FICÇÃO IMITA A VIDA: DIREITO À PRIVACIDADE, O DILEMA DAS REDES E 1984

05/09/2021

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos 

Em sua vigésima primeira edição, em meio ainda a um contexto pandêmico, o programa televisivo Big Brother Brasil atingiu recordes de audiência e consagrou personagens, especialmente por meio da atuação incisiva das redes sociais. No programa, como é cediço, os participantes aceitam se submeter a uma vigilância por áudio e vídeo 24h por dia, além de se submeterem a situações de competição cujas regras nem sempre são previamente conhecidas.

O formato do programa foi inspirado na obra literária 1984, do autor inglês George Orwell, na qual os personagens, tais como os “brothers”, vivem sob a vigilância inclemente do Grande Irmão.

A distopia criada por Orwell voltou às listas de livros mais vendidos no último ano. A razão de ser deste fenômeno, em um primeiro olhar, é a atualidade do livro. Embora narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente (quase como os espectadores da TV), acompanhamos a história sob a perspectiva de Winston Smith, um funcionário público do Ministério da Verdade de Oceânia, responsável por atualizar o passado, de acordo com os interesses da ditadura do Partido Socing em cada ocasião. Embora tenha crescido durante a ditadura, Winston guarda reminiscências do passado que lhe indicam que é possível uma outra forma de viver. Monitorado pelas teletelas em todos os ambientes em que transita, passa a escrever um diário, sem saber exatamente porque ou para quem, mas como uma forma de manter alguma conexão com a própria lucidez.

Em tempo em que tudo parece estar nas redes, é comum a imediata identificação dos leitores com Winston. Porém, considerando que não há uma correspondência total entre a nossa sociedade e a Oceania, fica o questionamento: por que um livro escrito na metade do século XX é tão atual e continua a interessar milhões de pessoas?

O que nos separa da vida de Winston é claro: não vivemos uma ditadura. Além disso, diferentemente daquele contexto distópico, o amor é um sentimento cultuado, principalmente entre familiares, parceiros e amigos. Não vivemos sob constante ameaça de guerra. Temos prerrogativas mínimas de liberdade, igualdade e outros direitos fundamentais. Ainda somos abraçados, é preciso ter em vista, por um direito positivo que traz um mínimo de segurança jurídica.

A falta de privacidade é um dos pontos nevrálgicos da obra de Orwell. Em conversa com o sr. Charrington, Winston diz que a privacidade é algo muito valioso. Em busca de experienciar alguma privacidade, ele inicia o pequeno diário escondido no canto de seu quarto fora do alcance da teletela. Com o mesmo intuito, reserva um quarto em uma região fora do radar da Polícia do Pensar. Assim, é quase como se no seu íntimo ele soubesse que precisava de vida privada para sobreviver

No Brasil de 2021, a privacidade é direito fundamental, consagrado no art. 5º, X, da Constituição de 1988. O Estado deve atuar de forma a permitir que cada pessoa possa conduzir a própria vida livre de ingerências, seja do Poder Público, seja da sociedade ou, ainda, de outros grupos de indivíduos.[1] A mesma Constituição protege, também, a intimidade, um recorte ainda mais restrito da vida privada e como corolário verificamos, por exemplo, a inviolabilidade de domicílio, correspondências e comunicações telegráficas.

No entanto, se de um lado a norma resguarda o direito à vida privada, de outro, a sociedade do espetáculo estimula a exposição e a mercantilização da privacidade: cresce a todo momento o número de influencers nas redes sociais, o Big Brother Brasil está mais popular do que nunca e escândalos de vazamento de dados, como o Caso Facebook, têm se tornado mais comuns. Tais situações até ensejaram a recente criação da Lei Geral de Proteção de Dados.

A questão da privacidade atualmente se torna então mais complexa do que parece. Nós não somos compulsória e integralmente monitorados por um Grande Irmão, tal como Winston. Mas somos estimulados e acreditamos escolher livremente publicar algo a nosso respeito nas redes sociais. A teletela não foi instalada pelo Estado em nossas casas, mas nós compramos celulares, computadores, televisores e nos tornamos cada vez mais dependentes deles. Mesmo quem não trabalha com redes sociais põe ao escrutínio público seus medos, anseios, desejos e ostentações. É difícil conhecer alguém que não tenha conta no Facebook ou Instagram. Será então que o conceito de privacidade mudou?

Antes um direito voltado a nos proteger do Estado e de outros cidadãos. Agora deve nos proteger de nós mesmos? Ou então das empresas de redes sociais? Dos algoritmos? No âmbito dessa discussão, 'O Dilema das Redes' (2020), documentário da Netflix, faz a ponte perfeita entre 1984 e nossa sociedade. Ele traz para o debate não só a questão da privacidade, como outros temas que a orbitam: fake news, discursos de ódio e revisionismo histórico – temas também presentes no livro de Orwell.

A obra literária em questão, assim como outras linguagens artísticas, tem grande potencial ético que pode contribuir significativamente para a construção do Direito que queremos. Ao acompanharmos a história de Winston, a autorreflexão é inevitável e os valores constitucionais tão duramente conquistados (embora sem sempre efetivados) se tornam ainda mais caros ao leitor.

Para responder à pergunta feita anteriormente acerca da atualidade de 1984, devemos recorrer a Italo Calvino, que com maestria definiu os clássicos. Em suas palavras, “os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”.[2]

A obra de Orwell é um clássico. Por isso, atemporal. Por isso também, aproxima-se de nosso cotidiano, mas não o reproduz com total veracidade. Pode ser um prelúdio do que nos tornaremos. Ou, simplesmente, um aviso para que estejamos sempre atentos à importância do Estado Democrático de Direito em nossa vida cotidiana.

 

Notas e Referências

[1]
                    [1] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005, p.113.

[2]
                    [2] CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.10.

 

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