EXISTE LIBERDADE NA SOCIEDADE DE CONSUMO?

22/02/2019

Coluna Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A sociedade de consumidores promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida consumista e rejeita todas as outras opções culturais alternativas. Concentra seu treinamento e a pressão coercitiva sobre seus membros, desde a infância e ao longo de suas vidas. Se adaptar aos preceitos da cultura de consumo e segui-los estritamente é a única escolha. Consumidores de ambos os sexos, de todas as idades e de qualquer posição social serão inadequados, deficientes e abaixo do padrão se não responderem aos apelos da sociedade de consumo. Aqueles que possuem recursos demasiado escassos para reagirem aos “apelos do mercado”, são os consumidores falhos, são pessoas desnecessárias para a sociedade de consumo, que estaria melhor sem elas1.

Ser um consumidor implica fazer escolhas, decidir o que quer e como vai gastar o seu dinheiro para obtê-lo. Esse exercício de escolha é, em princípio, ilimitado, pois ninguém tem o direito de dizer o que o consumidor deve comprar ou o que deve querer. Assim, “a soberania do consumidor é uma imagem extremamente sedutora de liberdade”2.   Comprar parece ter se tornado um sinalizador de liberdade maior do que votar e aquilo que fazemos sozinhos no shopping é considerado mais importante para o nosso destino do que o que fazemos juntos na esfera pública3.

Ocorre que na sociedade de consumo a liberdade parece encontrar o seu fim. A força da publicidade, dos grupos de referência, das instituições e dos meios de comunicação é tamanha que não resta um resquício de liberdade para as ações de consumo4. O mercado, com sua insistente ideologia de consumo, está em cada setor de nossas vidas, mas, mesmo assim, ao resultado dá-se o nome de liberdade. O capitalismo de consumo, cria uma ilusão de liberdade privada, mas que resulta numa coerção invisível e torna o exercício da liberdade pública mais difícil. Ainda que os shoppings e mercados virtuais não sejam prisões, não se pode dizer que eles oferecem aos seres humanos alguma coisa parecida com liberdade pública5

Teoricamente os consumidores são livres para comprar ou não, mas “com o etos infantilista fomentando seus desejos”. A dinâmica de consumo torna as pessoas mais vulneráveis ao controle, em grande parte da mesma forma que as crianças. O consumidor em tempo integral, de quase todas as maneiras, age regressivamente, mais como uma criança impulsiva do que como um adulto. O cidadão adulto é uma pessoa que faz escolhas capacitado pela liberdade social a afetar o ambiente, enquanto o consumidor infantilizado é uma pessoa privada que faz escolhas e cujo poder de participar da comunidade ou afetar mudanças é diminuído6.

Muitas das perguntas próprias dos cidadãos, a que lugar pertenço, que direitos eu tenho, como posso me informar, quem representa meus interesses, recebem respostas mais em virtude do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa, do que pelas regras da democracia ou da participação de homens e mulheres em espaços públicos7. A vitória do consumo levou, até mesmo, a um retrocesso quanto às conquistas sociais e políticas, quando educação, moradia, saúde e lazer aparecem como se fossem conquistas pessoais e não direitos sociais8.

Esta falsa ideia de liberdade, decorre da ideologia da privatização que se tornou uma aliada da infantilização na sociedade comercial. Assim, o etos de infantilização não é o único fator no hiperconsumo da nossa era. A ideologia da privatização não é apenas uma ideologia econômica. Ela age em aliança com o etos da infantilização para reforçar o narcisismo, a preferência pessoal, a puerilidade. Distorce o modo como se compreende a liberdade civil e a cidadania, interpretando de forma equivocada a liberdade e, assim, ignorando e, por vezes, até mesmo minando o significado de bens públicos e da prosperidade pública. Trata a escolha como se fosse eminentemente privada, apenas como uma questão de enumerar e agregar todos os “eu quero” que mantemos como consumidores privados, sem considerar que escolhas privadas têm consequências sociais e resultados públicos9.

A privatização transforma o “eu” privado, impulsivo, que fica à espreita dentro de mim, num inimigo inadvertido do “nós” público, deliberativo, que também é parte de quem eu sou. O privado grita para mim: “Eu quero!” A perspectiva de privatização legitima o grito, permitindo que ele vença o silencioso “nós precisamos”, que é a voz do eu público do qual eu participo e que também é um aspecto de meus interesses como ser humano. Todas as escolhas que fazemos, uma a uma, determina, portanto, os resultados sociais que com certeza vamos sofrer juntos, mas que nunca são diretamente uma escolha em comum10.   

A privatização desfaz os laços que unem as pessoas em comunidades livres e repúblicas democráticas, levando-as de volta a um estado natural em que possuem um direito de obter o que querem por elas mesmas, mas sem a capacidade verdadeira de assegurar aquilo a que têm direito. As escolhas privadas dependem de poder individual, de habilidades pessoais e até mesmo de sorte, enquanto as escolhas públicas dependem de direitos civis e presumo direitos iguais para todos11.

O termo consumo, à primeira vista, nos ilude e leva a crer que que haveria um sujeito consumidor e um objeto consumido. No entanto, não há como “não se dar conta de que essa separação, sujeito – objeto fica cada vez mais amorfa diante da experiência do sujeito imerso na cultura do consumo contínuo e que não pode parar”12.

 

Notas e Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

SLATER, Don. Cultura do Consumo & Modernidade. Tradução: Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Nobel, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

CORTINA, Adela. Por una ética de consumo. La ciudadanía del consumidor em um mundo global. Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2002.

BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Tradução: Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Tradução: Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.

PORTILHO,  Fátima. Consumo sustentável: limites e possibilidades de ambientalização e politização das práticas de consumo. Cadernos EBAPE.BR, 2005, p. 5. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cebape/v3n3/v3n3a05. Acesso em: 01/05/2017.

BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Tradução: Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

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HOMEM, Maria Lúcia. Entre próteses e prozacs. O sujeito contemporâneo imerso na descartabilidade da sociedade de consumo. Estudos Gerais de Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: http://egp.dreamhosters.com/encontros/mundial_rj/download/4_Homem_135161003_port.pdf.Acesso em: 23/11/2017.

 

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