Fale-me mais sobre... - Por Fernanda Mambrini Rudolfo

03/12/2017

O direito ao silêncio é constitucionalmente assegurado (artigo 5º, LXIII). Por conseguinte, não se pode obrigar qualquer pessoa a depor a respeito de fatos sobre os quais esteja sendo investigada ou processada. 

Nesse sentido, destaca-se: 

O acusado/investigado não pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo e o silêncio, total ou parcial, é uma das facetas do nemo tenetur se detegere. O interrogatório, tanto na fase de investigação preliminar, como em Juízo, é o meio pelo qual o investigado/acusado pelo – ato voluntário – se defender diretamente, sempre na presença e anterior entrevista com seu defensor, sob pena de nulidade (15.7). [...]

Como o acusado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo (14.3), possui o direito ao silêncio (autodefesa negativa), sendo que o exercício do direito não pode gerar presunções negativas, razão pela qual o art. 198, do CPP, não foi recepcionado [...][1] 

No entanto, embora se reconheça que em interrogatórios conduzidos por autoridades policiais ou judiciais o direito ao silêncio seja alertado ao imputado, é muito frequente que os policiais que realizam a prisão – seja em flagrante delito, seja em cumprimento de mandado – promovam uma espécie de interrogatório informal. Aliás, de acordo com o que expõem em muitos depoimentos, essa é uma orientação dos seus superiores hierárquicos, no sentido de tentar colher informações do conduzido. Isso é absolutamente ilegal! A não ser que lhe seja devidamente cientificado o direito constitucional ao silêncio, qualquer tentativa de extrair informações é uma violação de direitos, e aquilo que for obtido não pode ser utilizado em seu desfavor no processo, evidentemente. 

É frequente, por exemplo, que um investigado exerça seu direito de permanecer em silêncio perante a autoridade policial, mas que policiais relatem que, informalmente (ora, se foi informal, que validade teria, se a forma é justamente a garantia do processo penal?), lhes teria sido dito que o fato ocorreu de tal forma. O imputado pôde, efetivamente, valer-se do seu direito ao silêncio, o qual escolheu formalmente quando lhe foi oportunizada a decisão? Claro que não! 

Não é incomum que sejam, ainda, confeccionados vídeos desses interrogatórios que se denominam sub-reptícios. Tais vídeos são juntados aos autos e utilizados como se fossem provas, com o mesmo valor de um interrogatório realizado perante a autoridade judicial, acompanhado de um defensor e devidamente alertado quanto ao seu direito ao silêncio. Ora, não se pode sequer imaginar tal absurdo!!! Em plenários do Tribunal do Júri, mostram-se esses vídeos aos jurados como se fossem as bruxas na inquisição. Não se consegue vislumbrar que isso persista em um estado que se diz Democrático de Direito!!! 

A respeito da obrigatoriedade de se cientificar o acusado/investigado de que está sendo interrogado e tem o direito a permanecer em silêncio, cumpre destacar: 

O conduzido deve ser necessariamente advertido do direito ao silêncio. [...] Em Miranda vs. Arizona, de 1966, reconheceu-se que o interrogatório efetuado pela polícia com suspeito sob custódia é presumidamente ilegítimo, cabendo ao Estado demonstrar que os direitos constitucionais foram devidamente efetivados. Inverte-se a lógica própria dos atos administrativos, em geral com presunção de legitimidade e veracidade, já que a crença do senso comum teórico na ‘legitimidade’ dos atos policiais é incompatível com a lógica da prevalência de liberdades.

[...]

Decorrência do devido processo legal substancial (8.1), a ausência de advertência expressa, nos termos da Constituição (CR, art. 5º, LXII e LXIV), impede que o conduzido seja indagado sobre o conteúdo da prisão antes de formalizada a advertência, sob pena de nulidade de seu conteúdo. A efetivação da garantia no momento da prisão é carga probatória do Estado e não se pressupõe, sendo que a falta causa nulidade. As declarações não precedidas de advertências deveriam ser consideradas inservíveis para qualquer fim, embora seja prática comum de atuação da força policial. As famosas confissões informais, efetivadas no momento da prisão e sem a expressa advertência ao silêncio são um nada jurídico, embora manipuladas pelo efeito silencioso de não usar a motivação, mas se convencer pessoalmente, de modo a sustentar a consonância cognitiva (5.7.4). [...][2] 

Pode-se, pois, concluir, que a confissão informal, obtida sub-repticiamente, antes do indispensável aviso de Miranda (ou seja, antes do dever constitucional dos agentes estatais – em regra, policiais – de informar ao detido que ele tem o direito de permanecer em silêncio) constitui prova ilícita e, portanto, inutilizável. Fere tanto a garantia convencional à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), consagrada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH, artigo 8º, 2, g), quanto a garantia constitucional ao silêncio (CRFB/88, artigo 5º, LXIII) e, ademais, ao devido processo legal (CRFB/88, artigo 5º, LIV). Fere, ainda, o disposto no artigo 6º c/c artigo 186 do Código de Processo Penal. 

A respeito do que a jurisprudência também já denominou interrogatório sub-reptício, convém destacar a decisão proferida pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus 244.977, de Santa Catarina (Relator Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 25/09/2012). Transcreve-se a ementa do acórdão em análise: 

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. INVESTIGAÇÃO POLICIAL. EXERCÍCIO DO DIREITO DE PERMANECER CALADO MANIFESTADO EXPRESSAMENTE PELO INDICIADO (ART. 5º, LXIII, DA CF). GRAVAÇÃO DA CONVERSA INFORMAL REALIZADA PELOS POLICIAIS QUE EFETUARAM A PRISÃO EM FLAGRANTE. ELEMENTO DE INFORMAÇÃO CONSIDERADO ILÍCITO. VULNERAÇÃO DE DIREITO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADO. INAPLICABILIDADE DO ENTENDIMENTO NO SENTIDO DA LICITUDE DA PROVA COLETADA QUANDO UM DOS INTERLOCUTORES TEM CIÊNCIA DA GRAVAÇÃO DO DIÁLOGO. SITUAÇÃO DIVERSA. DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO QUE DEVE PREVALECER SOBRE O DEVER-PODER DO ESTADO DE REALIZAR A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.

1. Segundo o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

2. Apesar de ter sido formalmente consignado no auto de prisão em flagrante que o indiciado exerceu o direito de permanecer calado, existe, nos autos da ação penal, gravação realizada entre ele e os policiais que efetuaram sua prisão, momento em que não foi informado da existência desse direito, assegurado na Constituição Federal.

3. As instâncias ordinárias insistiram na manutenção do elemento de prova nos autos, utilizando, de forma equivocada, precedente do Supremo Tribunal Federal no sentido de que não é considerada ilícita a gravação do diálogo quando um dos interlocutores tem ciência da gravação.

4. Tal entendimento não se coaduna com a situação dos autos, uma vez que – além de a gravação estar sendo utilizada para sustentar uma acusação – no caso do precedente citado estava em ponderação o sigilo das comunicações, enquanto no caso em questão está em questão o direito constitucional de o acusado permanecer calado, não se autoincriminar ou não produzir prova contra si mesmo.

5. Admitir tal elemento de prova nos autos redundaria em permitir um falso exercício de um direito constitucionalmente assegurado, situação inconcebível em um Estado Democrático de Direito.

6. Ordem concedida para determinar o desentranhamento da mídia que contém a gravação do diálogo ocorrido entre o paciente e os policiais que efetuaram sua prisão da ação penal instaurada contra ele, pelo crime de tráfico de drogas, na Vara Criminal da comarca de Laguna/SC. (grifou-se) 

Não se pode presumir a legalidade ou a veracidade da fala de um imputado quando questionado por agentes estatais, mormente quando logo após a ocorrência dos fatos ou o cumprimento de um mandado de prisão. Não se pode simplesmente imaginar que alguém a quem não é sequer proporcionado o direito à autodefesa negativa tenha liberdade para decidir quando e o que falar. 

No julgamento do caso acima mencionado, manifestou-se o Subprocurador-Geral da República da seguinte forma: 

[...] A atividade de investigar crimes não pode ferir disposições legais, ou, o que é mais grave, garantias constitucionais, sob pena de ser acoimada de ilícita, como ocorreu no presente caso quanto ao DVD referido.

Ao promover a gravação das conversas com os acusados, a autoridade policial, no afã de produzir outras provas aptas a sustentarem a acusação, incorreu em ato atentatório ao direito constitucional de qualquer cidadão de manter-se em silêncio e, por conseguinte, não se autoincriminar.

Dessa forma, a gravação da conversa sobredita, por atentar contra a garantia individual, deve ser desconsiderada, autorizando o seu desentranhamento dos autos, como pretende o ora impetrante.

[...] 

A propósito, insta destacar, ainda, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: 

I.Habeas corpus: cabimento: prova ilícita. [...]. II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais. [...]. III. Gravação clandestina de "conversa informal" do indiciado com policiais. 3. Ilicitude decorrente - quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental - de constituir, dita "conversa informal", modalidade de "interrogatório" sub-reptício, o qual - além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. 4. O privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição - além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. - importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência - e da sua documentação formal - faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em "conversa informal" gravada, clandestinamente ou não. IV. Escuta gravada da comunicação telefônica com terceiro, que conteria evidência de quadrilha que integrariam: ilicitude, nas circunstâncias, com relação a ambos os interlocutores. [...]. V. Prova ilícita e contaminação de provas derivadas (fruits of the poisonous tree). 9. A imprecisão do pedido genérico de exclusão de provas derivadas daquelas cuja ilicitude se declara e o estágio do procedimento (ainda em curso o inquérito policial) levam, no ponto, ao indeferimento do pedido. [3] 

Assim, definitivamente, deve-se banir o procedimento de oitiva informal, acabando com esse ranço ditatorial da nossa cultura jurídica. No entanto, nos casos em que ainda acontece – inúmeros, lamentavelmente –, deve-se considerar como algo que nem sequer existiu, desentranhando-se a gravação ilegal e tudo o que lhe fizer referência, ou o registro, o depoimento do agente estatal que procedeu à oitiva e a relatou, qualquer elemento que faça menção a tal oitiva, inclusive por meio da imprensa, que nem sequer deveria ter acesso ao imputado, mas isso já deve ser objeto de outra coluna.

 

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 786-787. 

[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 440-441.

[3] STF, HC 80.949/RJ, rel.  Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, j. 30/10/2001, grifos aditados.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Silence // Foto de: PoYang_博仰 // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/poyang/538097175

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