Fishing Expedition: A pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação

13/03/2017

Por Philipe Benoni Melo e Silva – 13/03/2017

Introdução

Após uma longa noite de trabalho árduo, tentando pescar alguns peixes sem obter êxito, os discípulos regressaram do mar sem nada nas redes. Ao retornarem, cansados e desiludidos, foram surpreendidos por mais um pedido de Jesus Cristo, que disse: “Faze-te ao alto mar, e lançai as vossas redes para pescar”. Alguns retrucaram, dizendo que já haviam tentado pescar a noite toda sem pegar nada. Todavia, lançaram-se ao mar, mais uma vez, jogaram a rede e colheram uma quantia tão grande de peixes que as redes chegaram a se romper[1].

O relato bíblico é demonstração de fé e esperança para o crescimento pessoal e espiritual. Todavia, no âmbito do processo penal, a prática do fishing expedition é medida que extrapola os limites principiológicos das vedações probatórias, fere os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal e, se autorizada, pode “romper as redes” conquistadas pelo Estado Democrático de Direito.

Trata-se a fishing expedition de uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que “lança” suas redes com a esperança de “pescar” qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação. Ou seja, é uma investigação prévia, realizada de maneira muito ampla e genérica para buscar evidências sobre a prática de futuros crimes. Como consequência, não pode ser aceita no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de malferimento das balizas de um processo penal democrático de índole Constitucional.

Vedação ao processo vidente

A Constituição Brasileira, com verdadeiro caráter democrático, trouxe elementos (signos) que irradiam força normativa para todos os conteúdos e procedimentos legislativos previstos no ordenamento jurídico. Mesmo as legislações já existentes ao tempo da promulgação da Constituição de 1988, demandam uma releitura em virtude do novo aculturamento adquirido pela nova ordem constitucional.

Esses elementos, a dignidade da pessoa humana, os direitos e garantias fundamentais, a soberania popular, a democracia participativa, o devido processo legal, a presunção de inocência, o pluralismo político, o princípio do Estado de Direito, dentro outros, fazem com que todos os players do jogo democrático, antes de entrarem em campo, já tenham a obrigação de conhecer as regras e a nova cultura que a Constituição impõe[2].

Assim é que, conforme afirma GERALDO PRADO[3], a base da estrutura normativa do estado de direito é o devido processo legal, de modo que não faz sentido a atuação estatal fora das margens instituídas no âmbito da legalidade impositiva.

No campo do processo penal, especialmente quanto as matérias probatórias, a evolução perpetrada pelo novo aculturamento constitucional merece destaque, pois o respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão devem sempre prevalecer frente ao poder punitivo do Estado, uma vez que a imposição de limites ao totalitarismo estatal é a maior garantia alcançada pelo cidadão, dentro e fora do processo.

É nesse mesmo sentido que BETTIOL[4] aponta que após a trágica experiência totalitária, o processo penal deve passar a seguir um novo clima político, que deve objetivar ser uma matéria mais sensível aos interesses da liberdade, à uma posição de paridade entre acusação e defesa e ao controle jurisdicional rígido das matérias postas à apreciação.

A vedação ao procedimento chamado de fishing expedition ganha especial relevo quando o assunto é o limite da atividade probatória requerida pelos órgãos investigatórios e (muitas vezes) deferida indiscriminadamente pelo Poder Judiciário. É que, como modelo de busca de provas amplo que é, o fishing expedition tem largo campo de possível ocorrência: oitiva de testemunhas, interrogatórios, mandados judiciais muito amplos, interceptação telefônica prospectiva, cooperação jurídica internacional, etc.

Conforme aponta AURY LOPES JR.[5], o processo penal é um instrumento de retrospecção (e não de previsão), ou seja, é o instrumento necessário para se tentar reconstruir processualmente um fato já ocorrido no passado.  Se se utilizar o expediente da fishing expedition, corre-se o risco de buscar a prática futura e aleatória de possíveis crimes, fazendo com que o Estado se torne em um eterno vigilante. Seria a cartomancia aplicada ao processo.

É o que ocorre, por exemplo, com mandados judiciais de busca e apreensão que são expedidos de forma genérica. O inciso I, do art. 243, do Código de Processo Penal determina que o mandado deve indicar “o mais precisamente possível” a casa que será realizada a diligência. Ora, como a busca e apreensão configura verdadeira violência estatal legitimada, esta deve seguir rigorosamente os mandamentos constitucionais e legais, desde a postulação até o seu deferimento e o posterior cumprimento da medida. Primeiramente, não se justifica que os órgãos de investigação, antes de tudo, postulem a busca e apreensão para, a partir daí, se investigar a empreitada criminosa (deve-se investigar antes e, se necessário, requisitar a busca e apreensão ao Poder Judiciário). Posteriormente, o deferimento pelo juiz deve ser certo e determinado, indicando o mais precisamente possível o objeto, o motivo e os fins da medida.

No caso do mandado de busca e apreensão, tanto no requerimento, como no deferimento, se assim agirem os órgãos estatais, estarão violando a Constituição (art. 93, IX), o Código de Processo Penal (art. 243) e cometendo o malfadado fishing expedition, pois ingressarão em verdadeira aventura procedimental, na tentativa de pescar algum elemento de prova aleatoriamente, portanto violando os direitos e garantias alcançados pelos cidadãos no âmbito do processo.

Tome-se como exemplo o HC 106.566/SP, julgado pelo Supremo Tribunal Federal[6], que, entendendo ser obrigatório que o mandado judicial expresse o mais precisamente possível a lugar a ser executada a ordem e a obediência estrita ao determinado judicialmente, considerou ilegal uma busca e apreensão que foi “estendida” pelas autoridades policiais para outro escritório além do que o determinado, na tentativa de pescar provas incriminatórias extras.

No mesmo sentido foi a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao julgar Vinci Construction and GMT génie civil et services v. France[7], em 02 de abril de 2015, a Corte entendeu que, com o objetivo de evitar a ocorrência do fishing expedition, no caso da ocorrência de uma inspeção nas instalações de uma empresa, deve se restringir aos setores indicados na decisão judicial, vedando que tais decisões sejam generalizadas e indiscriminadas.

Ocorre que, como abordado, o procedimento de fishing expedition não tem aplicação apenas nos mandados de busca e apreensão. Outro meio de prova bastante comum de ser utilizado esse procedimento é na interceptação telefônica onde, por exemplo, os órgãos de investigação representam ao juiz por uma interceptação de uma quantidade indeterminada de número de telefones ou na chamada interceptação telefônica de prospecção.

Interceptação telefônica de prospecção é aquela ocorrida pré-delito. Ou seja, antes da verificação de indícios mínimos de autoria e materialidade e sem a verificação de existência de outros meios de prova menos gravosos[8], os órgãos de investigação representam pela interceptação telefônica do investigado, desrespeitando, portanto, os ditames do art. 5, XII, da Constituição Federal e os incisos I e II, do art. 2 da Lei n. 9.296/1996. Desse modo, se assim agirem, estará se praticando a vedada fishing expedition no âmbito das interceptações telefônicas para tentar pescar alguma prática delituosa. Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que “não existe intercepção apenas para sondar, para pesquisar se há indícios de que a pessoa praticou o crime, para descobrir se um indivíduo está envolvido em algum delito[9].

O nosso ordenamento jurídico admite apenas que as interceptações ocorram de forma pós-delitual. Em suma, as interceptações telefônicas são meios de obtenção de prova de um delito que já aconteceu (ou está ocorrendo), e não para se buscar autores da prática de crimes que ainda irão ocorrer.

Conclusão

Como bem argumenta ZILLI, a lógica que alimenta as proibições probatórias é a mesma lógica que desconstrói o mito de que a verdade é a finalidade do processo, de modo que “ainda que se possa reconhecer certo desejo de aproximação para com a verdade, a reconstrução histórico-processual é, por essência, limitada”[10]. Definitivamente, se no sistema Inquisitivo a liberdade dos players (acusador e julgador) é praticamente absoluta, no sistema acusatório de índole constitucional, a regulamentação é precisa e deve ser fielmente obedecida.

O processo penal é (re)construção histórica dos fatos. Não se trata de processo vidente, nem de primazia da hipótese sobre o fato[11]. Se no contexto bíblico a fé é elemento fundamental para se “pescar a salvação”, no processo penal, a fé (ou simples expectativa especulativa) leva à criação de quadros mentais paranoicos na mente do órgão julgador, abrindo a possibilidade ao juiz de criar sua convicção antes para da colheita das provas para, depois, sair em busca de todo e qualquer material probatório apenas para confirmar a sua versão já preconcebida e, como consequência, levando a ruina todas as garantias processuais penais.


Notas e Referências:

[1] Bíblia Sagrada. Lucas 5 1-6.

[2] HӒBERLE, Peter. El estado constitucional. Instituto de investigaciones jurídica. Serie doctrina jurídica, Núm. 47, p. 2.

[3] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 15.

[4] BETTIOL, Giuseppe. El problema penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1995. p. 77.

[5] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1391

[6] HC 106566, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 16/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-053 DIVULG 18-03-2015 PUBLIC 19-03-2015.

[7] http://www.echr.coe.int/Documents/Press_Q_A_Vinci_Construction_and_GTM_g%C3%A9nie_civil_and_services_ENG.pdf Acesso em 15 de novembro de 2016.

[8] O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que “A regra insculpida na Constituição é de que a correspondência, as comunicações telegráficas, de dados e telefônicas são protegidas pelo sigilo (art. 5o., XII da CF). A violação do sigilo telefônico é admitida pela norma constitucional, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, desde que a decisão que a determine seja fundamentada (art. 5o. da Lei 9.296/96)  e, mais ainda, que tenham sido esgotados ou que inexistam outros meios de obtenção de prova, conforme se depreende da Lei 9.296/96 que regulamentou a matéria, que, no inciso II do art. 2o, afirma, categoricamente que não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando a prova puder ser feita por outros meios” (HC 190.334/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 10/05/2011, DJe 09/06/2011).

[9] AgRg no REsp 1154376/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 16/05/2013, DJe 29/05/2013.

[10] Proibições probatórias no processo penal: análise do direito brasileiro, do direito estrangeiro e do direito internacional. Daniela Karine de Araújo Costa ... [et al.]; coordenação Nestor Eduardo Araruna Santiago. 1. ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013. Apresentação, p. XIII.

[11] CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino, utet, 1986, p. 51


Philipe Benoni Melo e Silva. . Philipe Benoni Melo e Silva é Mestrando em Políticas Públicas, Processo e Controle Penal pelo Uniceub. Especialista em Direito Público. Advogado. benonix@gmail.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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