demasia uma dada lei.
A preocupante realidade que escapa à lei, sendo de índole penal, exige maior zelo. É neste ponto que propomos um ajuste nas categorias de flagrante para a inclusão do que denominamos de flagrante cataléptico.
Para chegarmos na conclusão de que existe uma nova modalidade de flagrante é essencial estabelecer as definições dos já existentes e a relação entre lei e realidade que lhes permite serem categorias individualizadas.
Sabido que o termo flagrante provém do latim flagrare, que significa queimar ou arder, etimologicamente sugere-se o presente, aquilo que perdura entre a prática, ainda que inacabada, de uma ofensa ao bem jurídico tutelado e os momentos imediatamente posteriores que envolvem ações ininterruptas de evitar que o agente alcance o resultado ilícito almejado, ou consiga se desvencilhar de uma relação temporal, presente, nos momentos imediatamente posteriores, em que o legislador optou por estender os efeitos da presunção flagrancial.
Neste ponto, temos uma incursão legislativa que tenta priorizar aspectos da realidade que superam o brocardo flagrare, este estaria restrito, segundo o dicionário Houiss, ao que “se viu ou se registrou no momento exato de seu desenvolvimento”.
Tal significado permite concluir, em nosso contexto normativo hodierno, o flagrante próprio, apenas, já que objetivamente “momento exato” é aquele em que alguém está cometendo ou acaba de cometer alguma coisa, com vínculo espacial e temporal com o resultado de sua conduta. Exemplificando, se Gilmar está matando Alessandro, ou acaba de matá-lo, estando ao lado do corpo com a arma em punho, temos o momento exato.
A história já ficou incumbida de dar ao flagrante roupagem mais larga, advindo da sistematização européia a existência, apesar da indefinição do instituto, com a Ordenação Criminal de Luís XIV, em 1670, até a lei 16-24 de agosto de 1790 que estabeleceu definição de flagrante delito, ou com o clamor.
Vejamos que as formas de flagrante que transbordam do vocábulo começam a ocorrer nesse período e em Tales Castelo Branco podemos anotar também que “O Código de Brumaire, ano IV, em 1794, estabeleceu que todo depositário da força pública, em caso de flagrante delito, e mesmo todo cidadão, pode, está capacitado a prender o acusado e conduzi-lo diante do Juiz de Paz. Por outro lado, o mesmo Código estabeleceu que a lei assimila ao caso de flagrante delito aquele em que o delinquente, surpreendido durante a prática do seu crime, é perseguido pelo clamor público, e aquele em que um homem é encontrado com objetos, armas, instrumentos ou papéis que sirvam para fazer presumir que ele é o autor de um delito. Tal assimilação visou garantir a prisão do indiciado e sua condução perante o Juiz de Paz”[3]
No Brasil, foi a lei de 29 de novembro de 1832 que promulgou o Código de Processo Criminal de primeira instância com disposição provisória permitindo em seu art. 131 que “qualquer pessoa do povo pode, e os oficiais de Justiça são obrigados a prender, e levar à presença do Juiz de Paz do Distrito, a qualquer que for encontrado cometendo algum delito, ou enquanto foge perseguido pelo clamor público. Os que assim forem presos entender-se-ão presos em flagrante delito”.
Percebemos que no séc. XIX, na lei citada acima, de 1832, em paralelo com o Código de Processo Penal de 1941, em seu art. 302, apresentava a possibilidade do flagrante delito de quem está cometendo a infração (inciso I-flagrante próprio) e de quem é perseguido (inciso III-flagrante impróprio), não existindo a forma atual do flagrante de quem é encontrado, algo que já era reverenciado um século antes pela legislação francesa.
Estabelecida essa premissa de consagração de alcance da norma por questão de política criminal, não estando os termos exauridos em seu sentido gramatical, mas estando sensível o legislador a uma realidade que caso não assimilada se converterá em vagos de irresponsabilidade, a colocar em xeque a incolumidade, temos o flagrante, medida restritiva de liberdade, de caráter eminentemente administrativa, uma vez que não exige ordem escrita e fundamentada do juiz.
Entendido que alguém fez, acabara de fazer, ou se encontre nas condições que faça terceiros presumirem que praticou um determinado ato criminoso, temos o reconhecimento de uma relação entre o suspeito e o crime. Portanto, temos uma relação de causalidade que permite a aplicação de uma prisão de natureza precautelar, majoritariamente, e com apoio de nomes como Norberto Avena[4], Tourinho Filho[5], Renato Brasileiro de Lima[6] e Luiz Flávio Gomes[7], uma vez que é um instituto marcado notadamente pela precariedade e que não tem outra função se não garantir o rápido controle judicial acerca da legalidade e necessidade da prisão.
Como o objetivo deste artigo é analisar um recorte da realidade social criminal e sugerir uma nova nomenclatura flagrancial, apresentaremos resumidamente a definição das onze espécies de flagrante, para delineá-los e diferenciá-los da situação concreta da qual irrompe a necessidade de apresentação de uma décima segunda modalidade, a qual denominamos de flagrante cataléptico.
As formas já existentes de flagrantes não são suficientes para alcançar o flagrante cataléptico?
Vamos tirar as conclusões do delineamento dos flagrantes já existentes.
De forma sintética temos os seguintes contornos:
1. Flagrante próprio: ocorre nas hipóteses em que sujeito ativo é preso no momento em que está cometendo ou acaba de cometer a infração penal ocorrendo ou acaba de acontecer (art. 302, I e II do CPP). Há uma relação de imediatidade entre a prisão e o cometimento da infração. Adequado a realidade do indivíduo que está espaço temporalmente realizando conduta apta a alcançar um resultado, alcançando-o ou não, portanto, vinculado ao objeto material do crime e ao local.
Vale mencionar que a dogmática penal e a política criminal, permitem, mesmo aqui, no flagrante próprio, maiores efeitos quando relacionado ao crime permanente e continuado e mais uma vez temos a doutrina e a jurisprudência com a incumbência de desvelar a realidade social criminal dando-lhe amparo, conceito e limites.
2. Flagrante impróprio ou quase flagrante: ocorre nas hipóteses em que o sujeito ativo é alvo de uma perseguição iniciada logo após o fato criminoso e acaba sendo capturado em situação que faça presumir ser ele o autor da infração, desde que a prisão seja produto de buscas ininterruptas (art. 302, III do CPP), o que permite que a prisão seja realizada dias após o crime[8].
Aqui o aspecto temporal é de somenos importância, pois a realidade deixou claro que o critério são as atividades, diligências tendentes a buscar o infrator, que, portanto, está na condição de perseguido, porquanto não houver cessação das diligências, resolvendo-se doutrinariamente e jurisprudencialmente as dúvidas acerca da possibilidade ou não de horas após prática do crime ser possível a realização do flagrante.
3. Flagrante presumido ou ficto: ocorre nas hipóteses em que o sujeito ativo é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam supor seriamente ser ele o autor da infração penal (art. 302, IV do CPP). Importa acentuar que a lei de 29 de novembro de 1832 não apresentava tal flagrante.
4. Flagrante esperado: Uma modalidade não normatizada, mas apresentada pela doutrina e pela jurisprudência para fazer as vezes de legitimação da atividade policial de ficar escondido esperando a realização da conduta criminosa, já que há uma diferença nítida entre esta e as demais hipóteses. Aqui temos que sabido o lugar e o momento da empreitada criminosa, nos colocamos à espera da prática do ilícito sem qualquer atuação que favoreça a causalidade criminosa, não interferindo na intenção do agente.
5. Flagrante diferido, retardado, prorrogado, postergado ou ação controlada: Há semelhança com o anterior, todavia, é regulamentado e peculiarizado pela realidade a qual incrementa dogmaticamente, tornando-se a hipótese em que o sujeito ativo da infração penal é flagrado em estado de flagrante próprio, impróprio ou presumido, porém, aquele que tem a oportunidade de efetuar a prisão em flagrante opta por não agir naquele instante e aguardar o momento mais oportuno para a identificação e prisão de mais envolvidos no crime e para a apreensão de um número maior de instrumentos e objetos da infração penal. Tal instituto está previsto no art. 53 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), no art. 4º-B da Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais) e no art. 8º da Lei 12.850/2013 (Lei de Organizações Criminosas), merecendo registro que nas duas primeiras leis citadas faz-se mister que haja autorização judicial, o que não ocorre nas investigações de organizações criminosas, que carecem apenas de comunicação ao juiz, ou seja, o controle judicial é concomitante ou superveniente.
A sua semelhança com o anterior não deixa escapar o fato de que no esperado temos que os agentes aguardam em local e hora já determinados o momento de agir pela atuação do agente que se propõe a praticar a infração, sem qualquer desdobramento para além daquele momento. Já o retardado, há encontro fortuito, ou não, de atividade ilícita, escolhendo as autoridades por uma omissão momentânea, para acompanhamento daquele ilícito e deste modo permitir que, pelos desdobramentos da consumação de um determinado crime, possam chegar à origem da criminalidade, uma organização criminosa, o distribuidor das drogas no tráfico, etc.
Todas as formas acima são modalidades de flagrantes legais que exigiram integração jurisprudencial e doutrinária a ponto de fornecer um necessário anteparo social a legitimar a conduta daqueles que realizam a prisão em flagrante.
Temos também os flagrantes considerados ilegais que tornam a distância menor entre lei protetiva e assecuratória e a realidade de ilicitudes, quais sejam:
6. Flagrante forjado: ocorre nas hipóteses em que o policial ou terceiro cria ou “planta” provas que não existiam originariamente no local de crime, com a nítida intenção de incriminar o alvo da diligência ou mesmo para afastar a possibilidade de uma responsabilidade a posteriori. Tal modalidade de flagrante é evidentemente ilícita e possui delineamento e formas aptas a defesa social, deslegitimando a atuação dos forjadores graças ao incremento jurisprudencial e doutrinário, que asseveram pela consequente contaminação de todas as demais provas eventualmente produzidas, à luz da teoria dos frutos da árvore envenenada. Ademais, o policial deve ser responsabilizado criminalmente por abuso de autoridade e pelo delito de fraude processual (art. 347 do CP).
7. Flagrante preparado ou provocado: ocorre nas hipóteses em que a flagrância delitiva origina-se de uma conduta ativa, implementada pela polícia ou por terceiro, que acaba por estimular o dolo do sujeito ativo da infração penal. Exemplo clássico e corriqueiro na atividade policial é a perda de paciência de policiais que realizam vigilância em bocas de fumo e desistem de esperar a mercancia da droga, o que culmina com o envio de um informante ou mesmo policial disfarçado para realizar a compra de uma porção droga e confirmar que a boca de fumo está “carregada”. Note que a conduta criminosa nuclear “vender” definitivamente foi provocada pelos policiais, que além de estimular o dolo do criminoso, tomaram todas as cautelas para impedir a consumação do crime, razão pela qual eventual prisão em flagrante é considerada ilegal. O tema foi parcialmente pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, com a publicação da súmula 145 do STF: “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.”
Merece registro que, desconsiderada a conduta de vender, prevalecia o entendimento de que a apreensão de drogas ocultas no interior da residência, que não foram ali depositadas em razão da conduta estimuladora policial, era considerada lícita, à luz das teorias da fonte independente, nexo atenuado ou descoberta inevitável.
Atualmente, esse entendimento foi superado, de modo que, tendo a invasão domiciliar sido ilícita, todas as demais provas restarão contaminadas, à luz da teoria dos frutos da árvore envenenada. Com a mudança de paradigma, não há falar na aplicação das teorias “descontaminantes”, pois, o Supremo Tribunal Federal decidiu que abordagem domiciliar, em razão de o suspeito filmar ação policial, que culminou com o encontro furtuito de drogas no interior de sua casa constitui prova ilícita.[9] Mesmo antes de tal decisão, a corte maior já acenava nesse sentido quando decidiu que denúncia anônima não é fundada razão.[10]
Na mesma esteira, segue a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que recentemente concluiu que tirocínio policial não é fundada razão e que é ilícita a apreensão de drogas proveniente de abordagem domiciliar ocasionada pela corrida do suspeito para dentro de sua casa.[11]
Fora as formas de flagrantes enunciadas e que advém de um plano normativo expresso permitindo absorver e refletir a realidade (flagrante próprio, impróprio, presumido e retardado), fora os outros flagrantes que não expressos, buscam conceituar ações concretas legitimando-as como lícitas (flagrante esperado) ou etiquetando-as de ilícitas (forjado e preparado) por meio da doutrina e da jurisprudência, temos que há flagrantes que são meramente nomeados em termos de delinear situações fático processuais regulamentadas na inteireza envolvendo desde a legitimidade para a realização do ato flagrancial, a obrigatoriedade de sua execução considerando a legitimação, até o procedimento da necessidade ou não da lavratura, são eles:
8. Flagrante proibido: ocorre nas hipóteses em que há vedação legal para a lavratura de Auto de Prisão em Flagrante. Temos como exemplos a proibição da autuação flagrancial do usuário de drogas (art. 48 § 2o da Lei 11.343/2006), do motorista causador do acidente que preste socorro (art. 301 da Lei 9.503/1997) e o flagrante do eleitor no período eleitoral (art. 236 da Lei 4.737/1995 ).
9. Flagrante obrigatório ou compulsório: decorre do dever legal (art. 301 do CPP) que tem o policial de efetuar a prisão em flagrante nas hipóteses em que se constate a flagrância delitiva. É claro que tal obrigação não alcança um policial, de folga, ou sozinho, a ponto de obrigá-lo a atuar, com reservas principalmente ao enfrentamento de um número excessivo de criminosos, quando sozinho em consonância com o princípio da proporcionalidade.
10. Flagrante facultativo: decorre do direito que tem qualquer cidadão de efetuar a prisão em flagrante de um criminoso (art. 301 do CPP). Diversamente do flagrante obrigatório, que culmina com a excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal, o flagrante facultativo acoberta o condutor com a justificante do exercício regular do direito.
11. Flagrante fracionado: parte da doutrina[12] conceitua flagrante fracionado como aquele que decorre da prisão de um crime isolado, mas que possa eventualmente integrar uma cadeia delitiva que venha a configurar a figura do crime continuado. Como não existe flagrância delitiva em relação a todos os crimes, deve a Autoridade Policial lavrar o auto apenas pelo fato fracionado flagrado pelo condutor.
Superada a breve análise das onze espécies de flagrante, passamos a abordar a figura do Flagrante Cataléptico.
Repise-se que, muito mais do que uma simples terminologia teórica, o flagrante cataléptico faz parte do cotidiano persecutório, ou seja, das polícias, do Ministério Público e das alegações defensivas dos advogados, não podendo ser desprezado pelos estudiosos do assunto, sob pena de ser criado um abismo entre os bancos acadêmicos e a realidade da atividade policial em todo país e proteção de direitos e garantias dos suspeitos e acusados.
Trata-se de uma prática ilícita, implementada por alguns policias que buscam dar “legalidade” para um cenário arquitetado para o cometimento de crimes, em especial corrupção e concussão. Vale acentuar a valorosa força policial que acaba sendo alvo de críticas generalizadas em razão de atividades como esta.
Tal modalidade flagrancial não se confunde com o flagrante forjado e muito menos com o flagrante provocado, que são, evidentemente ilícitos, conforme definições citadas alhures, o flagrante cataléptico, que aparentemente seria lícito, padece de um vício insanável: a equipe policial, ab initio, não tinha a intenção de efetuar a condução do flagranciado à Delegacia de Polícia, mas sim, de extorquir o suspeito.
A denominação faz referência à catalepsia, distúrbio mental que, segundo o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz com que a pessoa fique parecendo uma estátua de cera. O transtorno faz com que surjam diversos mitos e tenebrosas histórias de ressuscitação, o que na verdade nada mais é do que a superação do quadro clínico apresentado, que pode demorar horas ou dias.[13]
Tal flagrante surge diante da não obtenção de êxito na empreitada criminosa realizada pelos agentes de polícia, onde os policiais atuam de modo a redescobrir, “ressuscitar”, um flagrante, como permissivo de cerceamento da liberdade do indivíduo, se, e somente se, o mesmo “não coloborar” e não satisfazer a exigência da vantagem indevida para que o criminoso não seja preso em flagrante.
Nesses casos, a infração penal cometida pelo criminoso, bem como o crime de corrupção ou concussão, cometido pelo agente público, acabam fazendo parte das denominadas cifras negras do direito penal, ou seja, ocorrências que jamais farão parte das estatísticas criminais.[14]
A necessidade de voltar os olhos para o flagrante que seria desconsiderado se cumprida a “proposta” indecorosa, não surge apenas do fato do não cumprimento do acordo espúrio da exigência ilícita, mas também diante de eventual intervenção do aparato policial no local em que ocorre tal flagrante após um alerta da polícia por vizinhos, por exemplo.
Outro exemplo de flagrante cataléptico ocorre em investigações de tráfico de drogas, que culminam com a negociação da soltura do criminoso em troca de vantagem indevida, mas que o acordo ilícito acaba frustrado pela chegada, na cena do crime, de outra equipe policial. Não raras vezes duas forças policiais monitoram o mesmo traficante de drogas e a hipótese aventada definitivamente pode se tornar uma realidade.
Nesta hipótese o preso será conduzido à autoridade policial, que homologará a voz de prisão e a autuação do ocasional criminoso, como se, em um verdadeiro “passe de mágica” o ilícito cometido pelos agentes públicos deixasse de existir exatamente em razão da inconsciência de categorização dessa modalidade que, agora, vigendo como objeto, e bem conceituado, pode tornar a dinâmica das oitivas voltada a questionamentos que evitem este malogro.
Seja qual for o caso da “catalepsia” no flagrante, os policiais acabam se vendo diante da necessidade de “ressuscitar” a suposta flagrância delitiva, seja para saciar seu sentimento de vingança em desfavor daquele que não cumpriu com a negociata ilícita, seja para dar uma aparência de legalidade para outras forças policiais que se inserem no contexto da prisão em flagrante, sempre na expectativa de desaparecer com os elementos que os relacionam com o crime causador daquela circunstância. É nesse contexto que surge a figura do flagrante cataléptico.
Nessa nova modalidade há ofensa mais grave ao ordenamento jurídico do que aquela em que se reflete no flagrante forjado ou preparado, e se estes seriam do tipo em que se requer proteção aos direitos do cidadão e a ilegitimidade da ação policial, com maior razão o flagrante “ressuscitado” por interesses escusos configura latente e insanável ilegalidade, conquanto, não podemos presumir a confiança nos agentes públicos cuja presunção é relativa e que em casos tais quedara diante da presunção de inocência, contaminando todo o desdobramento do flagrante.
Nada será preservado da ilegalidade, sequer se ocorrer crime permanente, seguindo aqui a esteira do recente posicionamento do STF (HC 138.565/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/04/2017) e do STJ (STJ RESP 1.574.681/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, dje. 30/05/2017.) em prol da desconsideração de elementos probatórios e do próprio flagrante sem que tenha elementos concretos para a invasão domiciliar, por exemplo. Oras, ausência de elementos é tão grave quanto permitir como idônea a atuação policial com o objetivo de locupletamento, pois neste ínterim a atividade não será mais confiável e os elementos ali descritos não serão mais abrangidos pela presunção da veracidade.
É uma questão de moralidade da administração que deverá tornar tal forma de flagrante ilegal, independente da natureza do crime por mácula da atuação e por via de consequência dos resultados.
Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que considera ilegal o ato administrativo com desvio de finalidade, razão pela qual todos os seus efeitos devem ser considerados nulos.[15]
Nesse sentir, diante do vício ab initio que norteia a ação policial e o âmbito de proteção do particular, o flagrante cataléptico, trata-se de modalidade flagrancial ilícita e prática criminosa que deve ser combatida, para que o cidadão não fique a mercê do alvedrio daqueles que, atuando como policiais, exorbitam de seu status, abusando do poder e atuando contra a lei.
É fundamental garantir que as forças policiais brasileiras possam obter maior legitimidade a cada dia, para cumprir de forma mais efetiva com o seu papel social de combate à criminalidade e preservação da dignidade da pessoa humana, que precisa ter meios de refrear tais mazelas.
[1] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 2. Críticas a essas concepções são feitas no Capítulo V, D, 1
[2] SEARLE, J. R. (1997). La construcción de la realidad social. (A. Domenech, Trad.) Paidós
[3] BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão em Flagrante. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 24
[4] AVENA, Norberto, Processo Penal, 9. ed. São Paulo: Método, 2017, p. 638.
[5] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, 3º volume. 30 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 456.
[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Nova prisão cautelar: doutrina, jurisprudência e prática. Niterói: Impetus, 2011, p. 182.
[7] GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p.90.
[8] INF/473 STJ, HC 124.172/RN, Rel. Min. Og Fernandes, j. 18/2/10. 6• T.
[9] STF HC 138.565/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/04/2017;
[10] STF HC 84827-3/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, dje. 23/11/2007.
[11] STJ RESP 1.574.681/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, dje. 30/05/2017.
[12] LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal, Volume Único. 2ª edição, 2014, p. 874.
[13] Disponível em https://super.abril.com.br/saude/o-que-e-a-catalepsia/. Consulta em 02/11/2017 às 21:10.
[14] FILHO, Nestor Sampaio Penteado. Manual Esquemático de Criminologia. 2ª edição, 2012, p. 74.
[15] STF MS 34.070/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18/03/2016.
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