Por Erick Oliveira Rocha Gomes - 15/06/2016
INTRODUÇÃO.
O presente trabalho almeja analisar criticamente o viés jurídico-filosófico da moral e o seu papel norteador da teleologia do direito penal, bem como sua acepção na formulação dos bens jurídicos, com a finalidade de depreender sobre as situações que geram o conflito do direito em contrapondo ao aludido elemento.
Com o fito de elucidar os suportes jurídicos legitimadores, sob o primado da finalidade do direito penal, serão analisadas as teorias da pena, seu papel perante a sociedade, bem como as suas respectivas concepções.
É sabido que o direito penal nos seve para tutelar situações que outros ramos do direito não conseguem satisfatoriamente fazê-lo. Tal asseveração está intimamente relacionada a observância do princípio da intervenção mínima e da ultima ratio, presente nos estados democráticos de direito.
Contudo, embora necessário, o direito penal, no exercício dos poderes que lhe são assegurados, é capaz de gerar danos sociais, tendo em vista o desvirtuamento que sua finalidade possa sofrer, o que será demonstrado nas concepções que dão origem as teorias da pena.
Após a referida analise teleológica, serão tecidas considerações acerca do surgimento dos bens jurídicos, bem como o salutar papel desempenhado pela moral como elemento embrionário norteador.
Os aludidos bens jurídicos são os pontos primordiais que encabeçam toda a atuação do direito penal, tem em vista que após se aferir sua finalidade, surge a necessidade de imergir sobre a sua tutela, presente na tipificação de condutas, que ocorrem com o fito da proteção de determinados bens jurídicos.
Delimitar, portanto, as métricas de surgimento dos bens jurídicos significa tentar elucidar em quais situações o direito penal estará legitimado a atuar, salientando a necedade de se aferir como a moral desempenha seu papel nesse momento.
Ao final, almeja-se enfatizar a necessidade da aplicação ponderada do instituto moral, intrínseco a natureza humana, agregando o elemento da racionalidade, bem como suas ramificações teóricas, tal qual vem sendo empregada pelo Tribunal Federal Alemão, com a precípua finalidade de equilibrar a intervenção jurídico penal com os anseios sociais.
Uma sociedade que almeja a preservação ampliativa dos direitos fundamentais é aquela que deslegitima a atuação exacerbada do direito penal, pois, a evolução implica no esvaziamento das tipificações de condutas.
1 TEORIAS LEGITIMADORAS DO PODER DE PUNIR DO ESTADO E AS SUAS MODIFICAÇÕES HISTÓRICAS
O poder de punir do Estado decorre, em seu aspecto pretérito, da legitimidade outorgada pelo povo a um Estado Democrático de Direito para fazer prevalecer o direito da coletividade em detrimento do direito individual.
Sobre a concepção do conceito de Estado é salutar o entendimento prelecionado pelo filósofo inglês John Locke citado por Ferrajoli:
O Estado é, a meu ver, uma sociedade de homens constituída unicamente para o fim da preservação e da promoção dos interesses civis. Chamo de bens civis a vida, a liberdade, a integridade física e a ausência de dor, e a propriedade de coisas externas, tais como terras, dinheiro, móveis etc.” (FERRAJOLI, 2006, p.227).
Visa-se, portanto, a preservação dos interesses coletivos em sua acepção ampla, englobando todos os aspectos humanos de modo a proporcionar o convívio harmonioso entre os indivíduos, valorando a sociedade em detrimento da vontade individual.
Ao longo dos anos, foram surgindo teorias que, sob seus prismas ideológicos, acreditavam ser a mais adequada e legitima justificativa para a intervenção Estatal no exercício do poder de punir, cada uma com a sua vertente doutrinária embasada pelos anseios sociais épicos.
Dessa forma, ao longo da história, surgiram doutrinas questionadoras do poder de punir do Estado, denominadas de legitimadoras ou justificadoras e, em sentido contrário, as abolicionistas ou minimalistas radicais, também denominadas de deslegitimadoras.
Destaca-se, contudo, que o objetivo do presente trabalho não é se filiar fielmente ao conteúdo exposto nas ideologias deslegitimadoras elencadas acima, mas sim, ao teor axiológico preconizado por elas, sendo imperioso explanar suas linhas de raciocínio.
Segundo retrata o autor José Antônio Paganella Boschi (2006), as teses lideradas por Louk Hulsman, Nils Chistie, Sebastian Scheer e outros, apresentavam a crença na ineficiência e incapacidade do direito penal como mecanismo de controle dos conflitos inerentes a qualquer sociedade, ao passo que esses, deveriam ser solucionados por outras formas de controle menos gravosas e mais eficientes, com a lídima capacidade de ressocializar os infratores.
Sob a mesma linha de raciocínio, mas com características próprias, doutrinadores como Eugenio Raúl Zaffaroni e Alessandro Baratta prelecionavam a abolição gradativa do sistema penal que, ao longo de sua existência, se mostrou empiricamente ineficaz, destinado ao fracasso. Assim, difundiram a Teoria Abolicionista como mecanismo menos danoso para a sociedade no controle dos membros que violavam seus ditames comportamentais.
No que concernem às Teorias Justificacionistas ou Legitimadoras, o foco inicial do presente trabalho, destaca-se os ensinamentos de Ferrajoli que assim entende: “As respostas positivas são aquelas fornecidas pelas doutrinas que chamei de justificacionistas, eis que justificam os custos do direito penal com objetivos, razões, ou funções moralmente ou socialmente irrenunciáveis” (FERRAJOLI, 2006, p.230).
Ao passo que para o autor a teoria abolicionista é entendida como:
As respostas negativas, ao invés, são aquelas fornecidas pelas doutrinas chamadas de abolicionistas que não reconhecem justificação alguma ao direito penal e almejam a sua eliminação, quer porque contestam seu fundamento ético-político na raiz, quer porque consideram suas vantagens inferiores aos custos da tríplice constricção que o mesmo produz, vale dizer, a limitação da liberdade de ação para os que observam, a sujeição a um processo por aqueles tidos como suspeitos de não observá-lo, e a punição daqueles julgados como tais (FERRAJOLI, 2006, P.231)
O jus puniendi - ou seja, o direito ou poder de punir do Estado - na concepção de Ferrajoli, ao relatar as teorias de Guther Jakobs influenciado por NIklas Luhmann justifica que “a pena enquanto fator de coesão do sistema político –social em razão da sua capacidade de restabelecer a confiança coletiva abalada pelas transgressões, a estabilidade do ordenamento e, portanto, de renovar a fidelidade dos cidadãos no que tange às instituições” (FERRAJOLI, 2006, p.256).
Pode ser extraída dessa asseveração que a finalidade do poder ou direito de punir está intimamente interligada com a estabilidade da confiança coletiva dos cidadãos com as instituições do Estado detentoras do exercício do poder punitivo.
Como derivação das Teorias Legitimadoras ou Justificadoras da pena abordadas acima, doutrinadores renomados como Kant, Hegel, Feuerbach e Roder, cada um com seus posicionamentos que serão abordados nos próximos itens, elaboraram três “sub-teorias da pena”: as Teorias Absolutas ou Retribucionistas, as Teorias Relativas ou Prevencionistas e, por fim, as Teorias Mistas ou Ecléticas.
2.1 TEORIAS ABSOLUTAS OU RETRIBUCIONISTAS
Todos os comportamentos humanos estão intimamente relacionados com o seu meio. Nada melhor do que os relatos históricos para que possam ser aferidos em quais condições nossos ancestrais viveram. Era no contexto do Estado Absolutista, em que a vontade de Deus era exercida pelo Soberano escolhido por ele, que a Teoria Retribucionista se originou.
Como fundador ou precursor das Teorias Absolutas ou Retribucionistas encontra-se o filósofo alemão Kant. Estribado nos ideais éticos e morais, preconizava ser a pena um instrumento que se justificaria pela existência do delito, como pode ser observado no trecho a seguir:
A pena não pode ser imoral, ou seja, não pode tomar o homem como um meio... a pena é um fim em si mesmo, derivando da simples violação do dever jurídico... a devolução da mesma quantidade de dor injustamente causada... Os direitos subjetivos eram averiguados através dos direitos morais. Se o imperativo categórico (dever moral) nos obriga a respeitar o outro como fim em si mesmo, a partir deste dever descobrimos o direito subjetivo a ser considerado, como fim em nós mesmos. Quando o dever moral do outro deixa de ser garantido pelo Estado, desaparecerá o direito subjetivo a exigir o respeito de fim em si mesmo que nos assiste” (ZAFFARONI, 2007, p.231).
Nesse diapasão, é notória a concepção do exercício do poder punitivo por intermédio da pena como instrumento capaz de retribuir o mal (pecado) cometido pelo infrator a uma vítima integrante do seio social. Ao cometer o delito, o infrator se desgarrava dos ideais sociais e, como forma de controle, essa sociedade, representada pelo Estado Soberano, deveria garantir que a pena fosse capaz de retribuir todo e qualquer mal gerado.
Como adepto da Teoria Retribucionistas, o também alemão e filósofo Hegel, acreditava que a razão deveria nortear tanto as ações como a vida humana, pois “o único que é infinito é a razão. A razão desenvolve-se na História, fazendo avançar o espírito da humanidade”, segunda relata o professor Eugenio Raúl Zaffaroni, (ZAFFARONI, 2007, p.247).
Apesar de legitimarem a mesma Teoria Retribucionista, Kant e Hegel apresentavam pontos de divergência. Para o primeiro, a razão era um instrumento de conhecimento, portanto algo passivo, enquanto Hegel julgava a razão como um princípio ativo, criador e único.
Embora houvesse pontos de divergência sobre a mesma teoria, é notório o caráter retributivo talional dos dois filósofos, ao passo que Hegel asseverava que “se o delito é a negação do direito, a pena é a negação do delito e conforme a regra de que a negação da negação é uma afirmação, a pena seria a afirmação do direito, que se imporia simplesmente pela necessária afirmação do mesmo” (ZAFFARONI, 2007, p.248)
O hegelianismo retribucionista estava pautado na organização dos homens pelos seus níveis de discernimento, sendo imputado aos que não compartilhavam o racionalismo medidas neutralizantes sem quaisquer ponderações de limites.
Essa ideologia permitia castigos ainda mais graves aos sujeitos que praticavam alguma infração que traía os ditames comportamentais pré-determinados pela própria sociedade. Em contrapartida, no caso da prática de delitos leves, a pena não seguia a mesma proporção, pois, além do caráter retributivo, ainda estava presente o interesse na reprovação do incentivo a pratica da infração. Dessa forma, a pena teria de ser dura para dar o exemplo aos demais cidadãos.
Percebe-se que a Teoria Retributiva firmava seus conceitos no âmbito metafísico pelo entendimento de que a sanção penal e sua capacidade de intimidar o infrator, somada às graves penas, bastavam para controlar o convívio interpessoal mantendo-o equilibrado. A precípua finalidade era a supremacia da Justiça controlada pelo poder do soberano concedido diretamente por Deus.
Os seus idealistas inadmitiam o cunho preventivo da pena, asseverando que, caso houvesse essa imposição, a dignidade do infrator seria molestada. O transgressor serviria como mecanismo para atingir os intentos sociais, ao passo que o homem não pode ser utilizado como um meio pelo risco de tornar-se um objeto do próprio direito.
Como crítico ao posicionamento de Kant e Hegel, o filósofo alemão Claus Roxin assevera que o déficit ideológico da Teoria Retributiva estava explícito na pressuposição da necessidade da pena, devendo o Estado compensar a culpa do infrator imputando-lhe uma pena com capacidade de restituir todo o mal.
A pena seria o mal justo aplicado a qualquer tipo de infração, independentemente de sua natureza. O castigo era o mecanismo correto para se repudiar a culpa humana, sem a necessidade de pré-requisitos. “Era um cheque em branco ao legislador” (ROXIN, 2004, p.17).
Ao conceder um poder punitivo sem restrições ao Estado, por intermédio de uma pena, macula-se seu verdadeiro sentido e de forma irracional acredita-se que o mal poderá ser corrigido pelo próprio mal. Dessa forma, Claus Roxin entende que:
Resumindo em uma só frase as três razões: a teoria da retribuição não nos serve, porque deixa na obscuridade os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos e porque, como profissão de fé irracional e além do mais contestável, não é vinculante... recorda em demasia o arcaico princípio de talião.. considerando-o racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal, sofrer a pena” (ROXIN, 2004, p.19).
Na contemporaneidade, instrumentalistas do saber jurídico como Santiago Mir Puig, tecem críticas consistentes acerca dos fundamentos das teorias de Kant e Hegel. Para esse autor, a Teoria Retributiva preconizada por Kant estabelecia um rígido paralelismo entre os anseios religiosos de Justiça divina e a função da pena.
A lei penal era utilizada como um “imperativo categórico”, com a finalidade indiscriminada de se alcançar o conceito de Justiça existente na época, sem a afetação condicional da utilidade da pena para promoção da proteção da sociedade. Não havia, portanto, a necessidade de um resultado útil para a sociedade. A Justiça estava acima disso.
Tal entendimento pode ser extraído do seguinte raciocínio traçado por Mir Puig, que afirma: “Vê-se aqui claramente uma conseqüência fundamental da concepção retributiva: segundo a mesma, a pena de ser imposta ao delito cometido, ainda que resulte desnecessária para o bem da sociedade” (PUIG, 2007, p.59).
Apesar de uma fundamentação mais jurídica, a teoria de Hegel, para Mir Puig, baseava-se somente na reação da pena a um delito praticado por determinado sujeito (vontade individual), contrária à vontade coletiva, operando seus efeitos no passado sem instrumentalizar nenhuma utilidade posterior.
Ao contrário sensu, apesar do extremismo de algumas características da teoria de Kant e Hegel, é possível extrair um significado que possibilite alguma função à pena, conforme discorre Mir Puig:
Isso não significa que tais teorias não confirmam função alguma à pena: elas têm em comum, precisamente, outorgar à mesma, por uma ou outra via, a “função de realização da Justiça”. Esta função se funda em uma exigência incondicionada – seja religiosa, moral ou jurídica – de Justiça, posto que esta não pode depender de conveniências utilitárias relativas a cada momento, devendo se impor com caráter absoluto. Daí que as teorias retribucionistas puras recebem o nome de “teorias absolutas” - em contraposição ás teorias relativas (PUIG, 2007, p.60).
Embora os criadores da teoria absoluta não quisessem atribuir nenhuma função a pena com efeitos posteriores, é inegável a função de “realização da Justiça”, tal qual assevera Mir Puig. Não havendo como afastar a exigência incondicionada de tal objetivo com o efeito alcançado com sua aplicação.
Associada à função garantidora ou valorativa da realização da Justiça, pensadores e seguidores da Teoria Retributiva no século XIX, mesmo que de forma implícita, preconizavam o emprego da proporcionalidade entre a pena e o delito como forma de garantir o limite da reprimenda sobre o cidadão, lastreado nos ideais da dignidade humana.
Nesse contexto, a proporcionalidade ganha conotação de instrumento capaz de nortear o exercício da função ou poder de punir outorgado ao Estado. Analiticamente a sanção imposta passava a estar intimamente relacionada ao delito praticado, o que restringia o império uniforme das penas severas.
Por possuir em sua concepção ideológica o caráter retributivo do mal empregado pelo infrator à sociedade, há a figura inócua da manutenção por parte do Estado dos efeitos decorrentes da reação maléfica, o que desvirtua as finalidades primordiais necessárias a subsistência de uma sociedade harmoniosa.
É nesta linha racional que, segundo preleciona Mir Puig, a teoria absoluta não teve o acolhimento do Direito:
O fato das teorias absolutas quase não terem sido acolhidas pelo Direito e pela doutrina penal deve-se a que, geralmente, não se vislumbra como função do Estado moderno a realização da Justiça absoluta sobre a Terra. Esta tarefa é considerada hoje objeto moral ou religioso, e não uma finalidade de um Estado como o atual, que quer manter desvinculados os campos da Moral e do Direito porque não admite que a Ética ou a Religião possam ser impostas por força da lei. Já não são admitidas – em nosso âmbito cultural – as premissas do Estado teocrático, no qual era coerente atribuir à pena o papel de instrumento de castigo contra o mal. Em um estado democrático as sentenças não se pronúnciam em nome de Deus, mas em nome do povo, e o Direito só pode ser justificado como meio de assegurar a existência da sociedade e de seus interesses (PUIG, 2007, p.62).
Embora sua inaptidão na vinculação de adeptos possa parecer evidente, é notório que as Teorias Retributivas demonstraram faticamente a eclosão das vontades das sociedades e os seus respectivos sensos desvirtuados de Justiça - o que implica a não aplicação da pena pura e simplesmente com caráter retributivo.
É através das análises comportamentais e ideológicas que o homem consegue assimilar pragmaticamente os infortúnios da sua história, o que possibilita o não cometimento posterior dos mesmos desacertos.
Com advento do iluminismo no século XIX, a teoria Kantiana também se moldou a duas versões laicas: a primeira estabelecia que a pena seria uma retribuição ética justificada com base no valor moral da norma penal transgredia pelo delinquente e, do castigo, sem conotação religiosa, que lhe era imposto.
A segunda, com maiores traços da teoria hegeliana voltada à retribuição jurídica com emprego da violência empregada pelo infrator com a finalidade de restabelecer o ditame legal violado.
Embora tal Teoria Retribucionista tenha se modificado, a sua essência ainda permanecia inalterada, o que acabará gerando a incompatibilidade pratica de sua aplicação em decorrência da evolução racional imposta pelo iluminismo.
A consequência pratica da inadequação é a prevalência e supremacia das fragilidades constitutivas basilares da teoria, o que dá margem a evolução das concepções humanas. As teorias Relativas ganham espaço na história.
2.2 TEORIAS PREVENCIONISTAS OU RELATIVAS
Em uma visão diametralmente oposta, as Teorias da Prevenção se fundavam na missão de prevenir delitos, ou seja, sua base axiológica estava moldada na proteção pretérita dos interesses (bens) sociais, demonstrando uma verdadeira finalidade utilitarista da reprimenda imposta pelo Estado.
Nessa conjectura é salutar o que explana Mir Puig:
A pena não se justificaria como mero castigo pelo mal, como pura resposta retributiva perante o delito (já) cometido, senão como instrumento dirigido à prevenção de futuros crimes. Enquanto a retribuição visa o passado, a prevenção visa o futuro. Ante as teorias absolutas, as teorias da prevenção recebem o nome de “teorias relativas”. Isso se deve ao fato de que, ao contrário da Justiça, que é absoluta, as necessidades de prevenção são relativas e circunstâncias (PUIG, 2007, p.63).
Afere-se, portanto, ao aplicar a Teoria Prevencionista, que as circunstâncias fáticas que configuraram a ação delituosa são salutares, o que gera a relativização da quantificação da reprimenda imposta.
Historicamente a mais antiga formulação das teorias relativas é atribuída a Sêneca, consubstanciado em Protágoras de Platão, ao asseverar que “nenhuma pessoa responsável castiga pelo pecado cometido, mais sim para que não volte a pecar” (BITENCOURT, 2007, p.89)
Sob a mesma análise histórica, a função preventiva da pena se divide, segundo a construção doutrinaria do mentor Paul Johann Anselm Ritter Von Feuerbach (1775-1883), em prevenção geral e prevenção especial, ao passo que ambas se subdividem em positiva e negativa.
Antes de adentrar no mérito de tais conceituações, faz-se necessário corroborar a importância histórica do filósofo Feuerbach nos trechos transcritos por Eugenio Raúl Zaffaroni:
Foi o grande jurista da Baviera, autor do Código Penal de 1813. Pensador e jurista destacado entre os melhores de seu tempo, foi homem de enorme capacidade e vocação filosófica. Um acidente da vida levou-o ao campo do direito, mas nunca deixou de fazê-lo com grande fundamentação no filosófico. Foi catedrático na universidade de Viena, Conselheiro do Reino e Juiz. Sua vida é marcada por três períodos: o de pensador, o de legislador e o de Juiz. Nos três foi notável (ZAFFARONI, 2007, p.232).
Feuerbach em sua obra “Revisão dos princípios e conceitos fundamentais do direito penal vigente” (1799 e 1801), prelecionava que a pena deveria ser aplicada em razão de um fato consumado, pretérito, que tem como precípua finalidade conter os cidadãos mediante uma coação psicológica para que não cometam delitos, (ZAFFARONI, 2007, p.234).
Essa coação psicológica fundamentada por Feuerbach dá origem à primeira divisão da Teoria Prevencionista denominada de Prevenção Geral Negativa.
A Prevenção Geral Negativa conceituava-se pela sustentação de que cabia ao Direito Penal o poder de solucionar os problemas da criminalidade.
Tal poder seria exercido primeiramente pela ameaça decorrente da pena, que teria o condão de informar em caráter preventivo, quais as condutas volitivas tipificadas como injustas, que ensejariam a reprimenda Estatal e, a sua aptidão para ser aplicada (executada).
Dessa forma, a pena por intermédio da lei detinha o poder do exercício coativo no âmbito psicológico dos cidadãos, para que estes se abstivessem do cometimento de delitos.
Havia a presunção de que o homem por possuir racionalidade ponderaria, através da afetação em seu âmbito psicológico, se valeria “a pena”, cometer aquele ilícito para sofrer por consequência os danos decorrentes da sanção penal determinada pelo Estado.
Imperioso mencionar, como já elencado anteriormente, que as condutas humanas estão intimamente relacionadas com a sua conjectura e anseios épicos, afere-se que as ideias que embasaram a Teoria Prevencionista se desenvolveram no período de transição entre o Estado Absolutista e o Estado Liberalista, denominado de Iluminismo.
No curso do Iluminismo, seus pensadores impuseram acertadamente os fundamentos do Estado Natural, desvinculado do laicismo, substituindo o poder sobre o corpo, que se dava através de castigos, pelo poder sobre a alma, que se perfazia sobre o psicológico do infrator.
A pena com o seu caráter prevencionista exercia sua função de, através da racionalidade, coibir psicologicamente os impulsos ou motivos ensejadores da conduta criminosa. Havia fundamentalmente a intimidação exercida através do medo da imposição da pena associado à racionalidade humana que possibilitaria a afetação dos malefícios da reprimenda.
Por sua vez, a Prevenção Geral Positiva estava moldada na consciência da sociedade que interiorizava a proteção pela lei dos bens socialmente relevantes e, através dessa valoração, acatava respeitosamente os ditames legais.
Axiologicamente a sociedade assimilaria a norma, um respeito ao Direito Penal e sua finalidade, acreditando na necessidade de aplicação de suas prescrições como forma de garantir a manutenção da própria sociedade (seus bens).
Ao tecer considerações a tal teoria, Mir Puig preleciona as características elucidadas por Armin Kaufmann:
Armin Kaufmann atribui as três seguintes funções à prevenção geral positiva, como via que contribui para moldar a vida em sociedade: em primeiro lugar, uma função informativa do que está proibido e do que se deve fazer, em segundo lugar, a missão de reforçar e manter a confiança na capacidade da ordem jurídica de se manter e de se impor; por fim a tarefa de criar e fortalecer, na maioria dos cidadãos, uma atitude de respeito pelo Direito – não uma atitude moral (PUIG, 2007, p.64).
Contudo, apesar do seu cunho vantajoso em comparação à Teoria Retribucionista, é inegável a existência de pontos falhos na aplicação da teoria Relativa. A prima face, percebe-se que está se funda no emprego do terror como forma de coação à prática delitiva.
O emprego indiscriminado do terror que gera o temor da pena, afeta cabalmente os princípios constitucionais de um estado democrático de direito e, possibilita a aplicação de castigos severos para respaldar efetivamente o suposto temor, seria tendenciosa à sua efetivação para evitar que a pena recaísse no descrédito social.
Associado a esse déficit, é notório empiricamente (no curso da história da pena), que os delinquentes que cometem crimes cuja reprimenda imposta é quantitativamente elevada, não os deixam de fazer pelo conhecimento desta, pelo contrário, servem de exemplo para desconstituir a tese da eficácia do terror, cometem os delitos por motivos socioeconômicos.
Acerca de tais críticas, são imprescindíveis as considerações formuladas por Claus Roxin ao explanar que:
A teoria da prevenção geral encontra-se, assim, exposta a objeções de princípios semelhantes às outras duas (teoria da retribuição, e a teoria da prevenção especial): não podem fundamentar o poder punitivo do Estado nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas consequências; é político – criminalmente discutível e carece de legitimação que esteja em consonância com os fundamentos do ordenamento jurídico (ROXIN, 2004, p.25).
Já a prevenção especial, por sua vez, destina-se a coibir novas práticas delitivas dos delinquentes que já cometeram um ilícito penal, operando seus efeitos na imposição e execução da pena.
Dessa forma, se distingue da prevenção geral na medida em que não é direcionada à coletividade, mas, sim, a determinados indivíduos (delinquentes). Por tal motivo, também é denominada de prevenção individual.
Conceitualmente existe uma subdivisão da prevenção especial em positiva e negativa, ao passo em que a primeira se refere à reinserção do delinquente na sociedade, e a segunda à neutralização do mesmo pela imposição de uma pena tendo em vista a sua inaptidão para pertencer à sociedade.
É na axiologia preconizada por Von Liszt que a teoria da prevenção especial ganhou propagação, o autor sustentava que “o delito era um produto social e a antijuridicidade um dano social” (PUIG, 2007, p.68). Dessa forma, o delinquente deveria internalizar os valores normativos que ensejavam a proteção dos bens jurídicos tutelados.
Mir Puig, ao referendar o autor, menciona em sua obra as características ímpares fundamentadoras da teoria da prevenção especial ao expender:
A pena correta, é dizer, a pena justa, é a pena necessária, determinada de acordo com a prevenção especial.
A finalidade da prevenção especial é cumprida de diferentes formas, segundo as três categorias de delinquentes apontadas pela Criminologia: (a) frente ao “delinquente ocasional” que necessita de correção, a pena constitui uma “lembrança” que o inibe de cometer ulteriores delitos; (b) frente ao “delinquente não ocasional, mas corrigível – também chamado “de estado”, porque nele a disposição ao crime já constitui um estado de certa permanência – deve-se perseguir a correção e ressocialização por meio de uma adequada execução da pena; (c) frente ao “delinquente habitual incorrigível”, a pena visa obter sua inocuização por meio de um isolamento que pode chegar a ser perpétuo (PUIG, 2007.p.67).
Portanto, a finalidade a ser alcançada é a da proteção aos bens jurídicos através da aferição circunstancial do caso concreto associado aos elementos que compõem a personalidade e a vida pregressa do agente.
Críticas inerentes a todas as teorias são mais bem fundamentadas nos argumentos explanados por Mir Puig ao elucidar situações de cidadãos que cometem infrações, como as de trânsito, por exemplo, e não necessitam sequer do caráter intimidador da pena, nem do ressocializador, tampouco do inocuizador.
Contudo, muito embora existam situações que não gerem a aplicação da Teoria da Prevenção Especial, não há de se afirmar que o delinquente deva ficar impune, pois não se pode referendar a não incidência do Direito Penal para coibir as infrações. Deve ser observada a proporcionalidade da pena imposta ou outros mecanismos de controle.
Inobstante à existência de pontos falhos em todas as teorias da pena, por não existir no âmago teleológico uma verdade universal, a Teoria da Prevenção Especial merece ser destacada em virtude de preconizar o combate à reincidência no âmbito da política criminal associada à ressocialização do delinquente no âmbito da execução penal.
Zaffaroni entendia que “se não se descobrem os problemas e sua importância, se não se formulam adequadamente as indagações, não poderão ser encontradas as respostas. Muito frequentemente carecemos de respostas em virtude da má formulação de perguntas” (ZAFARRONI, 2007, p.233).
É salutar que, no curso do desenvolvimento humano, o corpo social empiricamente análise as vantagens da aplicação de uma ou outra teoria da pena. Essas indagações permitem conhecer os pontos positivos e negativos inerentes a qualquer fundamentação teórica.
Em suas considerações, Ferrajoli tece escolasticamente as distinções entre as teorias Retributivas ou Absolutas e as teorias Relativas ou Prevencionistas:
São teorias absolutas todas aquelas doutrinas que concebem a pena como um fim em si própria, ou seja, como “castigo”, “reação”, “reparação” ou ainda, “retribuição” do crime, justificada por seu, intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas, sim, um dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento. São, ao contrário, “relativas” todas as doutrinas utilitaristas, que consideram e justificam a pena enquanto meio para realização do fim utilitário da prevenção de futuros delitos. Cada uma dessas duas grandes classes de doutrinas viu-se, por sua vez, dividida em subgrupos. As doutrinas absolutas ou retributivistas foram divididas tendo como parâmetro o valor moral ou jurídico conferido à retribuição penal. As doutrinas relativas ou utilitaristas, por seu turno, são divididas entre teorias da prevenção especial, que atribuem o fim preventivo à pessoa do delinquente, e doutrinas da prevenção geral, que, ao invés, atribuem-no aos cidadãos em geral. Por derradeiro, a tipologia das doutrinas utilitaristas foi recentemente enriquecida com uma nova distinção, qual seja aquela entre doutrina de prevenção positiva e doutrinas de prevenção negativa, dependendo da fato da prevenção – especial ou geral – realizar-se positivamente, por meio da correção do delinquente ou da integração disciplinar de todos os cidadãos, ou negativamente, por meio da neutralização daquele ou da intimidação destes. (FERRAJOLI, 2006, p.236).
Nessa conjectura, a límpida distinção entre a Teoria Retributiva e a Teoria Preventiva está situada em seus efeitos e destinações, ao passo em que a primeira está focada ou predisposta a referendar-se ao passado, enquanto a segunda destina-se à produção prospectiva de resultados futuros.
Retribui-se o mal sem finalidades extrapunitivas, apenas com caráter sancionador, como uma verdadeira retribuição da ação volitiva do infrator. Por sua vez, a Teoria Preventiva caracteriza-se por suas finalidades extrapunitivas que exige um balanceamento concreto da finalidade temporal da intervenção punitiva para a produção eficaz do resultado jurídico penal da sanção imposta.
Nesse contexto, o curso da história nos impõe a análise sociológica dos efeitos decorrentes da pena, nos remetendo a constantes indagações acerca da sua eficácia. Percebe-se que não deve prosperar uma visão holística no que tange às teorias da pena, sendo razoável a fundição de suas bases axiologias visando a projeção de resultados mais satisfatórios para a sociedade. Surge então a Teoria Mista ou Eclética.
2.3 TEORIA MISTA OU ECLÉTICA
Em virtude da complexidade dos fenômenos sociais que compõem a atuação necessária do Direito Penal, torna-se impraticável a utilização em termos fáticos de apenas uma base fundamentadora de uma das teorias da pena.
Surge então a necessidade da junção das finalidades pretendidas pelas Teorias Retribucionistas e Prevencionistas (geral e especial) para que se possa abranger de forma satisfatória os resultados mais vantajosos para a sociedade.
É nessa linha de raciocínio que a Teoria Eclética pretende tutelar a pena e os seus efeitos. Seu pretérito objetivo esta moldado na preservação dos interesses sociais, bem como em sua sadia progressividade sustentável.
No âmbito teórico, os conflitos que circundam as bases fundamentadoras das teorias anteriormente elucidadas, não podem permitir os descréditos funcionais do Direito Penal como instrumento de manutenção racional do equilíbrio comportamental humano.
As relações humanas são repletas de conflitos. Tal característica é intrínseca à antropologia que nos materializa. Por possuir como instrumento de sobrevivência o dom da racionalidade, os seres humanos necessitam construir mecanismos harmoniosos de convívio, que estão pragmaticamente escalonados no respeito aos direitos alheios.
Nessa linha racional, positivamente se imputou ao Direito Penal, em última ratio (natureza subsidiária), o poder/dever de tutelar os conflitos inerentes ao convívio humano. É sobre essa conjectura que filósofos do saber procuram fundamentar a junção axiológica ou fundamentadora das teorias da pena.
O ordenamento brasileiro de acordo com a extração valorativa da norma, mais precisamente no teor do artigo 59 do Código Penal, elegeu como instrumento sancionador os fundamentos da Teoria Eclética da Pena.
Tal escolha se perfez sob a égide da preservação ampliativa dos direitos fundamentais, com a salutar observância do melhor resultado prático para a sociedade.
É sabido que historicamente a pena possui um caráter talional satisfativo (Teoria Retribucionista), no que concerne aos valores comportamentais de uma determinada coletividade. Ou seja, reprime-se toda a prática de ilícitos, pelo fato destes afrontarem os ditames que estruturam determinada sociedade e corriqueiramente estarem atrelados aos imagináveis atalhos que possibilitariam a afetação de alguma vantagem.
No escopo teórico da prevenção geral, se extrai com cautelaridade as consequências de sua base axiológica, reprovando a sua total aplicação com a finalidade de evitar a majoração das penas nos crimes considerados graves ou nos crimes praticados com mais habitualidade, a exemplo dos crimes contra o patrimônio. Leva-se em conta apenas o reconhecimento da racionalidade humana em ponderar as consequências dos seus atos, reprimindo-se com mais gravidade os que afetam mais danosamente os bem jurídicos essenciais (a exemplo da vida).
Ponderando os divergentes fundamentos das teorias da pena, os Ecléticos buscam equilibrar as essências teóricas que ensejam no âmbito fático um resultado positivo para a sociedade.
É nessa ótica que se extrai da referida Teoria Retribucionista sua inaptidão impeditiva da aplicação exacerbada da pena para além da culpabilidade do infrator. Busca-se, ao contrário do determinado pelos retribucionistas, a estipulação de um limite quantitativo da pena, tido como justo e adequado para cada delito praticado que será analisado circunstancialmente.
Na visão Eclética, doutrinadores como Mir Puig asseveram a existência de uma divisão conceptiva, primeiramente sob a posição conservadora, que se caracterizaria pela imposição de uma retribuição justa do mal causado pelo delinquente ao praticar um delito, possuindo os fins da Teoria Prevencionista um mero papel de complementação, bem como, de forma ambivalente, estaria a corrente progressista, que fundamenta a defesa da sociedade na proteção dos seus bens jurídicos, se impondo o caráter retributivo apenas para estabelecer os limites máximos de exigências da prevenção, com a finalidade de coibir que a pena ultrapasse o merecido.
Como mecanismo modulador de tal limite, estaria a culpabilidade do agente, que se perfaz sob a análise circunstancial de sua vida pregressa agregado aos fatores que ensejaram a prática do delito.
Os referidos aspectos estão estruturados nas explanações de Mir Puig agora transcritas:
Deixando de lado os inumeráveis matizes, pode-se distinguir “duas grandes correntes”. Por um lado, aquelas que acreditam que a proteção da sociedade deve basear-se “na retribuição justa” e na determinação da pena, concedem aos fins de prevenção um mero papel complementar dentro do marco da retribuição. Esta constitui uma posição “conservadora” representada pelo Projeto Ministerial alemão de 1962. Por outro lado, um setor “progressista” da ciência alemã inverte os termos da relação: fundamento da pena é a defesa da sociedade (proteção de bens jurídicos), e à retribuição (com este ou outro nome) corresponde unicamente a função de limite máximo das exigências de prevenção, impedindo que as mesmas conduzam a uma pena superior à merecida pelo fato cometido (MIR PUIG, 2007, p.71).
Em suas considerações, o mencionado autor salienta de forma sintética que para a primeira concepção (conservadora) o Direito Penal cumpriria uma função dúplice: a de proteção da sociedade, associada à realização da Justiça.
Na concepção progressista por sua vez, o Direito Penal estava adstrito apenas a função de proteção social.
Em que pese à existência da referida distinção conceptiva, imperiosa se faz a ponderação das críticas do referido autor a todas as teorias da pena concebidas. Como pensador teórico e crítico Mir Puig explana de forma menos agoniante a peculiar corrente doutrinária preconizada por Vom Sinn Schmidhäuser, denominada de “teoria da diferenciação” (SCHMIDHÄUSER, 1975, p.52).
Essa teoria parte da premissa da existência distintiva entre a pena em geral e o sentido da pena para os distintos sujeitos que intervêm na existência da mesma. De um modo geral a pena possui dois aspectos primordiais, a finalidade ou função e o seu sentido.
No que concerne à finalidade punitiva, enquadrada como um “fenômeno global” encontra sustentáculo nos fundamentos da teoria da prevenção geral, com uma salutar observância, a inexistência despretensiosa da coação psicológica come vetor capaz de coibir a prática de todos os delitos, mas sim com aptidão de reduzir a prática delitiva ao limite tolerável que possibilite o convívio social.
Nesse contexto, a punição tornar-se-á lícita pela intrínseca necessidade humana da pena (função). Essa se configura como o instrumento necessário para o convívio harmonioso dos indivíduos que compõem as sociedades.
Salienta-se que ao tecer tais considerações torna-se notória a instrumentalização da pena em beneficio da sociedade e não do infrator. Rompe-se um dos ditames Kantianos de que “o delinquente não pode ser utilizado como meio em beneficio da sociedade” (ZAFFARONI, 2007, p.231).
O que se percebe pelas concepções de Schmidhäuser transcritas por Mir Puig é que, empiricamente, não existe outra possibilidade fundamentadora da pena senão a de promoção da vida em comunidade.
A parte mais brilhante da observação do autor está situada na intervenção única de cada sujeito na existência da pena:
Para o legislador’, a pena serve, sobretudo, à defesa da coletividade, ainda que ele deva levar em consideração a Justiça no momento de sua fixação; os ‘órgão encarregados da persecução’ (Polícia e Ministério Público) devem cumprir a função de esclarecimento do delito e colocação do criminoso à disposição dos Tribunais, guiados pelo princípios da igualdade (Justiça); ‘o Juiz’ deve perseguir, em primeiro lugar, a pena justa, levando em consideração o fato cometido e a comparação com as outras penas, mas dentro do marco da pena justa deve considerar também a prevenção especial; os ‘agentes penitenciários’ deverão outorgar à execução a finalidade de ajudar o condenado a aproveitar o tempo de cumprimento da pena ou, ao menos, se isso não for possível, a finalidade de prevenção especial por meio da ressocialização; por fim, a pena já cumprida pode significar para ‘a sociedade’ a reconciliação, permitindo a aceitação do apenado em seu seio (MIR PUIG, 2007, p.74).
Os respectivos sujeitos possuem papéis distintos e as suas intervenções se dão também em momentos distintos, o que não implica a não observação de preceitos como Justiça, ressocialização e reconciliação em defesa da sociedade que, embora estejam pragmaticamente estruturados, na teoria se associam em diversos momentos.
Não podemos falar em Justiça sem a possibilidade de ressocialização, tampouco dissociar a aceitação do apenado reconciliando-o com a sociedade se este não estivar apto a se ressocializar. São fases que se homogeneízam.
Por fim, doutrinariamente se evidencia por sua fundamentação a teoria concebida por Roxin, denominada de “Teoria Dialética Unificadora”, que se fundamenta na acentuação problemática das “três fases” de existência da pena, denominadas de cominação legal, aplicação judicial e execução da condenação (ROXIN, 2004, p.44).
Para Roxin, em cada uma dessas fases haverá a correspondência de uma resposta distinta da função da pena, ao passo que, embora sejam distintas, estarão estreitamente relacionadas (ROXIN, 2004, p.44).
Epistemologicamente expendendo, a dita teoria fundamenta-se na unificação sintética dos diversos fundamentos outorgados à pena.
Em um primeiro momento, dito como o “da cominação legal”, nenhuma previsão tradicional se adéqua com maestria - nem a fundamentação retributiva, nem a preventiva (geral e especial) - pois demonstram a impossibilidade de esclarecimento da indagação do que deve ser considerado delito, para que por conseqüência saibamos o que retribuir ou o que prevenir.
Roxin perquiri na fundamentação de tais respostas esclarecendo-as da seguinte maneira: no momento legislativo a função da pena seria direcionada para proteção de bens jurídicos e serviços públicos imprescindíveis - proteção essa exercida por intermédio da prevenção geral contra os fatos que atentem os referidos bens e serviços.
O autor afasta a aplicação nessa fase da prevenção especial e da retribuição asseverando que a lei se dirige à sociedade como um todo. No segundo momento de aplicação judicial, a imposição da pena pelo Juiz confirma a seriedade da coação psicológica exercida no primeiro momento pela prevenção geral.
Contudo, salutar é a observância da culpabilidade do infrator como vetor limitador da dosimetria da pena, ao passo que esta não pode ser arbitrada acima daquela.
É nesta observância que se insere o discutível dogma Kantiano da utilização do homem como meio para os demais, esclarecendo Roxin que a culpabilidade evita a inserção de tal dogma, uma vez que, o delinquente respondera na exata medida de sua pessoa.
Na última fase de existência da pena, a dita execução, Roxin dispõe que se configurarão os fundamentos das fases anteriores e as suas finalidades, de modo que tenham na ressocialização do delinquente os ditames da prevenção especial.
Destaca-se, ainda, que poderão sobrevir condenados que não necessitem de tratamento terapêutico-social. A estes deveria existir a possibilidade do uso de suas próprias aptidões com a finalidade de evitar a sua atrofia.
A teoria dialética unificadora, portanto, corresponde a evidente tentativa da promoção menos danosa de correção dos cidadãos que porventura venham ferir os direitos dos seu iguais, foca-se no resultado utilitarista em benefício do corpo social.
É sobre tais aspectos que Roxin explana:
Uma teoria unificadora dialética, como aqui se defende, pretende evitar os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias socialmente construtivas, conseguindo o equilíbrio de todos os princípios, mediante restrições recíprocas. Também nesse ponto podemos apontar como exemplo a ordem política do Estado: as melhores constituições são aquelas que, através da divisão de poderes e de um sistema ramificado de outros controles ao poder, integram no seu direito todos os pontos de vista e proporcionam ao particular o máximo de liberdade individual; a melhor constituição econômica é a reunião dos princípios do estado social e do liberal. E o mesmo vigora para o direito penal, que serve igualmente a ordem comunitária no seu respectivo âmbito: a idéia de prevenção geral vê-se reduzida a sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como a exigência da prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade. A culpa não justifica a pena por si só, podendo unicamente permitir sanções no domínio do imprescindível por motivos de prevenção geral e enquanto não impeça que a execução da pena se conforme ao aspecto da prevenção especial. E, como vimos, de igual forma a totalidade dos restantes princípios preservam a idéia de correção dos perigos de uma adaptação forçada que violasse a personalidade do sujeito (ROXIN, 2004, p.44).
Inúmeros são os fundamentos que legitimam o jus puniendi. Como estruturadores de tal legitimação encontram-se os doutrinadores com a árdua obrigação de fundamentá-las.
As teorias da pena possuem em suas bases axiológicas pontos divergentes e pontos convergentes, facilmente aferíveis ao se tecer uma análise criteriosa dos motivos históricos e sociais que os legitimaram.
A essência unificadora de todos os fundamentos anteriormente elencados está situada na promoção do convívio social harmonioso - todos os outros preceitos, como a Justiça e a ressocialização, estão intimamente relacionados com o referido convívio.
O ser humano, por possuir naturalmente a característica do convívio, se estrutura de forma a modular os mecanismos que possibilitem a afetação de sua finalidade pretendida.
É baseado nessa finalidade que o Direito Penal em última ratio, busca garantir a progressiva harmonia social. É um mecanismo de controle que deve estar pautado primordialmente na garantia de todos os direitos fundamentais aos seus membros.
A Teoria Retribucionista nos serve para satisfação do natural desejo ou senso interno de Justiça. Sua ponderação por sua vez é a única forma de controle da sua exacerbada ânsia. No âmbito jurídico, sua utilização está fundada no necessário controle das acepções sociais do sensu de Justiça.
Tal controle deve ser exercido para que a sociedade credite no Direito Penal a detenção (relembra-se, de maneira subsidiária) da resolução dos conflitos que não são resolvidos pelos outros ramos do direito.
Embasados pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da inocência, proporcionalidade, razoabilidade e todos os outros que fundamentam a Constituição Federal Brasileira é que se torna possível aplicar com razoabilidade os fundamentos da teoria da retribuição.
No que concerne à prevenção geral, a límpida fundamentação é extraída do intento de se impor coativamente no âmago racional o esclarecimento de que todos os atos danosos à sociedade possuem conseqüências legalmente previstas.
É nessa conjectura que o Direito Penal possui em seu arcabouço normativo as penas mais graves para os comportamentos que afrontam os bens jurídicos que merecem uma distinta tutela do Estado.
Impõe-se a toda sociedade o raciocínio lógico de que a violação aos direitos alheios pré-estabelecidos, e por consequência protegidos, darão ensejo a intervenção do Estado, único legitimado para tal atuação.
Coage-se psicologicamente, não para impor o terror à sociedade, mas, sim, para dar ciência aos seus membros da existência de um mecanismo necessário para sua subsistência.
A pena não é o melhor dos mecanismos para solução dos males, mas é a única capaz de dirimir alguns ilícitos. A ponderação de sua coação, pautada nos ditames constitucionais, legitimam a sua aplicação.
No tocante à prevenção especial, voltada para os delinquentes, não há como dissociar os frutos podres dos déficits sociais, tais como educação, saúde, lazer, dentre outros.
O Direito Penal não pode servir de remédio para todos os males. Surge o questionamento vastamente elencado da impossibilidade de ressocializar um ser humano que sequer teve a oportunidade de ser socializado.
É nítida a ineficaz aptidão da pena de prisão como instrumento ressocializador. É nesse contexto que surge, como alternativa, a aplicação de todos os métodos que excepcionam a prisão.
A ressocialização (ou socialização de alguns) deve estar intimamente associada ao delito praticado pelo agente. A culpabilidade serve de vetor para concessão de penas menos danosas para determinados delinquentes, o que implica na aplicação de alternativas à prisão.
Fundindo todas as fundamentações das teorias da pena, pode-se enxergar nitidamente que os Ecléticos estão aptos a garantir com mais exatidão o convívio harmonioso da sociedade.
Inobstante à existência de conflitos fundamentadores, o que deve prosperar é ideia da intervenção mínima do direito penal e que, quando se fizer necessário, que este esteja pautado nos basilares princípios constitucionais.
A retrospectiva formulada até o presente momento nos permite nitidamente aferir que o direito possui de forma indissociável um aspecto pautada na moral que consequentemente é moldada de acordo com a evolução ideológica da sociedade.
Em que pese o brilhantismo das concepções positivistas de vertente Kelseniana, a moral sempre se fez presente como elemento formulador as acepções jurídico penais, pelo nobre fato de se inerente a natureza humana.
Nesse percalço, após a tentativa de elucidar a finalidade do direito penal, torna-se imperiosa a análise de como surgem os bens jurídicos, com o fito de depreender os embates jurídicos consequenciais decorrentes do emprego do aspecto moral.
CAPÍTULO 3 SURGIMENTO, CONCEPÇÃO E TUTELA DOS BENS JURÍDICOS.
Inquestionável a necessidade humana do estabelecimento de mecanismos de controle da sociedade com afinco da manutenção da harmonia social. Esse mecanismo de controle nos serve para estruturar o caráter selvagem que integra a natureza do ser humano.
É na visão do filósofo italiano Cesare Bonesana Marquês de Beccaria, nascido em 1738, que podemos extrair os ideais que respaldam a necessidade da previsibilidade do controle social por intermédio do direito penal.
Mais precisamente na sua secular obra “Dos delitos e das penas” é que compreendemos a racionalidade de suas fundamentações:
Os primeiros homens, até então selvagens, se viram forçados a reunir-se. Formadas algumas sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em que se ficou de resistir às primeiras, e assim viveram essas hordas, como tinham feito os indivíduos, num contínuo estado de guerra entre si. As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a superfície da terra.
Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade em que a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania na nação; e aquele que foi encarregado, pelas leis, do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo.
O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo o exercício do poder que se afasta dessa base é abuso e não Justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo.
As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos (BECCARIA, 2003, p.22)
Em sua obra, publicada em 1764, é possível extrair os argumentos da necessidade da intervenção do direito penal como mecanismo de controle. No entanto, tal mecanismo social, deve ser utilizada da forma mais questionável possível, devendo sempre ser aferido o seu resultado fático.
As relações humanas são repletas de conflitos. Tal característica é intrínseca à antropologia que nos materializa. Por possuir como instrumento de sobrevivência o dom da racionalidade, os seres humanos necessitam construir mecanismos harmoniosos de convívio, que estão pragmaticamente escalonados no respeito aos direitos alheios.
Nessa linha racional, positivamente se imputou ao Direito Penal, em última ratio (natureza subsidiária), o poder/dever de tutelar os conflitos inerentes ao convívio humano. É sobre essa conjectura que filósofos do saber procuram fundamentar a junção fundamentadora das teorias interventivas do direito penal.
Tal escolha se perfez sob a égide da preservação ampliativa dos direitos fundamentais, com a salutar observância do melhor resultado prático para a sociedade.
A gravidade interventiva do direto penal nos remonta a análise da formulação concepcional dos bens jurídicos capazes de respaldar tal atuação, na tentativa de tornar nítida qual a verdadeira função do referido ramo jurídico.
O conceito de bem jurídico sofre a ingerência axiológica de diversos autores que fundamentalmente se debruçam sobre o etiquetamento deste elemento motivador da atuação legitima do ramo jurídico penal.
Dentre as acepções que incialmente merecem destaque, podemos aduzir a explanada por Günther Jakobs ao asseverar que:
O direito penal não serve para a proteção genérica de bens que são considerados como jurídicos, serve sim, para a proteção de bens contra certos ataques, e só no que se refere a essa proteção de bens, aparecerão na ótica do direito, e, portanto, serão considerados, bens jurídicos.
O direito não é um muro construído para proteger os bens, é sim, a estrutura que garante a relação entre pessoas. Portanto, o direito penal como proteção dos bens jurídicos significa que uma pessoa, apegada a seus bens, é protegida das ameaças de outra pessoa. (JAKOBS, 2005, p.33)
A delimitação conceitual formulada por Jakobs, nos remete a constatação de que ao direito penal não se atribui a árdua tarefe de classificar, tampouco originar os bens jurídicos de determinada sociedade, competindo lhe a tarefa não menos valorada de proteção aos aduzidos bens.
O preceito formulado por Jakobs transmuta a atuação do direito penal a um momento posterior ao surgimento dos bens jurídicos, na realidade o direito penal não terá o condão de preservar todos os bens jurídicos, na medida em que ainda haverá um afunilamento dos bens que merecem a atenção do direito penal, sendo os demais protegidos por normas do direito civil ou administrativo.
Por sua vez, a de se conceber a primazia conceitual estabelecida pela concepção de Claus Roxin que expende:
A função do direito penal consiste em garantir a seus cidadão uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos.
Bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos. (ROXIN, 2006, p.18).
A ótica traçada pela concepção roxiniana traduz a real função dos bens jurídicos catalogados pelo direito penal e sua ínsita tratativa protecional cuja finalidade esta lastreada pela busca do equilíbrio das relações interpessoais vistas coletivamente.
A tentativa de construção de um conceito harmônico do que poderia corresponder no âmbito teórico os bens jurídicos em que o direito penal se predispõe a tutelar merece a confrontação com as ideologias estabelecidas por filósofos como Rudolphi, Marx e Hassemer.
Os aludidos autores baseavam a concepção do bem jurídico sob o prisma ideológico de caráter pessoal, individualizando o que deveria integrar a proteção jurídico penal, o que, segundo Roxin, correspondia a uma ideologia limitativa, inepta a abarcar os bens jurídicos da generalidade (ROXIN, 2006, p.19).
É imperiosa a aferição de que a tutela jurídico-penal dos bens postos em análise, indistintamente perpassa pela necessária expropriação valorativa dos elementos que compõe a visão axiológica de determinada coletividade de sujeitos, que anseiam pelo natural convívio harmonioso.
Uma vez concebido os moldes de aferição pelos quais se permitem estimar os bens jurídicos que necessariamente merecem a intervenção danosa do direito penal, alcançasse o ponto motriz ensejador do surgimento dos tipos penais.
Os tipos penais consistem, de acordo com a necessária observância determinativa do princípio da legalidade, do resultado do processo legislativo que busca tutelar as acepções coletivas protecionais com o fito de possibilitar que determinados cidadãos se relacionem harmonicamente.
Se protege penalmente os bens relevantes à manutenção da ordem sob pena de latente afronta ao princípio da intervenção mínima da seara penal. A tutela incriminadora em caso de afronta a tais bens estaria substancialmente legitimada a proteção do essencial.
A essencialidade e subsidiariedade intrínseca a natureza jurídica do direito penal correspondem a elementos pretéritos primordiais para concepção da função de tal ramo jurídico, o que delimita o próprio poder do legislador.
Inconcebível será a possibilidade do estabelecimento por parte do legislador, da tipificação de condutas que afrontem os direitos fundamentais ou correspondam a ideologias classistas.
A evolução paradigmática dá ensejo a proibição do retrocesso na medida em que transpõe o referencial ideológico para um plano substancialmente mais elevado.
Ao se aferir a teoria roxiniana sobre os aludidos bens jurídicos penalmente relevantes, o autor insere, como elemento delimitador da atuação do poder legislativo no exercício da sua função constitucional de tipificar condutas, o elemento do consentimento, ao aduzir:
A consciente autolesão, como também sua possibilitação e fomento, não legitimam uma sanção punitiva, pois a proteção de bens jurídicos tem por objeto a proteção frente à outra pessoa, e não frente a si mesmo.
Um paternalismo estatal, enquanto este deva ser praticado através do Direito Penal, é por isto justificável somente tratando-se de déficits de autonomia do afetado (menores de idade, perturbados mentais, que não compreendem corretamente o risco para si).
A participação no suicídio não deve ser punível, como ocorre na Alemanha, ao contrário de muitos outros países, quando aquele que consentiu com a morte tomou sua decisão em um estado de total responsabilidade; isto é uma questão de grande importância na moderna discussão sobre eutanásia. (ROXIN, 2006, p.23)
Roxin acrescenta à memorável discussão do surgimento dos bens jurídicos penais a possibilidade de consentir com a sua infração, expurgando a atuação do estado, desalvorando a tipicidade em virtude da disponibilidade subjetiva do referido bem.
Contudo, necessário se faz o percalço sobre os demais elementos que mitigam a institucionalização exacerbada de numerosos tipos penais, tais como a inserção no direito comparado do princípio constitucional da proporcionalidade.
Transmutando a análise para o direito Alemão, Roxin nos ensina que o seu Tribunal Constitucional, em um juízo ponderado de cunho valorativo, legitimou com método de elegibilidade dos bens jurídicos penais o princípio constitucional da proporcionalidade ao descrever que:
O Tribunal decide sobre a admissibilidade de uma intervenção jurídico-penal lançando mão do princípio da proporcionalidade ao qual pertence a chamada proibição de excessos como uma de suas manifestações.
Poder-se-ia dizer que uma norma penal que não protege um bem jurídico é ineficaz, pois é uma intervenção excessiva na liberdade dos cidadãos. Desde de logo, haverá que deixar ao legislador uma margem de decisão no momento de responder se uma norma penal é um instrumento útil para a proteção de bens jurídicos.
Mas quando para isso não se possa encontrar uma fundamentação séria justificável, a consequência deve ser a ineficácia de um norma penal desproporcional (ROXIN, 2006, p. 27).
O racionalismo sistêmico que deve pautar o arcabouço normativo de um estado democrático de direito, legitima a simbiose analógica de institutos que permitam a expansão do direito como mecanismo efetivo da tutela jurídica.
Nessa linha, Roxin destaca a atuação do Tribunal Alemão na intrínseca inserção do princípio da proporcionalidade como balizador da institucionalização de bens jurídicos que dão ensejo as normas típicas.
O direito se legitima em si mesmo quando, seus mecanismos racionais são proporcionais a teleologia pela qual seu embrionismo se funda. É a razão da existência sob a ótica da manutenção da sua necessária tutela que, em casos de desvios, se torna desproporcional.
Há ainda, a existência de outras métricas capazes de indicar técnicas de aferição ponderada dos fins aos quais o direito penal estaria legitimado a agir, o que demanda a elaboração de um outro trabalho.
No que tange aos bens jurídicos penalmente relevantes, ponto primordial para identificação da tutela penal, é salutar o adendo acerca das apreciações roxinianas às teses prelecionadas por Hirsch, Stratenwerth, Jakobs.
Segundo Roxin, Hirsch não tinha o intento negatório da concepção de bem jurídico pessoal derivado do contrato social, apenas compreendia a impossibilidade da proteção penal total a tais bens.
O mencionado autor ainda acrescenta a observância da tutela subsidiária do ramo penal, apenas quando ineficientes os mecanismos de controle advindos das regulamentações civis ou jurídico-administrativas.
A primazia racional da concepção de Hirsch, na visão de Roxin, foi a correlação necessária do aludido princípio da subsidiariedade com o princípio da proporcionalidade, estruturantes imprescindíveis ao organograma intervencional do direito penal. (ROXIN, 2006, p.31).
Merece destaque intelectual a asseveração construída por Stratenwerth ao incorporar como bens jurídicos penais a proteção de animais e das futuras gerações. Nesse epicentro ideológico Roxin anui enfaticamente que a ampliação de tais bens com o fito de incorporação não só do círculo dos homens, mas também, das demais criaturas vivas e das futuras gerações é salutar para o contrato social harmônico. (ROXIN, 2006, p.33).
Tias concepções sempre nos remonta a ideia primordial de que os bens jurídicos eleitos pela sociedade são o resultado de suas acepções morais, ideológicas, consuetudinária, políticas e demais elementos antropológicos que os materializam.
O direito existe como mecanismo de tutela das ações humanas com a finalidade de permitir que as mesmas continuem se desenvolvendo de forma sustentável e harmônica.
Nesse jaez, até aqui, fora observado que a finalidade do direito decorre, além de outros aspectos, do anseio moral coletivo na preservação de ações e, o surgimento dos bens jurídicos estão atrelados a necessidade de proteção do que a própria sociedade valora.
Dessa forma, é necessário imergir sobre as situações em que o direito se choca com o aspecto moral, na tentativa de aferir em qual grau tal relação esta pautada.
CAPÍTULO 4. APLICAÇÃO EQUILIBRADA DA MORAL.
Um dos elementos que embasam o suporte concepcional do direito nas suas várias vertentes e ramos, é o aspecto moral. Tal elemento é intrínseco a antropologia que nos torna humanos.
Ao longo da história, a muito se buscou a mitigação exacerbada do aspecto moral na tutela do direito, com especial atenção ao direito penal, tendo em vista as consequências danosas que tal ramo é capaz de gerar.
Os positivistas a exemplo de Hans Kelsen, desenvolveram vertentes doutrinarias que buscavam a teoria pura do direito, na tentativa de mitigar a irracionalidade que na maioria das vezes pauta os aspectos morais.
A moral, elemento antropológico, inerente a nossa condição, sempre esteve presente em todas as ações que consequentemente tomamos e, por via de consequência, nas estruturas jurídicas que são necessariamente construídas por seres humanos.
É impossível a dissociação de elementos pretéritos basilares, tendo em vista as suas salutares características de preconcepção, ou seja, não se exclui um elemento que compõe a sua existência.
Assim, a moral se encaixa nas condutas humanas como um elemento necessariamente presente, incapaz de ser aniquilado, o que não significa que não possa ser alvo de balizamento.
Embora seja inerente as ações, a moral é um elemento que inexoravelmente precisa ser ponderado, sob pena de gerar a tutela desproporcional e irracional de ações.
As retrospectivas históricas elucidam que onde a moral desempenhou um papel de maior relevância do que o próprio direito barbáries foram praticadas a exemplo da inquisição, nazismo dentre outras.
Tais constatações nos remetem a necessidade de racionalizar na maior medida possível o aspecto moral, tendo em vista que os choques gerados por ambos é capaz de promover o desenvolvimento do próprio direito.
Nessa linha racional podemos elucidar a concepção de Jakobs ao aduzir que “a contraposição da lesão de um bem e a moral dá lugar ao crescimento do direito penal” (JAKOBS, 2005, p.42).
A imersão no elemento intitulado de moral nos remete a um paradoxo, tendo em vista que ao formularmos um balizamento do referido instituto estaremos racionalmente impondo métricas morais mais rigorosas.
Assim a própria moral serve para balizar a moral. Contudo há a necessidade do emprego da racionalidade com a finalidade de melhor empregar o antropológico elemento.
4 CONCLUSÃO
Em síntese o singelo trabalho almejou debater os institutos que legitimam o direito penal (finalidade e bem jurídico) como mecanismo necessário a manutenção social, com epicentro teórico pautado nos ideias da moral, com o afinco de elucidar racionalmente na maior completude possível do senso de justiça.
Perpassando sobre os capítulos elucidados, é mister constatar que a moral como elemento intrínseco a natureza humana, pauta as teses que legitimam as teorias da pena, bem como serve de embasamento para a elucidação dos bens jurídicos que a sociedade necessita de proteção, passando a ter como guardião o danoso direito penal.
Por conseguinte fora demostrada o salutar papel que a moral desempenha sob o direito penal, tendo em vista que o serve como mecanismo de evolução das tutelas que merecem ou não a sua proteção.
Em que pese o papel de motivador ao evolucionismo, a moral aplicada de forma isolada gera danos severos a sociedade sendo necessário empregar a racionalidade, com fito de impor regramentos, fases, etapas, procedimentos que desaguem na finalidade pretendida, evitando violações aos direitos fundamentais.
Assim, no plano teórico, faz se necessário a conjugação de bases ideológicas presentes em outros ramos do direto, com especial atenção ao ramo constitucional, com afinco do estabelecimento da racionalidade a exemplo das teorias da máxima da proporcionalidade, associada com a lei de colisões, a lei do sopesamento, os postulados da ponderação, da necessidade, razoabilidade e outros fatores que propiciam a manutenção do convívio tal qual preleciona o Tribunal Federal Alemão.
Nas sabias palavras do filosofo Raul Zaffaroni é possível constatar que “as vezes carecemos de boas respostas pelo simples fato da má formulação das perguntas”.
A indagação que merece destaque é a que nos remete a origem dos institutos e quais são as suas respectivas finalidades pretendidas.
Como uma das possíveis resposta a esse questionamento, encontra-se a asseveração de que os institutos racionais balizadores do emprego da moral na solução dos conflitos postos em análise é justamente, o intento de manter a ordem social.
Ordem social compreendida em sua acepção ampla, tendo em vista que dentre os pilares estruturantes de um estado democrático de direito encontra-se a efetiva justiça.
A justiça, resultado da aplicação da racionalidade sistêmica, mantêm a primazia legitimadora da atuação do Estado de direito, proporcionado o equilíbrio dos institutos penais com a acepção inexorável da moral.
Assim, o povo outorga seus poderes ao Estado, que por sua vez pautado nos interesses de seus legitimadores, se organiza, estabelecendo os critérios para os exercícios das funções essenciais à manutenção da referida ordem social.
A sociedade é cíclica, e os frutos de sua atuação refletem no preenchimento de seus ideais, ideias esses que são norteados por aspectos morais, que racionalmente empregada é capaz de nutrir um direito penal mais próximo do límpido senso de justiça.
Notas e Referências:
ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, Contribuindo Para a Fundamentação de Um Paradigma Dualista. Coimbra Editora, Limitada, 1991.
BECCARIA, Cesare Bonesana Marquês de. Dos Delitos e Das Penas. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2003.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
BOSCHI, José Antônio P. Das Penas e Seus Critérios de Aplicação. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. 6. ed. Tradução de José Antônio Cardinalli. Campinas: Bookseller, 2005.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
HART, Hart L.A. O conceito de Direito. 4. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
HEGEL, Jorge Guilherme Federico. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitório. Lisboa: Guimarães Editores, 1959.
JAKOBS, Guther, MELIÁ, Manoel Cancio, Direito Penal Inimigo: noções e crítica. 2. ed. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
________. Fundamentos do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
________. Direito Penal e Funcionalismo. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
________. Sociedade, Norma e Pessoa. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. São Paulo: Editora Manole, 2003.
KANT, Emanuel. Doutrina do Direito. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Ícone,1993.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Direito Penal, Sistemas, Códigos e Microssistemas. Curitiba: Jaruá, 2004.
MIR PUIG, Santiago. Direito Penal, Fundamentos e Teoria do Delito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido, Na Teoria do Delito. 3. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2001.
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003.
ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Veja, 2004.
______. A Proteção de Bens Jurídicos Como Função do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
______. Política Criminal e Sistema Jurídico Penal. Tradução de Luís Greco. São Paulo: Editora Renovar, 2000.
______. Funcionalismo e Imputação Objetiva No Direito Penal. Tradução de Luís Greco. São Paulo: Editora Renovar, 2002.
WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico Penal, Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista. Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
______.Manual de Direito Penal Brasileiro. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
. . Erick Oliveira Rocha Gomes é Advogado, Mestrando em Direito pela UFBA (2014.2), Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. . .
Imagem Ilustrativa do Post: We all want our freedom ! // Foto de: Craig Sunter // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/16210667@N02/8646935211
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.