“Complexo de vira-lata” é expressão de Nelson Rodrigues nascida do sentimento que teria tomado conta da brasilidade em 1950, após a derrota do Brasil para o Uruguai, no Maracanã, em partida que disputava a copa mundial de futebol.
Suponho que a importância que o brasileiro dava e ainda dá ao futebol fez com que sentíssemos o resultado do jogo como uma desonra. Vencidos que estávamos no que nos atribuíamos de melhor, não valíamos mais nada.
A expressão é desse tempo, mas no conjunto de elementos formadores da nossa baixa apreciação por nós mesmos jazem “teorias” racistas bem anteriores. Seríamos ruins porque descendentes de portugueses, índios e escravos.
Ainda se ouve que “com essa origem, não poderíamos ter dado noutra coisa”. Talvez os primeiros intelectuais brasileiros que pensaram criticamente a questão e a denunciaram foram Manuel Bomfim e Edgar Roquette-Pinto.
Bomfim, cuja obra foi criteriosamente afastada de vistas, dizia que o miscigenado povo brasileiro não era inferior, mas inferiorizado. Roquette-Pinto, já com mais repercussão, afirmava que nossa inferioridade era um problema de ignorância.
Entender miscigenação como inferioridade é entender coisa nenhuma de genética. É ignorância. E ignorância, no sentido que Roquette-Pinto denuncia, é mesmo um mal que nos assola, ainda que não seja politicamente correto dizê-lo.
Senão, veja-se: “Após filas, vacina da febre amarela já não atrai – Um mês atrás, as pessoas dormiam em filas e disputavam a tapas a vacina contra a febre amarela nos postos de São Paulo. Agora, há unidades às moscas.
A campanha vacinal contra a febre amarela (em São Paulo e no Rio de Janeiro) não conseguiu atingir nem 20% do total de 20 milhões que deveriam ser imunizados, apesar de a situação epidemiológica não haver melhorado.
Entre as hipóteses para explicar a baixa adesão: Carnaval, medo dos efeitos adversos da vacina e uma eventual descrença em relação à dose fracionada (apesar dos estudos atestarem a mesma eficácia da dose integral).
Na zona norte de São Paulo, a Prefeitura adotou medidas para localizar moradores que ainda não foram imunizados, percorrendo bairros e distribuindo senhas para atendimento em postos. Mesmo assim, muitos não aparecem.
Entender esse comportamento arredio e repensar as estratégias de como atingir essas pessoas é uma tarefa da saúde pública que não pode mais ser postergada” (Cláudia Collucci, FSP, 20fev18, https://goo.gl/yRfpaM, editado).
Pelo todo da notícia, a “saúde pública” faz o que pode e mais talvez não deva. Nossos diversos aspectos culturais formam uma resultante complexa e nossos conteúdos contemplam demais autoritarismo e ignorância: uma bomba.
Relativamente à ignorância, vários índices nacionais e internacionais nos apontam a nossa triste situação. Privilegiar carnaval sobre saúde, descrer da ciência, agir somente sob o impacto da emergência; somos nós.
Quanto ao autoritarismo, apesar do mais de século que permeia o antecedente, já temos uma Revolta da Vacina. Tempos de higienismo, recusa geral à vacinação para erradicar a varíola; desmediu-se o governo, revoltou-se o povo.
A população não aceitava a vacinação; o Congresso, convencido pelo sanitarista Oswaldo Cruz, aprovou, em 1904, a Lei da Vacina Obrigatória. Brigadas sanitárias guarnecidas entravam nas casas e aplicavam a vacina à força.
A imprensa antagônica exagerou críticas e alardeou perigos; propagaram-se boatos de que as mulheres teriam que se despir para serem vacinadas, provocando ira e reação. O Rio de Janeiro testemunhou violenta rebelião geral.
A oposição (temos um histórico de oportunismo populista e demagógico) criou a Liga Contra a Vacina Obrigatória. A cidade entrou em guerra: barricadas, depredação, trilhos arrancados, bondes incendiados, ataques à polícia.
A reação popular alastrou-se e alcançou a Escola Militar da Praia Vermelha, cujos alunos se sublevaram. A obrigatoriedade da vacina foi suspensa, mas foi decretado estado de sítio. Houve mortos, feridos, banidos e muitos presos.
O governo logo reassumiu o controle da situação e se reiniciaram os trabalhos de vacinação; a varíola foi erradicada da capital. Não obstante Oswaldo Cruz dar nome a logradouros, até hoje se polemiza a atuação das autoridades.
A febre amarela faz estragos, causa mortes. Não somos tão ignorantes como éramos, mas ainda suspeitamos da ciência (e de vacina). Ah, o carnaval! A Revolta aconteceu num novembro; se fosse carnaval teria ficado para depois.
Imagem Ilustrativa do Post: Combate ao mosquito Aedes Agypti // Foto de: Divulgação/Fotografia cnj // Sem alterações
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