Fait Divers: cortinas de fumaça para o esvaecer de direitos  

15/03/2019

 Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan   

A expressão cortinas de fumaça foi utilizada nas últimas semanas para alertar sobre a importância conferida a determinadas notícias enquanto questões de maior relevância não receberam igual atenção. Com efeito, foram abundantes nos meios de comunicação e redes sociais as notícias, e consequentemente os comentários, sobre estapafúrdias declarações de políticos do mais alto escalão. Parece-nos, caro leitor, que não apenas os meios de comunicação adotam a estratégia de divulgação de notícias por meio de Fait Divers, mas também o atual governo.

Fait Divers são fatos jornalísticos diversos que integram as pautas midiáticas por serem extraordinários e inexplicáveis[1], interpelando as emoções dos receptores por meio do sensacionalismo[2]. Para Baudrillard, atualmente, sejam os fatos relevantes ou não, são todos expostos de forma espetacular e homogênea. Os fait-divers caracterizam a comunicação de massa na sociedade do consumo, tempo em que pouca importância se atribui ao conteúdo, posto que o consumo se dá pela curiosidade, não por real interesse e vontade de conhecimento. “A relação do consumidor ao mundo real, à política, à história, à cultura, não é a do interesse, do investimento, da responsabilidade empunhada – também não é a da indiferença total, mas sim a da CURIOSIDADE”[3].

Há muito que os meios de comunicação atuam conforme a lógica do mercado, sob a égide dos “critérios empresarias de lucro”[4], e por isso passaram a adotar estratégias próprias da publicidade. No intuito de agradar a audiência, “deus oculto desse universo”[5], a complexidade dos fatos é reduzida e descontextualizada para que a informação se torne facilmente inteligível e consumível pelo público. A informação deve ser “atraente para o público-alvo, já não mais composto de cidadãos, mas sim de consumidores”[6].

As alterações na maneira de consumir provocaram mudanças também na forma de exercício da cidadania, hoje associada à capacidade de obtenção bens e aos meios de comunicação. Dentre as mudanças socioculturais apontadas por Canclini, cabe destacar, neste escrito, que no processo de “passagem do cidadão como representante de uma opinião pública ao cidadão interessado em desfrutar de uma certa qualidade de vida”, percebe-se que “as formas argumentativas e críticas de participação dão lugar à fruição de espetáculos nos meios eletrônicos, em que a narração ou simples acumulação de anedotas prevalece sobre a reflexão em torno dos problemas, e a exibição fugaz dos acontecimentos sobre sua abordagem estrutural e prolongada”[7].

Neste contexto, temas graves e complexos, cuja simplificação é deveras difícil, tem espaço reduzido na agenda midiática. Para garantir os lucros, a divulgação de notícias deve seguir a lógica do consumo: “rapidez, impacto, espetáculo, novidade” em um “fluxo informativo frenético”[8]. A informação deve ser transmutada em (sub)informação-mercadoria[9], isto é, em Fait Divers pronto para o consumo.

Dentre os produtos de entretenimento oferecidos ao público, em forma de Fait Divers, destacam-se as notícias sobre atos violentos, catástrofes naturais e curiosidades sobre a vida de pessoas amplamente conhecidas. Porém, como sobredito, nas últimas semanas a pauta midiática foi permeada por notícias sobre declarações exdrúxulas efetuadas por aqueles que devem representar o povo. Cita-se como exemplo o simplista discurso da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que, referindo-se à violência contra a mulher, mencionou que as escolas ensinariam os meninos a dar flores e abrir a porta do carro para as meninas. Ainda mais grave, pode-se mencionar a grotesca postagem do Presidente da República que em rede social questionou o que seria “golden shower”.

Seriam tais declarações resultado do despreparo dos nossos governantes? Ou fatos ardilosamente criados para servir como cortina de fumaça ao ganhar destaque na mídia?

Seja qual for a opinião do leitor, quer-se aqui chamar a atenção para o fato de que a espetacularização de determinados episódios promovida pelos meios de comunicação afasta a atenção do público das pautas realmente importantes, como a desigualdade social, as causas da violência, a precarização do trabalho, etc. Em análise sobre a influência da televisão e dos assuntos sem importância de que trata o veículo de comunicação, advertiu Bourdieu que “se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas”[10]. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos políticos, inferindo-se que as polêmicas forjadas recentemente funcionam como cortinas de fumaça para desviar a atenção de decisões políticas que afetam a vida de todos.

Enquanto Fait Divers despertam reações emocionais e garantem o entretenimento do público, no vácuo de reflexão, direitos são retirados dos cidadãos sem o devido debate democrático. Ora, enquanto entretidos os cidadãos, passou a flexibilização das leis trabalhistas, passaram os agrotóxicos, passará a reforma da previdência. E assim “a massa engole o engodo”[11].

 

Notas e Referências

[1] BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995. p. 25.

[2] RAMOS, Roberto. Os sensacionalismos do sensacionalismo: uma leitura dos discursos midiáticos. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 24.

[3] BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995. p. 25-26.

[4] CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. p. 40.

[5] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. de Maria Lúcia Machado. Rio de Janiero: Jorge Zahar, 1997. p. 34.

[6] BUDÓ, Marília de Nardin. Mídia e controle social: da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 78.

[7] CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. p. 40.

[8] HESPANHA, Antonio Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2014. p. 414.

[9] Sobre os conceitos de subinformação e desinformação, conferir SARTORI, Giovanni. Homo Videns: televisão e pós-pensamento. Trad. de Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2001. p. 66.

[10] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. de Maria Lúcia Machado. Rio de Janiero: Jorge Zahar, 1997. p. 23.

[11] ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo, Paz e Terra, 2015. p. 44.

 

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