Feminismos sem edições - O papel da mulher nos cenários jurídicos (Parte 2) - Por Fernanda Martins

17/09/2016

Por Fernanda Martins – 17/09/2016

Leia Também a Parte 1

1. Cenário 02 

Na mesma toada de discussão, propõe-se a seguinte cena. Um Instituto bastante reconhecido no mundo jurídico brasileiro, no início do presente ano, realizou o seguinte convite “Mulher: envie seu artigo para publicação no Boletim de março de 2016”. Tal iniciativa teve como proposta declarada denunciar a disparidade que permeia o âmbito acadêmico na divulgação e na presença das mulheres no próprio Instituto.

A partir da pesquisa realizada por Tatiana Santos Perrone e Vanessa Menegueti[1], evidencia-se que o número de publicações de mulheres na Revista e no Boletim, assim como em participação no evento anual do Instituto, são grosseiramente inferiores ao número de participação de homens.

Diante do referido convite pensou-se necessário questionar quais espaços e de que forma as mulheres gostariam de ocupar o mundo acadêmico. Esse despertar ansioso resultou na reflexão bastante pontual de que as mulheres não querem somente oportunidades para edições simbólicas e que, na verdade, almejam serem reconhecidas por muito mais do que edições. E por edições deve se entender não somente no sentido de não haver espaço normalmente para as mulheres e suas publicações, mas também por terem sempre suas falas “editadas” ou cerceadas. Como Donna Haraway, “certamente aqui falo por mim, especulando sobre se há um discurso coletivo sobre esses assuntos.”[2]

A presente fala sobre o cenário delineado tem por fim não somente preencher espaços de proposta de inclusão, mas sim de reivindicar que as mulheres sejam cotidianamente reconhecidas como sujeitos de voz própria em abril, maio, junho, julho. Quer-se questionar quantos juristas homens conhecem Camila Prando, Vera Malaguti Batista, Vera de Andrade, Marília Denardin Budó, Marília Montenegro, Katie Arguello, Mary Belof, entre tantas mulheres potentes, qualificadas, que são silenciadas nas formas mais veladas.

Quer-se, portanto, provocar a reflexão sobre quantas mulheres ocupam espaços nas diretorias, presidências e afins nos Institutos de Direito no Brasil e em outras tantas esferas do sistema judicial. Quer-se libertar vozes no hoje e no por vir e não apenas quando o patriarcado assim permitir.

Donna Haraway é precisa ao dizer que

Temos gasto muita tinta tóxica e árvores transformadas em papel para difamar o que eles queriam dizer com o termo e como isso nos machuca. O "eles" imaginado constitui uma espécie de conspiração invisível de cientistas e filósofos masculinistas, dotados de bolsas de pesquisa e de laboratórios; o "nós" imaginado são os outros corporificados, a quem não se permite não ter um corpo, um ponto de vista finito e, portanto, um viés desqualificador e poluidor em qualquer discussão relevante, fora de nossos pequenos círculos, nos quais uma revista de circulação de "massa" pode alcançar alguns milhares de leitores, em sua maioria com ódio da ciência.[3]

É importante ressaltar que a realidade excludente é um cenário bastante comum no mundo jurídico e nas ciências, e o pior, é que se trata de um movimento silente compactuado por “pensadores” que se dizem reivindicar a igualdade e a consagração da isonomia no tão pretendido Estado Democrático de Direito brasileiro. A ciência, não nos iludamos, é sim “um texto contestável e um campo de poder; o conteúdo é a forma.”[4]

O que se tira desse “fenômeno” é que o que se consagra diante das reivindicações que se elaboram na dura realidade de denúncia ao machismo, sorrateiramente opta-se pela manutenção do silenciamento das vozes das mulheres no ambiente jurídico-acadêmico nacional. Por óbvio, romper o silêncio é um trabalho difícil e pressupõe arriscar balançar estruturas tão bem fixadas e pré-moldadas diante daquilo que sempre se manteve como alicerce da sociedade, pois “nem homens nem mulheres gostam de falar sobre o assunto, contornam rapidamente o problema. Porque a ideia de mudar o status quo é sempre penosa.”[5]

No entanto, romper o silêncio é preciso e é posicionar-se, movimento indiscutível como prática chave, posicionar-se “é base do conhecimento organizado em torno das imagens da visão, é como se organiza boa parte do discurso científico e filosófico ocidental. Posicionar-se implica em responsabilidade por nossas práticas capacitadoras.”[6]

Há sujeitos bem acomodados em seus palanques e diante de seus microfones sempre disponíveis que questionam o que ora se diz, afirmando que não há mulheres com qualidade e com vontade para ocupar tais espaços, no entanto, sabe-se que tal olhar nada mais é do que uma forma de machismo velado, cuja ignorância sobre a temática ainda revela o que se busca ocultar[7].

Ao pensar a inexistência de mulheres qualificadas e engajadas no que concerne o mais amplo rol de temáticas do direito, o que se verifica é – para não usar outro termo - cinismo, particularmente compreendido mais como violência. É notório o grande número de mulheres que se qualificam e lutam cotidianamente para serem ouvidas e afirmarem seus espaços de fala.

Conforme recente pesquisa expõe, o número de doutoras mulheres que obtiveram seu título exterior é significativamente maior do que de doutores homens. No entanto, o contexto brasileiro demonstra que as oportunidades são bastante distintas para aquelas e aqueles que carregam seus diplomas de doutorado internacionais.

Denuncia-se que “as mulheres são maioria entre os doutores brasileiros titulados no exterior em 2014 - mais de 60%, de acordo com estudo divulgado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).” Contudo, “as doutoras ainda estão em desvantagem em relação aos homens”, pois ganham, em média 16,5% a menos. Enquanto 71,4% dos doutores estão empregados, entre as doutoras, esse índice cai para 48,82%.[8]

Pensar, portanto, tais cenários como reproduções do machismo é – no mínimo – realizar-se de que essa forma de ver, pensar e exercer uma prática no mundo está colocada diante de todos os mais distintos espaços sociais. A violência material contra mulher no Brasil tem números alarmantes e se percebe que é de suma importância compreender que a nossa exclusão e silecionamento também são atos de violência – no caso, simbólica - que nos aprisiona nos marcos do espaço privado[9].

O exercício de abordagem da questão de emancipação feminina que aqui se propõe parte da ideia de despossessão[10], cuja reflexão permite traçar novos caminhos para os meios de pensar e realizar no contexto jurídico-acadêmico. Não deve ser compreendido como um olhar maniqueísta ou dicotômico pautados numa relação do bem contra o mal, homem contra mulher, enfim, oposições, mas sim como um ato político, como modo de “abrir o desejo para aquilo que me desfaz a partir da relação ao outro”[11].

Pensa-se, portanto, que a ocupação da academia e do espaço do direito através do diálogo com as mulheres e suas particularidades – formas de escrever, objetos de pesquisa e peculiaridades de leituras e demandas quanto o direito -, deve ser reconhecida acima de tudo como meio de atuação política emancipatória.

O feminismo e a emancipação da fala das mulheres como ato de resistência é, conforme afirma Butler, uma parte

crucial de estas redes de solidariedad y resistencia precisamente porque la critica feminista desestabiliza aquellasinstituciones que dependen de lareproducción de la desigualdade y lainjusticia y critica aquellasinstituciones y pácticcas que infligenviolenciaenlasmujeres y enlas minorias de género y, de hech, en todas las minorias sujetas al poder policial (aqui reconhecidas como também o espaço do judiciário) por mostrarse y hablar como lo que son.[12] 

Pensar o diálogo[13] como meio que impulsiona a construção acadêmica parece a lógica mínima do que significa ser pesquisadora ou pesquisador, estar engajada ou engajado com a crítica e, fundamentalmente, se propor a pensar um direito sério e comprometido com a realidade concreta, reconhecida pela materialização das condições humanas[14] como meio de resistência à violência. Conforme expõe Márcia Tiburi o diálogo “é um mecanismo, um organismo, uma metodologia ético-política. (…) Nesse sentido, o diálogo é aventura no desconhecido. Ato político real entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva.”[15]

Pensa-se, portanto, que o diálogo como ato político pode ser considerado como uma manifestação concreta dos sujeitos, uma forma de se construir a partir de suas próprias complexidades, numa busca incansável pelo conhecer teórico, mas principalmente a si e antes ao outro para num encontro efetivo com aquilo que se pode chamar de alteridade.

O diálogo que ora se propõe faz-se em oposição a exclusão das mulheres no espaço jurídico, o qual silencia suas pesquisas e suas formas de ver e pensar o direito. É diálogo como resistência, emancipação e repaginação da forma de se elaborar a academia brasileira consubstacialmente patriarcal.

2. Libertar-se dispensa permissões

Assim, pensar os cenários aqui apresentados exige uma reflexão a partir da ruptura com a forma de se produzir na academia, não como um chamamento ao crescimento dos índices da produção de mulheres nos periódicos jurídicos, mas sim, como meio político de desconstrução e resistência, através da demonstração de que o exercício cotidiano da violência é o marco central que se busca romper.

Abrir o diálogo e desmascarar as narrativas machistas, reivindicar que a mulher seja lida e ouvida a partir de si mesma, não como uma edição especial ou uma ficção à sua condição silenciada ou como cotas de minorias, mas como caminho possível de realizar uma nova forma de criar e pensar o direito é a luta constante, não de edições especiais ou de espaços apolíticos, mas dos marcos da resistência ao machismo nosso de todos os dias.

Portanto, ao desvelar comportamentos e falas machistas, o que se busca é desnudar as formas como o patriarcado se reproduz nas mais singelas manifestações, nas quais, na maioria das vezes, não se percebe como ato de violência. Como a eterna histérica, louca, bruxa ou pecadora, a mulher é recorrentemente silenciada quando fala de opressão ou quando se coloca como agente de sua própria história ou como agente político.

Assim, atentar-se às falas das mulheres é ouvir e dialogar com a hipótese de transformação de práticas, é refletir sobre aquilo que produzimos e reproduzimos sob a lógica da ausência de crítica. É, particularmente, abrir-se para um futuro de superação e subverter as formas hegemônicas de entender a humanidade. É, antes de tudo, posicionar-se como ato político de libertação e compreender que o que se diz ficção nada mais é do que a dura realidade de tantas mulheres.


Notas e Referências:

[1] PERRONE, Tatiane Santos; MENEGUETI, Vanessa. Cadê as mulheres? Uma análise da participação feminina no IBCCRIM. Disponível em http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5118-Cad-as-mulheres-Uma-anlise-da-participao-feminina-no-IBCCRIM. Acesso em 05 jan 2016.

[2] HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: cadernos pagu, n. 5, 1995.p. 3

[3] HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: cadernos pagu, n. 5, 1995.p. 1

[4] HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: cadernos pagu, n. 5, 1995.p. 11

[5]ADICHIE, ChimamandaNgozi. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 42.

[6] HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: cadernos pagu, n. 5, 1995.p. 27

[7] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

[8] TORKANIA, Mariana. Número de mulheres que fazem doutorado no exterior ultrapassa o de homens. Agência Brasil. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-03/numero-de-mulheres-que-fazem-doutorado-no-exterior-ultrapassa-o-de-homens/ Acesso em 01 abr 2016.

[9] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

[10] SAFATLE, Vladimir. Dos problemas de gênero a uma teoria da despossessão necessária: ética a política e reconhecimento em Judith Butler. In BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

[11] SAFATLE, Vladimir. Dos problemas de gênero a uma teoria da despossessão necessária: éticaa política e reconhecimento em Judith Butler. In BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 175

[12] BUTLER, Judith. Repensar lavulnerabilidad y la Resistencia. Conferencia enlaUniversidad de Alcalá, XV Simposio de laAsociación Internacional de Filósofas, 2014.

[13] TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Ed. Record: Rio de Janeiro; São Paulo, 2015.

[14] BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Autêntica Editora: Belo Horizonte, 2015. p. 134

[15] TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Ed. Record: Rio de Janeiro; São Paulo, 2015. p. 90

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Fernanda Martins. Fernanda Martins é Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora substituta na Universidade Federal de Santa Catarina e professora na Universidade do Vale do Itajaí. E-mail: fernanda.ma@gmail.com .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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