Filho não é só falo: o que se compartilha na guarda compartilhada?

06/07/2015

Por Maíra Marchi Gomes - 06/07/2015

Deixa eu te guardar. A casa é sua Faz em mim teu lar. Me reconstrua Queira me habitar onde eu me escondo Faz deste lugar só seu no mundo

Eu quero ser onde você sossega a alma E chora e ri E encontra a calma pra sonhar sem dormir Vem acender as luzes que iluminam o meu coração Vem ter comigo sua parte da amplidão De minha parte, eu estou aqui...

 

Em outro momento, abordou-se a arenosa temática do amor (aqui), tendo-se focado nas ações civis de abandono afetivo e no projeto de lei para criminalização da referida conduta. Questionou-se os riscos de se compreender o amor a partir unicamente de princípios do amor romântico; especificamente, questionou-se a concepção de que amor é bondade, é pleno, é eterno, que implica uma convivência e que nos salva da morte. Chegou-se, ainda, a mencionar que tais discussões seriam beneficiadas com menções a questões de gênero e família. Eis, portanto, o que se procurará fazer neste espaço, agora a partir do tema da guarda compartilhada.

Se o ECA já nos exige indagar sobre a noção de família da qual trata o Direito (posto prever como direito fundamental de crianças e adolescentes a convivência familiar-comunitária, e suas decorrências em termos de medidas protetivas), com a vigência da Lei n° 11.698 de 13 de junho de 2008 (que alterou a redação dos artigos 1583 e 1584 do Código Civil, acrescentando a guarda compartilhada como opção para pais e mães não conviventes cuidarem de filhos), isto parece se tornar ainda mais importante.

Inicialmente, ao se referir todo o tempo e explicitamente ao casal parental como “pai” e “mãe”, o texto legal desconsidera a possibilidade de que um filho tenha como responsáveis dois pais e duas mães. Mais uma vez, então, o Direito associa a filiação à biologia. Além disto, e também mais uma vez, não concebe que identidade de gênero não é dada pelo órgão sexual. Logo, que há mulheres/mães com pênis, e homens/pais sem pênis. E, ainda não contente, reduz a sexualidade à heterossexualidade. Logo, pressupõe que um homem só se relaciona amorosamente com uma mulher, e vice-versa.

Há momentos e circunstâncias em que se deve desconsiderar o fundamental, para que se consiga caminhar. Parece que no campo do Direito via de regra encontramo-nos nesta situação. Afinal, quando insistimos em exigir do Direito o mínimo de seriedade, muitas vezes não conseguimos trilhar nada. Assim, poderia partir para a discussão feita a seguir sobre o conteúdo mais específico da legislação em tela. Ainda assim, sinto-me compelida a trazer algumas contribuições psicanalíticas sobre masculinidade e feminilidade, tendo-se como humilde objetivo deixar duas perguntas: o Direito é machista? A Psicanálise é machista?

Para introduzir a discussão, um breve apontamento sobre o conceito de “falo” para a Psicanálise freudiana:

Na sociedade patriarcal o pênis simboliza o poder. A teoria freudiana afirma a inveja do pênis na mulher, e que a mesma é um ser incompleto. Talvez a inveja que Freud observou em suas pacientes fosse a inveja do poder do homem da era vitoriana, simbolizado no pênis; e a sensação de incompletude se devesse ao fato de que algo realmente faltava às mulheres. Não um órgão sexual aparente, e sim condições sociais para que se realizassem plenamente como seres humanos (Vieira, 1997, p.85)

Portanto, parece que a Psicanálise concebe que o falo não é o pênis, mas é poder. Evidentemente que em sociedades nas quais se alça o pênis ao estatuto de signo de poder, os excluídos (os despossuídos de pênis) podem demarcar sua condição de inferioridade a partir de um destaque da condição privilegiada dos possuidores de pênis[1]. É, então, a partir do posicionamento do sujeito em relação ao falo (poder) que Freud vai discorrer sobre feminilidade e masculinidade. E, ainda mais fundamental, tendo como parâmetro sociedades nas quais o falo é associado ao pênis. A propósito, na sociedade ocidental contemporânea isso ainda não ocorre?

Belíssima, em termos de possibilidade de suspensão de preconceitos e estereótipos, a passagem de Goldenberg (2013, p.120-121) na qual, justamente tratando das relações amorosas, se evidencia que o falo circula. E, mais especificamente, de que o poder às vezes está no feminino. Senão vejamos:

O homem é o caçador; a mulher, a caça. Sim, mas não se formos freudianos: a carência fálica faz delas caçadoras...do falo que eles acreditam deter (...). As fêmeas são desejantes porquanto “castradas”. Ativas, portanto, ao passo que os homens, devidamente provistos, colocam-se como desejados, ou seja, passivos (...).

(...) A criança vêm ao mundo em posição de falo materno. Começará a jogar a dialética de ter ou não ter a partir de deixar de acreditar que pode sê-lo. Em tese, esta seria a função do pai, acabar com a ilusão de se poder ser o falo (...).

(...) ainda que pareça um contrassenso, um homem viril será aquele que tenha a coragem de arriscar seu falo na relação amorosa. Um que se apresente como desejante. E dito que parece um contrassenso porque esta seria precisamente a posição feminina relativa à falta fálica. (...). Aquele que não tem, quer. Aquele que tem é querido, e se ele mesmo passa a querer é porque perdeu. Em que pese a estrutura, o imaginário popular nos propõe, desde a idade média pelo menos, exatamente o contrário: a virilidade (ativa) do amante e a feminilidade (passiva) do amado. Não é irônico que a psicanálise tenha sido acusada de “machista” e “falocêntrica”?

Sim... a falta faz-nos falta. Talvez a maior que se possa ter. É só a partir dela que se reconhece o que tem. Afinal, como saber que o que se tem é desejado se não a partir de quem o deseja?  Assim, deseja-se ser desejado. Ou, melhor dizendo, deseja-se que a falta alheia seja a nós dirigida. Daí, portanto, talvez se pudesse dizer que o masculino também inveja o feminino. Os contos de fadas, sobre este ponto (assim como a outros), esclarecem-nos algumas coisas:

O desejo masculino é fetichista, sempre. Recorta e cola as mulheres. Senão por que o Príncipe deixaria de reconhecer sua Princesa na Cinderela quando a visse no dia seguinte ao baile? Ao contrário do que se imagina, ele procurava mesmo por um pé. As irmãs casadouras da Gata Borralheira não se enganavam nem um pouco ao cortarem-se pedaços dos próprios. Caso tivessem feito caber no sapatinho de cristal seus pés mutilados, estas feiosas teriam se tornado princesas de pleno direito, tendo fisgado por este meio o principesco desejo.

Resta saber - e esta questão nos devolve ao trabalho do começo - se o próprio de um desejo qualificado de “feminino” consiste apenas em oferecer-se à tesoura da fantasia masculina. Seja como for, o gesto desesperado das irmãs invejosas revela o verdadeiro objeto que está a causar o desejo de nosso real personagem, a saber, o sapatinho - ou, melhor, a forma vazia que ele apresenta para um pé virtual. É deste pé recortado pela fantasia que o Príncipe gozaria se pudesse. Coube a elas, as vilãs do conto, a tarefa de presentificar-lhe esta simples verdade, que o sapatinho interessava-lhe pelo buraco que introduz no mundo e que um pé aspira a preencher. Pouco importa se, depois, por ser a portadora do pé que calça na forma, a Cinderela vira falo para ele (e para ela mesma). Quem diz que ela se satisfaz com esta posição? Não ela, com certeza. Afinal, o que a Cinderela tem com isso além da coroa? (Goldenberg, 2013, p.51-52)

Portanto, se há algum discurso machista, não é o da Psicanálise. Pode ser, por exemplo, o do Direito, que apesar de fazer progressos ao questionar a concepção corrente de que a mãe é a melhor cuidadora de uma criança (desde que se prove o contrário) e conceber que ao pai também diz respeito o âmbito doméstico, ainda tem a caminhar. Portanto, pode-se elogiar o questionamento que a legislação em questão faz da decisão padrão de guardas (unilateral, e tipicamente cedida à mãe), mas se pode ir além. Por exemplo, sinalizando alguns entendimentos equivocados sobre sexo e gênero, algumas compreensões genéricas a respeito de conjugalidade e a lógica machista-fálica com que se pensa a questão.

Dito isto, partamos para um detalhamento de outros aspectos da legislação em debate que melhor vislumbram esta lógica machista-fálica. Por exemplo, a ideia (inclusive já debatida na coluna já aqui referida) de que o melhor para os filhos é ter os pais junto de si, inclusive obrigatoriamente. Está-se remetendo primordialmente ao §2° do artigo 1584 da Lei n° 11.698 de 2008, em que se encontra que a guarda compartilhada pode ser aplicada independente do consenso entre os pais, sendo inclusive a primeira opção em casos de disputa de guarda.

Certamente não são todos os operadores do Direito que consideram que divisão de poder e responsabilidade é sinônimo de solução deste tipo de questão. Há quem talvez entenda que condutas deste tipo inclusive acirram os conflitos. Faz sentido pensar que, quando a criança/adolescente é tomado do lugar de arma a ser utilizada contra o ex-companheiro, deve-se garantir o mesmo acesso a esta arma a ambos os disputantes? Uma ética de guerra aplicada ao âmbito familiar?

Talvez o mais adequado seria desarmar os adultos. Seria, então, libertar o filho desta função que é manter o laço entre os pais. Talvez o Direito, obrigando pais a lidarem com o ódio mútuo por meio de um nivelamento compulsório de responsabilidade e poder sobre o filho, tenta fazer o amor vencer o ódio. Sobre isto, pode-se dizer em primeiro lugar que é ingênua esta persistência do romantismo. A mesma ingenuidade que muitas vezes põe fim a alguns relacionamentos, quando ambos/ ao menos um recusa (a si, principalmente) ser o falo alheio. Ingenuidade romântica que faz com que, uma vez o amor dando as caras e mostrando que não é plenitude e eternidade, transforme-se o amor em ódio. Talvez aliás coloquem o filho no lugar do falo que imaginavam que o outro ocuparia.

Poder-se-ia aqui também indagar sobre a ilusão em que se fundamentam os relacionamentos pautados na redução do amor ao amor romântico. Os casamentos que aparentemente “deram certo”. Mas não me autorizarei a isso e, além disso, aposto que cada leitor pode por si ter a coragem e hombridade de pensar, considerando suas próprias relações, sobre o que é estar ou não junto de alguém. Mantenhamo-nos, então, abordando o tratamento objetificante dos filhos, que se inicia por parte dos pais-sujeitos, e é continuado pelo Direito-Outro, com a seguinte passagem:

Freud observava já o fascínio que nos produzem os animais e as crianças e, por extensão, alguém muito cheio de si. Eles se bastam e isso é tão fascinante quanto odioso. A estratégia mais antiga para tentar quebrar a satisfação que alguém retira de si próprio é...amá-lo. Amando-o expresso, no fundo, a minha vontade de romper a sua casca narcisista. Eu, o carente, serei o causador da tua carência. Não me interessa nada do que você tem, quero que você sinta falta de ao menos uma coisa. Minha presença, nomeadamente (Goldenberg, 2013, p.120-121)

Uma possibilidade aos operadores do Direito quando se deparam com ações de guarda é que se ouça o próprio filho a respeito da situação. Ele pode optar por viver com um deles, e até com nenhum dos dois. Evidentemente seu discurso pode ser influenciado por alienação parental (sobre o que neste espaço se discorrerá em outro momento). Mas mesmo que isto esteja ocorrendo, não é lhe retirando a voz e o obrigando a conviver com alguém com quem não quer e a se sujeitar às suas decisões que se ajudará uma criança/adolescente nesta circunstância. Talvez o que também se possa fazer é encaminhá-lo à psicoterapia. Pois eis que, frequentemente, à carência dos pais o filho já se encontra submetido em casos de disputa de guarda. Ele poderia menos não estar submetido à carência de operadores do Direito, que pretendem melhor saber dele que ele próprio.

É pertinente ainda dizer da facilidade que é a um operador do Direito posicionar-se pela guarda compartilhada. Talvez porque ela soe quase como democrática! O problema é que ela não soluciona o conflito entre as partes, mas o agrava. E o agrava porque legitima o uso que fazem do filho como arma. Logo, é o tipo de decisão que instrumentaliza o poder de atacar o outro de ambas as partes, e faz de terceiros vítimas. No caso, paradoxalmente os próprios filhos (suposta causa do conflito), que são transformados em armas-falos.

Da divergente maneira de pensar a questão, surgem diferentes formas dos tribunais decidirem as ações de guarda. Brito e Gonsalves (2013) analisaram acórdãos prolatados por três estados da Federação no período de 12 de agosto de 2008 (data em que passou a vigorar a Lei Federal n° 11698/08) a abril de 2010. As autoras relatam que no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro aproximadamente 25% da jurisprudência levantada era favorável à guarda compartilhada. Já no Tribunal de Justiça gaúcho, não houve registro de acórdão que decidisse favoravelmente à aplicação dessa modalidade de guarda dentre os julgados registrados. Por sua vez, dos 38 acórdãos estudados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, apenas quatro foram favoráveis à determinação de guarda compartilhada.

Restam as questões: como os diferentes operadores do Direito lidam com o falo? Como lidam com a falta? Disto parece decorrer conceberem que um filho não pode ser sentenciado a ser falo dos pais. Se é fundamental que ele tenha um espaço no desejo dos mesmos, um mínimo de libertação frente ao desejo deste Outro ao filho deve ser concedida.

A problemática torna-se mais grave se pensarmos que alguns operadores do Direito estão identificados ao falo. A eles resta não se inocentarem, e questionarem a quem obedecem quando escrevem o que escrevem, quando dizem o que dizem e quando pensam o que pensam. Pior que o quê os sujeitos são capazes de fazer quando detêm o poder, é o que fazem quando se crêem o próprio poder. Lembremos do que Eichmann fez, ao atender o sedutor apelo de ser necessário a Alemanha. Talvez o quê de pior o Estado da Alemanha fez em sua pretensão de poder foi cometida pelos sujeitos que ela convenceu de que eram o próprio poder.

Privemos pelo menos as crianças e adolescentes de nossos (da sociedade civil e Estado) anseios nazistas.


Notas e Referências: 

[1] Um destaque importante a se fazer nesta discussão é a importância atribuída pela Psicanálise a aspectos que transcendem a esfera intrapsíquica (históricos, políticos, econômicos, culturais, etc.) para a compreensão da subjetividade, via de regra desapercebida.

Brito, Leila Maria Torraca de, & Gonsalves, Emmanuela Neves (2013). Guarda compartilhada: alguns argumentos e conteúdos da jurisprudência. Revista Direito GV9(1), 299-317. Retrieved July 01, 2015, from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322013000100011&lng=en&tlng=pt. 10.1590/S1808-24322013000100011.

Goldenberg, Ricardo (2013). Do amor louco e outros amores. São Paulo: Instituto Langage.

Vieira, Laura Helena Chaves Nunes (1997). Articulando gênero, sexualidade e subjetividade. Revista de Ciências Humanas, v. 15, n. 21, p. 71-90.


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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