Federalismo em (meio à) Crise: O arranjo político-institucional federativo no enfrentamento da COVID-19. Dissensões e pacificação pela Jurisdição Constitucional.

11/04/2021

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

O federalismo brasileiro tem sido continuamente desafiado pela pandemia da COVID-19. O grave quadro de crise sanitária e econômica que atinge o país exige dos governos dos três níveis federativos a adoção de medidas emergenciais severas, tanto para a contenção do avanço da doença quanto para a garantia das condições econômicas básicas de subsistência dos cidadãos. Nesse cenário, a autonomia política de Estados e Municípios surge como fator essencial à tomada de decisões estatais ágeis e eficazes para promover a higidez dos sistemas de saúde e, ao mesmo tempo, a continuidade de serviços públicos essenciais e do livre exercício das atividades econômicas. Além disso, Estados e Municípios têm protagonizado o combate à pandemia em diversas esferas, desde a condução de indispensáveis políticas de controle epidemiológico, até o desenvolvimento de programas de produção vacinas e de assistência social[1] próprios.

Logo no início da crise epidêmica no país, o Supremo Tribunal Federal afirmou as competências legislativas e administrativas de Estados e Municípios para dispor sobre medidas de enfrentamento. À luz do que preconizam os arts. 23, II e IX, e 24, XII, da CF/1988, a Suprema Corte interpretou a legislação federal editada sobre a matéria (Lei n. 13.979/2020) como norma geral, a ser concretizada e complementada por medidas administrativas (no exercício de competências comuns) e normativas (no exercício de competências concorrentes) a cargo dos entes estaduais e municipais.

Sob o manto do federalismo cooperativo, estabeleceu a Suprema Corte diretrizes visando a afastar conflitos decisórios entre entes políticos em seus respectivos campos de atuação. Dos fundamentos adotados no acórdão proferido na ADPF 672[2], é possível extrair as seguintes diretrizes de interação federativa no enfrentamento da pandemia, definidas no voto condutor proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes:

1. No âmbito da discricionariedade técnica dos órgãos estaduais e municipais competentes em matéria de saúde pública, revela-se inconstitucional “qualquer iniciativa do Poder Executivo federal que vise a desautorizar medidas sanitárias adotadas pelos Estados e Municípios com o propósito de intensificar ou ajustar o nível de proteção sanitária e epidemiológica nos âmbitos respectivos”;

2. Não obstante, “não ficam os Estados e Municípios liberados a adotar quaisquer medidas, independentemente da observância dos padrões gerais normatizados pela União ou do encargo de fundamentar técnica e cientificamente a necessidade e adequação das mesmas”. Nesse sentido, “a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente”.

3. “A competência dos Estados e Municípios nessa matéria não desonera a União do múnus de atuar como ente central no planejamento e coordenação de ações integradas de saúde pública, em especial de segurança sanitária e epidemiológica no enfrentamento à pandemia da COVID-19, inclusive no tocante ao financiamento e apoio logístico aos órgãos regionais e locais de saúde pública”.

Em face das premissas acima estabelecidas, é possível perceber o amplo poder conferido pelo Supremo Tribunal Federal a Estados e Municípios para garantir a proteção da saúde pública nos níveis regional e local, visando ao alcance de um padrão de conduta estatal técnica que concretize medidas efetivas de controle epidemiológico. Assim, é possível defender com base nas conclusões do julgado que, diante de dúvidas acerca da competência para dispor sobre determinada medida nesse campo, deve prevalecer aquela que estabeleça um maior padrão de segurança à saúde da população segundo o que estabelecem os protocolos técnico-científicos em matéria de saúde pública.

Com fundamento nessas mesmas premissas, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela parcial procedência do pedido cautelar formulado na ADI 6341, de modo a preservar a atribuição de cada uma das esferas de governo na definição dos serviços públicos e atividades essenciais a serem mantidos quando da adoção de medidas restritivas de combate a pandemia. Em robusto voto, o Min. Edson Fachin, redator para o acórdão, ponderou que “mais relevante do que saber quem é o ente competente para lidar com a emergência sanitária é saber como União, Estados e Municípios devem agir”.

 

Um dos fundamentos centrais do voto condutor do acórdão proferido na referida ADI 6341 consiste na adoção do princípio da presunção contra preempção (presumption against preemption), relevante critério de preservação das competências federativas de Estados e Municípios em face de competências federais. O princípio em questão, desenvolvido pela jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, foi incorporado pelo Supremo Tribunal Federal em seus julgados[3] e, nessa ação direta em particular, foi utilizado como meio empoderamento dos Estados e Municípios para propor medidas legislativas diante de eventual inação – ou ação insuficiente - do Governo Federal em estabelecer políticas públicas eficazes à concretização dos direitos fundamentais frente ao grave quadro de crise epidêmica instalado.

Confira-se a fundamentação adotada pelo Min. Fachin em que aplica o princípio da presunção contra preempção ao caso, realçando a necessidade de se resguardar medidas estaduais e municipais voltadas à consecução da própria finalidade do Estado (latu sensu), qual seja, a proteção e concretização dos direitos fundamentais:

“A posição do Supremo Tribunal Federal deve ser, assim, a de exigir o cumprimento integral das obrigações do Estado: obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos fundamentais. Deve também, desde que não haja violação material à Constituição, abster-se de declarar a nulidade de leis estaduais e locais apenas por ofensa à competência dos demais entes. A União exerce sua prerrogativa de afastar a competência dos demais entes sempre que, de forma nítida, veicule, quer por lei geral (art. 24, § 1º, da CRFB), quer por lei complementar (art. 23, par. único, da CRFB), norma que organiza a cooperação federativa. Dito de outro modo, na organização das competências federativas, a União exerce a preempção em relação às atribuições dos demais entes e, no silêncio da legislação federal, têm Estados e Municípios a presunção contra essa preempção, a denominada “presumption against preemption” do direito norte-americano. Essa forma de entender o papel do Supremo Tribunal Federal promove uma deferência com as escolhas políticas do Poder Legislativo. O Congresso Nacional poderá, se assim o entender, regular, de forma harmonizada e nacional, determinado tema ou política pública. No entanto, no seu silêncio, não se pode tolher o exercício das competências dos demais entes na promoção de direitos fundamentais”.

Embora a aplicação do princípio da presunção contra preempção (presumption against preemption) possa eventualmente fortalecer uma visão unitária de Estado, ao ceder diante de disposições claras de lei federal em matéria de políticas nacionais (clear statement rule), tem o Supremo Tribunal Federal, em determinados julgados, se valido desse princípio como instrumento de proteção das competências constitucionais de Estados e Municípios. E isso sobretudo no que concerne às competências comuns e concorrentes, como é o caso da saúde pública.

Nesse ponto, releva também destacar a premissa estabelecida no voto do Ministro Luiz Fux, no sentido de que garantia das competências de Estados e Municípios no enfrentamento da pandemia possui amplo respaldo no princípio constitucional da vedação da proteção insuficiente aos direitos fundamentais. Assim, no entendimento do Ministro Fux, “em caso de ausência de norma federal suficientemente protetiva à saúde, há espaço para atuação legislativa dos demais entes. Sob esse enfoque, eventual norma estadual ou municipal ao instituir medidas mais protetivas à saúde do que a legislação federal sobre o tema, poderiam cumprir melhor as normas constitucionais”. A legitimidade constitucional dessas medidas, de acordo com esse entendimento, deve ser aferida com base no princípio da proporcionalidade, seguindo critérios técnico-científicos[4], na mesma linha de defendida no voto condutor do Ministro Alexandre de Moraes na ADPF 672.

Seguindo essa lógica de proteção da autonomia federativa, interpretou o Supremo Tribunal Federal as disposições da Lei n. 13.979/2020 a partir de uma visão sistêmica da Lei Geral do Sistema Único de Saúde - SUS (Lei n. 8.080/1990), de modo a inseri-las no âmbito de competência da União para editar normas gerais sobre vigilância epidemiológica. Não obstante, ao situar a controvérsia no regime jurídico do SUS, reforçou a ideia de deferência às medidas regionais e locais de combate à pandemia, notadamente em razão do comando constitucional de descentralização dos serviços de saúde no país.

Essa descentralização de poderes em matéria de saúde pública conduz à profusão de instrumentos normativos nos diversos níveis federativos, o que, na visão do próprio Supremo Tribunal Federal[5] nesse julgado, ao invés de dificultar as ações governamentais em razão da pulverização de medidas administrativas, possibilita o surgimento de um ambiente virtuoso para a criação de programas municipais e estaduais de saúde que, posteriormente, podem ser encampados por outros entes ou até mesmo pela política nacional do SUS. Sob essa ótica, o sistema federalista pode ser visto como um verdadeiro “laboratório da democracia”, expressão do juiz da Suprema Corte americana Louis Brandeis recordada pelo Ministro Edson Fachin no voto condutor da ADI 6341-MC.

Em recente obra doutrinária que trata do tema, Abhner Youssif Mota Arabi defende que a força criativa que se observa nas ações de Estados e Municípios, emanada da proximidade das gestões locais e regionais dos problemas vivenciados na implementação de políticas públicas, ampara a adoção de perspectivas descentralizadoras no federalismo brasileiro. Argumenta o autor que a centralização de competências em um só ente poderia conduzir à perda da valiosa “oportunidade de incentivar iniciativas locais que poderiam ser úteis não só a problemas decorrentes das peculiaridades regionais (já que não se pode conferir tratamento igual a problemas e realidades diferentes), mas que também poderiam funcionar como verdadeiros laboratórios democrático-institucionais de soluções possivelmente servíveis aos problemas nacionais[6].

De fato, as medidas adotadas pelos governos estaduais e municipais são as que têm efetivamente conduzido a política pública de controle epidemiológico da COVID-19 no país. Em que pese o triste cenário de crescimento do número de mortes pela doença no Brasil, o arcabouço normativo criado por Estados e Municípios contribui de forma decisiva para disciplinar a resposta estatal ao alastramento da pandemia no território nacional. Tais disposições normativas, veiculadas sobretudo por decretos de governadores e prefeitos, alcançam diversas esferas da ação governamental, desde o estabelecimento de indispensáveis medidas preventivas de isolamento social e quarentena, até a adoção de medidas de urgência, como requisições administrativas de equipamentos médicos e de leitos de UTI privados em situações de superlotação de internações na rede pública[7].

Por meio da atuação de comitês institucionais de contingência, integrados por agentes públicos e da comunidade científica, Estados da federação desenvolveram planos de gestão da crise sanitária em seus territórios, definindo critérios técnicos para ações de controle epidemiológico e, notadamente, parâmetros para a orientação dos Municípios e da população quanto às medidas sanitárias a serem implementadas em cada momento específico da pandemia, a depender do grau de contágio e de internações em razão da doença.

Embora muitas dessas iniciativas estaduais e locais tenham sido censuradas expressamente por parte do Governo Federal[8], a estrutura federalista de competências compartilhadas em matéria de saúde pública tem permitido a execução e cumprimento das decisões estaduais e municipais de controle epidemiológico, amparadas nos arts. 23, II e IX, e 24, XII, da CF/1988 e afirmadas expressamente pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das referidas ações constitucionais.

Esse caráter fomentador do aprimoramento de políticas nacionais por meio do “experimentalismo” de medidas legislativas regionais e estaduais também se verifica no campo das ações administrativas de Estados e Municípios, ainda que estas sejam adotadas na concretização de leis federais ou implementação de programas da União. Heather Gerke[9], docente da Universidade de Yale, analisa esse aspecto em percuciente artigo sobre a relevância do sistema federativo norte-americano para o alcance dos objetivos de políticas nacionais daquele país. Especificamente no que concerne ao significativo papel que possuem as dissensões entre governos estaduais e governo federal no melhor desenvolvimento de políticas públicas nacionais, descreve a autora as seguintes percepções:

“Porque estados e municipalidades desempenham uma função crucial na implementação administrativa das leis federais, o federalismo torna dissidentes em tomadores de decisão, não apenas executores ou requerentes. Eles podem auxiliar na implementação das políticas públicas, ao invés de simplesmente se lamentarem destas. Melhor ainda, argumentos divergentes serão baseados em conhecimento detalhado da realidade, dos casos concretos, e serão lançados sobre os alicerces da expertise e da experiência compartilhadas. (...) O Federalismo competitivo (não-cooperativo) não é apenas uma solução teórica para este problema. É uma solução prática. E é uma solução que serve precisamente à finalidade nacionalista de aprimoramento das políticas públicas federais”[10].

Desse conjunto de ideias, é possível extrair interessantes aspetos que permitem otimizar o diagnóstico da situação federativa vivenciada pelo Brasil no enfrentamento da COVID-19. Dentre eles, destacam-se a função essencial que desempenham Estados e Municípios na implementação de políticas nacionais; a relevância da existência de tomadores de decisão nos níveis regional e local, os quais, inclusive, ao possuírem autonomia decisória e se oporem às decisões federais, permitem o desenvolvimento de novos cursos de ação administrativa amparados em toda a experiência e expertise de quem está próximo às necessidades da população e às entraves na concretização de políticas públicas.

O programa de produção de vacina contra a COVID-19 desenvolvido pelo Instituto Butantan, entidade da Administração Pública do Estado de São Paulo, representa um interessante exemplo de como as iniciativas estaduais contribuem efetivamente para o aprimoramento de políticas nacionais em matéria de saúde pública. Mesmo diante de dissensões com o Governo Federal, esfera de poder responsável por coordenar o Programa Nacional de Vacinação (art. 3º da Lei n. 6.259/75), o programa estadual em questão foi conduzido pelo Estado de São Paulo, por meio de acordo entre institutos estaduais (Fapesp e Instituto Butantan) e empresa estrangeira (Sinovac), até a obtenção de vacina contra a COVID-19, a qual, posteriormente, foi aprovada pela Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) e incluída no Programa Nacional de Vacinação, sendo adquirida pela União e distribuída a todos os entes federativos.

Ainda na esfera de iniciativas administrativas estaduais, mostra-se de grande relevância a atuação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) na divulgação de informações atualizadas à população sobre a evolução da COVID-19 nos âmbitos nacional, regional e local. Na ausência de divulgação de dados oficiais pelo Ministério da Saúde, o Painel CONASS COVID-19 (sistema de informações disponibilizado pelo Conselho) consolida diariamente informações apresentadas por cada uma das Secretarias de Saúde dos Estados, demonstrando a importância de iniciativas federativas na transparência da gestão das políticas públicas de saúde.

Não há dúvidas de que, diante do grave cenário sanitário instalado, a tempestiva difusão de informações detalhadas acerca do avanço da doença no país se revela como instrumento essencial não só à ampla divulgação da gestão dos serviços de saúde, mas precipuamente para fins de convencimento da população à adesão das medidas de controle nos momentos mais críticos da pandemia.

As mencionadas políticas de gestão da crise epidemiológica elucidam o posicionamento de Heather Gerken e de Abhner Youssif acima expostos, pois revelam como a repartição de competências e poderes nos distintos níveis da federação é capaz de promover um ambiente de inovação que, mesmo em meio às dissensões entre esferas de governo, gera, ao fim, ações administrativas regionais e locais bem-sucedidas, que culminam no aprimoramento de políticas públicas nacionais.

Em orientação que também fortalece o federalismo em matéria de saúde, o voto condutor da medida cautelar na ADI 6341 firmou o entendimento de que a diretriz de hierarquização do Sistema Único de Saúde, previsto pelo art. 198 caput da CF/1988, não se confunde com a ideia de hierarquia entre entes federados, mas a existência de um comando único no âmbito de cada um desses entes.

Dentro da esfera de comando de cada nível de governo, elencou o Ministro Fachin em seu voto as atribuições que cabem a cada um dos entes no que tange à vigilância epidemiológica:

“À direção nacional do Sistema Único de Saúde compete definir e coordenar os sistemas de vigilância epidemiológica e coordenar e participar das ações na referida área. Ainda de acordo com a Lei, “a União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional” (art. 16, parágrafo único da Lei 8.080, de 1990). Aos Estados, por sua vez, cabe a coordenação, em caráter complementar, da execução de ações e de serviços de vigilância epidemiológica e, aos Municípios, a execução dos serviços propriamente ditos”.

Nesse campo, emergem desafios envolvendo conflitos acerca de medidas adotadas em diferentes níveis federativos. Embora haja a diretriz de municipalização dos serviços de vigilância epidemiológica, é possível observar crescentes divergências entre planos estaduais e municipais na gestão da crise sanitária. Tais divergências têm sido constantemente judicializadas[11], deslocando o locus decisório dessas questões para o âmbito judicial, em nítido desgaste político-institucional entre entres federativos que adotem medidas diversas entre si.

De igual modo, conflitos federativos evidenciaram-se também quando da adoção descoordenada de ações administrativas envolvendo insumos disponíveis ao combate à pandemia. Em reiteradas ocasiões, o Ministério da Saúde editou ordens de requisição administrativa de equipamentos e insumos médicos, afetando diretamente o planejamento e as ações emergenciais dos Estados na gestão da crise sanitária em seus territórios.

Novamente foi decisiva a atuação do Supremo Tribunal Federal para solução desses conflitos entre Estados e União. Em demandas judiciais ajuizadas pelos Estados perante a Suprema Corte, consolidou-se o entendimento de que a requisição administrativa não pode alcançar bens e serviços de entes federados, sobretudo quando diretamente empregados na satisfação de interesses públicos[12].

Os conflitos federativos deflagrados entre as distintas esferas de governo no tratamento da pandemia da COVID-19 demonstram a premente necessidade de se instituir diretrizes governamentais sólidas para que os problemas surgidos na implementação das políticas de controle epidemiológico sejam geridos de forma racional e eficiente, sobretudo diante de um quadro de escassez mundial de insumos para o enfrentamento da pandemia.

Com efeito, a coordenação das ações do SUS nos distintos níveis de governo se mostra relevante para que não haja a sobreposição ou, o que é ainda mais grave, vácuo de comando em ações estratégicas e emergenciais em matéria de saúde pública. Embora cada ente federado tenha poderes e competências envolvendo a gestão de serviços de saúde em sua respectiva esfera governamental, o aprimoramento político-institucional do modelo de gestão compartilhada do SUS é essencial para que, em situações calamitosas como a ora vivenciada, não haja prejuízos irreparáveis à saúde da população[13].

Para além de eventuais divergências políticas, a atuação dos entes federados no controle epidemiológico deve ser conduzida por um modelo institucional de ação, no qual cada ente federado exerce suas competências de modo a otimizar a proteção ao direito fundamental à saúde, valendo-se dos recursos e aptidões que lhes são próprios.

A questão envolvendo a habilitação de leitos de UTI nos Estados e Municípios é capaz de demonstrar a importância da coordenação de esforços nos três níveis federativos para que seja efetivamente assegurado o direito à saúde. A matéria também foi levada pelos Estados à apreciação do Supremo Tribunal Federal[14]. Defendem os Estados que a disponibilidade da infraestrutura hospitalar necessária para atender à crescente demanda por internações em regime intensivo deve ser assegurada por todos os entes federados, segundo a esfera própria de atuação de cada um deles. À União, que possui maior capacidade econômica e de endividamento, cabe prestar auxílio financeiro aos sistemas de saúde estaduais e municipais a fim de que haja os recursos necessários à habilitação de leitos em quantidade adequada ao atendimento da demanda. Aos Estados e aos Municípios, entes responsáveis por gerir a quase totalidade da rede hospitalar pública, cabe a promoção das medidas administrativas necessárias a fim de que a estrutura instalada de UTIs seja capaz de suportar a grave situação emergencial vivenciada.

O Supremo Tribunal Federal, na qualidade de Tribunal da Federação, tem lançado sólidos fundamentos para o aprimoramento das relações federativas em matéria de saúde pública. De forma ampla, a Corte Suprema buscou definir a esfera de ação de cada ente federado, de modo a evitar que conflitos como os aqui mencionados afetem a necessária e premente ação estatal de controle epidemiológico. Não obstante, para além da demarcação de competências, a efetiva proteção da saúde da população em meio à crise pandêmica somente pode ser alcançada por uma real e compromissada cooperação federativa.

Ao considerarmos a não linear e diastólica formação do federalismo no Brasil, os aprendizados decorrentes deste árduo e desafiador momento histórico, que põe à prova as instituições brasileiras, poderão fazer surgir uma nova organização federalista no país, com maior autonomia de Estados e Municípios. O resultado dessa progressiva (ainda que lenta) descentralização político-administrativa, como temos visto na pandemia, tenderá a um aprimoramento da gestão pública. Para tanto, será necessário cada vez mais fortalecer os instrumentos de cooperação federativa, não só em matéria de saúde pública, mas em tantas outras áreas que exigem a ação concertada dos entes da federação para a mais ampla satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos anseios da sociedade por melhores serviços públicos.

 

Notas e Referências

[1] https://www.jota.info/jotinhas/estados-e-capitais-pagam-diferentes-beneficios-emergenciais-durante-pandemia-03032021

[2] ADPF 672 MC-Ref, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-260  DIVULG 28-10-2020  PUBLIC 29-10-2020

[3] Vide: ADI 3110, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 04/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-143  DIVULG 09-06-2020  PUBLIC 10-06-2020; e RE 194704, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-261  DIVULG 16-11-2017  PUBLIC 17-11-2017

[4] Nas palavras do Ministro Fux, “são as evidências científicas que representam importantes balizas a nortear a postura técnica e diferenciá-la de capturas políticas, sobretudo no que se pode considerar proteção insuficiente”.

[5] Nesse sentido, destaquem-se os votos dos Ministros Edson Fachin e Luiz Fux na ADI 6341-MC.

[6] ARABI, Abhner Youssif Mota. Federalismo Brasileiro. Perspectivas Descentralizadoras. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 115.

[7] A exemplo dos Decretos 40962/2020 do Governador do Distrito Federal e 43.360/2021 do Governador do Estado do Amazonas.

[8] No ponto, vale citar a ADI 6764 ajuizada pelo Presidente da República contra ações de governos estaduais de combate à pandemia, em que se alega a reserva de lei para dispor sobre medidas sanitárias restritivas e que eventuais restrições do direito de locomoção dos cidadãos, nos casos de estado de defesa e de estado de sítio, são prerrogativas do Executivo federal, com chancela do Congresso Nacional.

[9] GERKE, Heather. Federalism as the New Nationalism. The Yale Law Journal, 123:1889, 2014, p. 1903.

[10] Tradução livre de “Because states and localities play a crucial role in administering federal law, federalism turns dissenters into decisionmakers, not just lobbyists or supplicants. They can help set policy rather than merely complain about it. Better yet, dissenters' arguments will be based on detailed knowledge of on-the-ground facts and will be cast in the vernacular of shared expertise and experience (...) Uncooperative federalism" isn't just a theoretical solution to this problem; it's a solution that's working in practice. And it's one that serves the distinctively nationalist end of improving federal policymaking”.

[11] Nesse sentido, confira-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que acolheu pedido do Procurador Geral de Justiça para manter o Município de Bauru na fase vermelha do Plano São Paulo: http://www.mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_docname=2677860.PDF

[12] Vide: ACO 3463 (Estado de São Paulo), ACO 3393 (Estado do Mato Grosso) e ACO 3385 (Estado do Maranhão).

[13] A recente situação de calamidade pública ocorrida no Estado do Amazonas em razão do colapso do sistema de saúde estadual é um triste exemplo de como a descoordenação de ações entre os entes federados no âmbito do SUS afeta diretamente os direitos fundamentais dos cidadãos.

[14] Vide ACO 3473 (Maranhão); ACO 3474 (Estado de São Paulo); ACO 3475 (Estado da Bahia); e ACO 3478 (Estado do Piauí).

 

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