Fábrica de sonhos: a reprodução humana assistida e o descompasso do ordenamento jurídico brasileiro

27/11/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

“Quando a criança se mexia em mim, fechava os olhos, pedia: por favor, meu filho, aguente até o fim, nasça, nasça perfeito, dessa vez tem de dar certo.”[1] A infertilidade e a esterilidade, como fatores impeditivos ou dificultadores de gestação, são parte de realidade de milhares de brasileiros que sonham em constituir família.

 Contemporaneamente, a Medicina Reprodutiva avança rapidamente no meio científico, social e no ramo do consumo. Isso porque as técnicas de reprodução humana assistida (FIV, IA e ICSI) são aperfeiçoadas com tecnologias disponíveis e por crescentemente integrarem o cotidiano – estima-se que mais de oito milhões de bebês são frutos das técnicas de RHA e há perspectiva de que, em 2100, 3,5% da população mundial tenha sido assim gerada[2]. Da mesma sorte, trata-se de prestação de serviços em expansão, sendo, portanto, relação de consumo, na forma do art. 3º, §2º, do CDC[3].

Entretanto, muito mais do que mera prestação de serviços, a reprodução humana assistida é tema complexo, porque: (a) possibilita a discussão de questões bioéticas, especialmente no que tange à eugenia; (b) permite a pluralidade de famílias ao proporcionar produções  independentes de mulheres, a gestação por substituição, viabilizando a maternidade tardia e trazendo a possibilidade de gestação por pessoas homoafetivas; (c) provoca debates jurídicos e, por fim, (d) altera a forma como a sociedade se relaciona e reproduz.

Todavia, a prática, que é realizada no Brasil desde 1984[4], não encontra amparo legal. Em um ordenamento jurídico em que impera a civil law, é de estranhar-se que não exista legislação específica sobre o tema. Sobram, entretanto, projetos de lei retrógados, letárgicos, criopreservados e apensados, aguardando votações na Câmara e no Senado[5].

 Questiona-se, no entanto, a (des)necessidade de regulamentação por meio de lei. Isso porque a reprodução humana assistida, como parte da realidade social, é amplamente realizada por clínicas de reprodução assistida espalhadas pelo país, contando com as resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) para o estabelecimento de regras deontológicas, estando em vigor, atualmente, a Resolução nº 2.168/17 sobre o tema[6]. Todavia, sua normatividade é questionada. Da mesma forma, como relação de consumo, é abarcada pela tutela do Código de Defesa do Consumidor.

Para além das resoluções de caráter deontológico, diante de hard cases envolvendo a RHA, o magistrado tem, à sua disposição, os direitos fundamentais à(s) liberdade(s) negativa e positiva[7], à isonomia, à dignidade da pessoa humana e ao planejamento familiar[8].

 No campo bioético, encontra amparo nos princípios da ética biomédica: o respeito à autonomia, a não maleficência, a beneficência e a justiça[9]. Assim sendo, a Ciência reprodutiva deve atuar em benefício dos pacientes, proporcionando-lhes saúde e bem-estar, não apenas abstendo-se de causar-lhes mal; devem ser respeitadas as vontades dos pacientes, uma vez que são tratamentos voluntariamente por eles buscados, analisando-se sempre o caso em concreto e, por fim, devendo garantir a todos pacientes acesso à saúde de qualidade, que engloba aqui, especificamente, a saúde reprodutiva.  Portanto, resta evidente a necessidade de aplicação dos pilares da ética biomédica nos casos em que envolvam questões bioéticas, como na eugenia.

Ante o exposto, vislumbra-se que a reprodução assistida é, para milhares de pessoas, por escolha ou por necessidade, a forma de viabilização de projeto parental. Gize-se, mais uma vez, a importância inestimável da RHA à pluralidade de famílias brasileiras, não se resumindo tão somente a casais héteros que possuam problemas de infertilidade ou esterilidade. Assim sendo, a pluralidade de famílias representa a eficácia da Constituição quando prevê uma sociedade fraterna e pluralista.

Dessa forma, a reprodução humana assistida, como viabilização de planejamento familiar, pode ser também classificada como direito fundamental, uma vez que é meio de eficácia dos direitos fundamentais à liberdade, à isonomia, à dignidade humana e ao planejamento familiar. Nesse sentido, é cristalina a necessidade de tutela do Direito nessas relações, ainda mais por envolverem a geração de novas vidas.

Para tanto, não há necessidade de criação de legislação específica à temática – ainda mais com os temerários projetos de lei –, não se abstendo, porém, de tutelar cuidadosamente tal direito. Como apontado aqui, há mecanismos externos e internos do Direito para a efetiva tutela. Assim sendo, diante dos hard cases[10], o julgador tem, à sua disposição, primeiramente, as resoluções do Conselho Federal de Medicina. Essas, ainda que possuam caráter deontológico, devem ter reconhecida sua normatividade, já que o CFM é uma autarquia[11] e é o órgão mais competente para regrar o funcionamento dos tratamentos. Subsidiariamente, se necessário, é aplicável a Lei de Biossegurança[12].

Da mesma forma, devem ser levados em considerações os princípios da ética biomédica, tratando-se as pessoas como sujeitos, e não meros objetos da relação de consumo. Igualmente, devem prevalecer, eficazmente, os direitos fundamentais à(s) liberdade(s), à isonomia, à dignidade humana e ao planejamento familiar. Isso posto, conclui-se que há mecanismos suficientes para a efetiva tutela do direito à reprodução humana assistida, suprindo-se a lacuna legislativa, não apenas limitando-se a uma relação de consumo, e sim sendo um direito fundamental que torna os demais eficazes.

Portanto, não há razões para aguardar-se a elaboração de uma legislação, devendo-se tutelar, desde já, as relações de reprodução humana assistida, garantindo à população a liberdade de praticar o direito fundamental ao planejamento familiar da forma como melhor lhe convir.

 

Notas e Referências

[1]  LUFT, Lya. As parceiras. Rio de Janeiro: Record, 2013. 27. ed. p.101.

[2] LENDFORD, Heidi. IVF at 40: revisiting the revolution in assisted reproduction. Nature, Londres, 23 jul.2018. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-018-05792-9. Acesso em: 18 out. 2020.

[3] In verbis, art. 3º, §2º, do CDC: Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. BRASIL. Lei nº 8.078, de 1990. Código de Defesa do Consumidor.

[4] NASCE o primeiro bebê de proveta. Isto é, São Paulo, 25 nov. 2016. Disponível em: https://istoe.com.br/nasce-o-primeiro-bebe-de-proveta/. Acesso em: 06 nov. 2020.

[5] PL nº 2.855/97 (apensado ao PL nº 1.184/2003), PL nº 4.665/2001 (apensado ao PL nº 2.855/2001), PL nº 6.296/2002 (apensado ao PL nº 1.184/2003), PL nº 120/2003 (apensado ao PL nº 1.184/2003), PL nº 1.184/2003 (aguardando parecer do relator na CCJC), PL nº 5.624/2005 (apensado ao PL nº 1.184/2003), PL nº 3.067/2008 (modifica a Lei de Biossegurança), PL nº 7.701/2010 (apensado ao PL nº 1.184/2003); PL nº 3.977/2012, PL nº 4.892/2012 (apensado ao PL nº 1.184/2003); PL nº 115/2015 (apensado ao PL nº 4.892/2012).

[6] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.168. Brasília, 2017. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2168. Acesso em: 18 out. 2020.

[7] BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Tradução Wamberto Hudson Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1969. p. 136-142.

[8] In verbis: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. BRASIL [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 07 out. 2020.

[9] BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. 3. ed.São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2013. p. 137-422. .

[10] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo, Martins Fontes, 2002. p. 128.

[11] BRASIL. Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957. Dispõe sobre os Conselhos de Medicina, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1957. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3268.htm. Acesso em: 18 out. 2020.

[12] BRASIL. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Lei de Biossegurança. DF: Presidência da República, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm. Acesso em: 03 mar. 2020.

 

 

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