Já que o ano começa, verdadeiramente, depois do carnaval, quero brindar o novo período que inicia com velhos escritos, angústias vertidas em palavras para dar sentido ao inexplicável.
Criminalista é um ser que está condenado a colocar a alma na escrita ou não será. E como um texto é sempre um teste, dedico um primeiro velho escrito a quem se desnuda para ser sempre o “estranho ímpar” da advocacia (Drummond, rogai por nós):
“Todo o texto é um evento. Um texto é um teste. Texto é um tecido. Texto é teia. Texto é trama. Escrever um texto é expor-se, é desnudar alguma parte do corpo, encobrindo outra. O texto deixa para os olhos alguma intimidade, ao mesmo tempo em que esconde algo. O texto sempre mostra e oculta. O que o texto não mostra para os olhos, só é possível ver de olhos fechados. O autor do texto, pouca vez, consegue mostrar apenas e somente o que efetivamente queria mostrar. O texto, uma vez texto, não pertence a quem escreve. Como diria o carteiro para o poeta, o texto não é de quem escreve, mas de quem precisa dele. E quem precisa do texto, recebe-o de acordo com a sua necessidade, com a sua vontade, com o seu desejo de tomar e de ser tomado pelo texto. Texto é ânsia e coragem. Um texto não deve ser apenas escrito. Ele deve nascer. Deve ser parido com sofrimento e vontade. Um texto deve ser o produto de uma angústia, de uma desesperança, de uma mágoa profunda ou de uma intensa alegria. Um texto não deve ser o produto frio de uma mera declaração bem-comportada de boas intenções. Um texto deve ser um rasgo, um raio, um facho de luz e fogo que atravessa a picada e some mata adentro, deixando apenas o silêncio da descrença. Um texto é um terço. Um texto é uma febre. Um texto é um verbo: eu texto...”
Num momento em que o País vive tão intensas obscuridades em todos os setores, quando a palavra crise já não assusta os transeuntes deste nosso legítimo “estado de exceção” (Adorno, rogai por nós), saúdo o novo ciclo do calendário com minha verborreia gástrica, ácida, biliar, nem um pouco sedutora ou otimista (Bukowski, rogai por nós). Por isso, com carinho, aos delegados de polícia que abusam da sua autoridade e torturam presos (ou permitem); aos promotores e procuradores que abusam da sua autoridade e oferecem denúncias iniquamente caluniosas (com ou sem PowerPoint); aos juízes que decretam, abusivamente, prisões preventivas, conduções coercitivas e outras quimeras; aos advogados e defensores que compactuam silenciosamente com este estado absurdo de coisas, dedico este segundo velho escrito:
“Tolos com cara de inteligente, carentes com pinta de resolvidos, fáceis com ar de decididos, dóceis com postura de tiranos, manipuladores quase sempre manipulados, tarados que cedem o corpo à volúpia alheia, sedentos de uma sede sem compromisso, famintos do leite materno sonegado, andarilhos de um caminho sem final, guerreiros de batalhas já vencidas, bondosos interessados, terríveis amáveis, pais maternais, filhos ingratos, crianças de terno e chinelo… chorem a morte da indecência e a vitória da mesmice, a derrota da calamidade e a comemoração da virtude... não tarda ter fim essa terrível consagração dos miseráveis corretos, dos insípidos bem comportados, dos inodoros normais de todo o tipo... logo chegará o dia da insurreição, da revolta, da mudança, da morte das flores de plástico... neste dia, a pureza será sinônimo de indignidade, a falsa virtude do bom comportamento será o nome da covardia e a normalidade, esta velha máscara que esconde no escuro da noite os mais terríveis pensamentos e atitudes, ah a normalidade, ela será tratada como o sinal mais evidente da prepotência e do medo que habita o coração daqueles que, por não saberem quem são ou por saberem exatamente quem são, vivem encobertos por um padrão imaginário de aceitação indolor das inapagáveis diferenças quem marcam inexoravelmente a existência de todos e qualquer um... não tarda o dia da tolerância, quando percebereis que a diferença é que te iguala e que é a tentativa de igualdade que te descaracteriza! Era uma vez um mundo onde as pessoas se esforçavam ao máximo para que a verdade fosse a melhor explicação a respeito do que estava acontecendo. Um mundo onde uma meia verdade era uma inteira falta de caráter.”
Em tempos de intervenção militar nas cidades e nas redes sociais, quando um capitão imbecil convoca a manada a fazer um histórico retrocesso jurídico-institucional, quando a intolerância graça solta nas ruas e, na avenida, a escola de samba faz graça com patos e suas panelas, uma Carteira de Trabalho estuprada e um presidente-vampiro, lembrando que o “beijo é a véspera do escarro”, que “a mão que afaga é a mesma que apedreja” (Augusto, rogai por nós), dedico um terceiro velho escrito aos novos iluminados e seus pré-históricos luminares:
“A mentira gosta das almas covardes, como a prepotência é sempre um sinal dos fracos. Nem todo sorriso é sinal de alegria, como nem toda mão que treme é de um desesperado. Quem acha graça da desgraça alheia, não está feliz com sua própria graça, assim como nem sempre é triste quem chora diante da morte. O olhar parado da pessoa injustiçada, não é um sinal de concordância, como oferecer um cigarro, não é sinal de amizade. Um grito assustador, nem sempre vem de quem tem medo, como nem toda força pertence ao mais sábio. Quem revida com violência quase nunca está certo, assim como não há sanidade na dor do pai ou da mãe. As palavras não dizem a ternura, como o silêncio diz a força de quem está certo. Adoece quem acha que as coisas são mais importantes do que o caráter, assim como é lixo tudo o que mora no luxo da riqueza só de dinheiro. Toda mulher é uma constelação de força, mistérios, cores e sensibilidades, como todo homem é dotado da capacidade de rever seus erros e acreditar na força da tolerância. Toda forma de amor é justa. Não há verdades confessadas, como não há mentiras encobertas, porque sempre sabemos o que fazer, mesmo quando não queremos fazer. Quem acredita no amor transforma toda dor em coragem, toda queda em um gesto, toda agressão em sorriso, toda resistência em leveza, assim como, quem não acredita no amor, sempre sabe que, no fundo, está esperando alguém que acredite.”
Todo o começo de um tempo merece as palavras certas, aquelas que calem fundo, não porque calam, mas porque marcam. Que sejamos capazes de perceber toda nossa força, toda nossa potência, tanto quando devemos ser honestos com nossas fraquezas e misérias. Quem sabe um velho escrito de incentivo para quem não desvia do murro e pretende mais do que estar no mundo a respirar:
“Passos seguros sustentados em pernas fortes, mesmo diante de caminhos tortuosos, torturantes; a cabeça erguida sobre uma coluna vertebral que se não verga com o tempo ou com tropeços, mesmo diante da incessante decepção com a capacidade de desamor do ser demasiado humano; a respiração profunda, doutrinada por uma necessidade implacável de serenidade, mesmo diante de momentos tão tensos, difíceis, incertos; o olhar enxuto na direção do horizonte largo, mesmo diante de tanta nebulosidade, tanta escuridão, tanta insensatez; o braço firme do trabalho preparado para o murro, mesmo diante da intenção vigorosa do abraço, do carinho, do encontro. Em todas as manhãs, em todas as oportunidades em que o sol teimar em não respeitar as frestas, insistir em preencher todos os cantos, acordar há de ser a aceitação da nova oportunidade, há de ser a resposta ao chamado da vida que inunda, desrespeitosamente, o espaço antes repleto de escuridão. Caminhar de cabeça erguida, com a respiração profunda, o olhar enxuto e o braço firme, eis o desafio permanente de todos os que querem mais da vida, mesmo em dias ensolarados e leves de um feriado primaveril, quando viver pudesse parecer, simplesmente, ter que apenas respirar.”
Para encerrar, em nome de todos os advogados que honram sua biografia com um estado permanente de luta pelo direito de defesa (Sobral, rogai por nós), deixo um escrito de advertência, um aviso, uma nota, um grito de alerta:
“Tenha cuidado comigo, senhor pretenso poderoso, prepotente e arbitrário. Cuide-se, quando eu estiver por perto. Não vacile se souberes da minha proximidade. Senhor dono de cargos que pensa ser dono de pessoas, tenha muito cuidado comigo, muito mesmo, porque sou muito mais perigoso do que minha face serena demonstra. Senhor titulado e titular que pensa ser grande demais para olhar nos olhos molhados dos que sofrem, tenha muito cuidado comigo, caso eu esteja por perto. Dono de canetas e cadernetas que acham que muito podem – e até assassinam quando assinam (a sentença) – tenham sempre cuidado comigo. Muito cuidado comigo, senhores da toga mofada, da toga suja, da toga comprada, da toga amargurada. Cuidado comigo, senhores poderosos que delegam desmandos. Tenham cuidado comigo, porque sou advogado!”
Feliz ano bom para quem acredita, pois: “Quem acredita no que faz, faz o melhor e acreditando e fazendo o melhor, melhora o mundo ao seu redor; quem melhora o mundo ao seu redor por acreditar no que faz, faz o bem; e quem faz o bem por acreditar... é o melhor!”
Mais não digo.
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