Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil
A inspiração para essas breves reflexões que se seguirão decorreu da recente publicação da Lei 14.661, publicada em 23 de agosto de 2023, que inseriu no Código Civil o art. 1815-A, o qual passou a viger com a seguinte redação: “Em qualquer dos casos de indignidade previstos no art. 1.814, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória acarretará a imediata exclusão do herdeiro ou legatário indigno, independentemente da sentença prevista no caput do art. 1.815 deste Código”.
A verdade é que o Código Civil de 2002, desde a sua entrada em vigor, sofreu inúmeras reformas, muitas delas reconhecidamente equivocadas ou desnecessárias. Não à toa, a fim de reformar/atualizar o texto originário do Código, foi instaurada no Senado Federal uma comissão de juristas que buscará promover as alterações necessárias na nossa principal lei privada, com o intuito de voltar a termos um sistema verdadeiramente coeso e operável.
A inserção do art. 1815-A no Código Civil é mais uma dessas alterações desnecessárias, que inserem em nosso sistema dispositivos legais dispensáveis e incham nossa legislação, já tão extensa. E por que se faz essa afirmação? Pelo fato de que uma interpretação sistemática de outros dispositivos do próprio Código Civil já levavam à mesma conclusão do que agora se diz expressamente no novel artigo mencionado.
Para tanto, recorremos ao que dispõe o art. 935 do mesmo Código Civil: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”. Este dispositivo visa buscar uma harmonização das responsabilidades civil e criminal que derivarem de um mesmo fato, evitando-se eventuais incoerências na ordem jurídica decorrentes de decisões conflitantes em cada um dos juízos responsáveis pela avaliação do mesmo caso concreto. Sobre essa unicidade do sistema jurídico, em comentário ao art. 935, Sergio Cavalieri Filho (2007, p. 512) anota que:
De outra parte, nos casos em que o fato gerador da responsabilidade criminal e civil é um só, materialmente idêntico, a boa realização da justiça impõe que a verdade sobre ele seja também uma. A ação penal e a indenizatória constituem, em última instância, um duplo processo de responsabilização pelo mesmo fato danoso, não sendo justificáveis decisões conflitantes.
Isso quer dizer que se a prática de um crime for apurada perante o juízo criminal, e lá houver decisão que resolva a questão, o trânsito em julgado daquele pronunciamento judicial automaticamente produzirá efeitos no juízo cível, tanto para reconhecer a responsabilidade do agente – no caso de sentença penal condenatória, como para eximi-lo dela – em caso de sentença penal absolutória.[i]
Nota-se, então, que há uma clara preferência em aguardar o resultado da ação penal, que, posteriormente, vincularia o juízo cível. Reforça essa percepção o parágrafo único do art. 64 do Código Penal, que prevê a possibilidade da suspensão da ação que tramita perante ao juízo cível até que se tenha resultado final da ação penal.
Lembremo-nos que as hipóteses de indignidade sucessória, arroladas no art. 1814 do Código Civil, envolvem basicamente a prática de crimes como fatores de exclusão da sucessão: no inciso I, a prática tentada ou consumada do homicídio doloso; no inciso II, as práticas de crimes contra a honra ou denunciação caluniosa em juízo. Não nos descuidemos de que mesmo na hipótese do inciso III, que fala expressamente do uso de “violência” como meio de obstar a disposição testamentária, pode ensejar a prática de crimes (tais como lesão corporal ou tortura), o que igualmente ensejaria o pronunciamento judicial na esfera criminal.
Dito tudo isto, a conclusão apresentada é aquela que se afirmou no início do texto: o art. 1815-A era absolutamente desnecessário, pois a interpretação sistemática de todos os dispositivos anteriormente apresentados levava exatamente à mesma conclusão do novel dispositivo legal: a de que a condenação criminal transitada em julgado automaticamente implicaria na exclusão do herdeiro da linha sucessória do falecido. Dinheiro público gasto em um processo legislativo inútil!
Há, entretanto, um ponto sensível nesta temática que merece reforma, sob pena de tornar o recém positivado art. 1815-A ineficaz (ou, se ele não existisse, a ineficácia de toda a interpretação que anteriormente se defendeu): a alteração da natureza jurídica do prazo para propositura da ação declaratória de indignidade.
Em estudo minucioso do tema, Rolf Madaleno (2019, p. 179-182) conclui, apontando uma grande lista de outros relevantes doutrinadores, que o prazo de quatro anos para a para a propositura da ação declaratória de indignidade, constante do §1º do art. 1815 do Código Civil, é de natureza decadencial. Sendo assim, não está sujeito às causas impeditivas, suspensivas ou interruptivas da prescrição (art. 207 do Código Civil).
Considerando a complexidade do processo penal brasileiro, não é leviano afirmar que em raríssimas hipóteses ter-se-ia sentença penal transitada em julgado nesse prazo. Dessa forma, a eventual inércia dos interessados/legitimados baseada na simples tramitação de ação penal pode acarretar prejuízos irreversíveis aos interesses deles. Conclusão: será inevitável o ajuizamento da ação competente perante o juízo cível!
Fosse o prazo em questão de natureza prescricional, o que poderia ser objeto de alteração legislativa que expressamente dispusesse dessa forma, seria possível dar ao art. 1815-A o efeito prático que dele se espera, viabilizando a suspensão (ou não propositura) de eventual ação de natureza civil até o resultado final da ação penal correspondente.
Em tom conclusivo, aponta-se que as demandas de atualização/inovação legislativa realmente necessárias em matéria exclusão de herdeiros são aquelas que promovam a atualização das hipóteses de indignidade e deserdação no Código Civil. Demandas como (i) inclusão das hipóteses de deserdação do cônjuge e do companheiro[ii] (que são herdeiros necessários, mas não podem ser deserdados atualmente, diante da falta de previsão legal para tanto); (ii) possibilidade de deserdação pelo abandono/desamparo material ou moral do autor da herança, em consonância com os fenômenos dos abandono afetivo “tradicional” e o inverso; (iii) ampliação das hipóteses de indignidade por violação não apenas à vida, mas, também, à integridade física, dignidade sexual, liberdade existencial, etc.; dentre outras tantas possibilidades defendidas por vários juristas estudiosos do tema.
Notas e referências
CAVALIEIRI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
HIRONAKA, Giselda. Cônjuge e companheiro são herdeiros necessários? In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NEVARES, Ana Luiza Maia. Direito das Sucessões: problemas e tendências. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 67-88.
MADALENO, Rolf. Sucessão legítima. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
MAIA JÚNIOR, Mairan Gonçalves. Sucessão Legítima: as regras da sucessão legítima, as estruturas familiares contemporâneas e a vontade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil comentado – doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[i] Vale salientar que essa situação comporta uma exceção, nos termos do art. 66 do Código de Processo Penal: “Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”. Nesse sentido, a clara explicação de Anderson Schreiber: “[...] Já em se tratando de sentença criminal absolutória, impõe-se ulterior distinção, com base em sua fundamentação. Caso a sentença reconheça ‘estar provada a inexistência do fato’ ou ‘estar provado que o réu não concorreu para a infração penal’ (art. 386, incs. I e IV do CPP), exprimindo juízo de certeza acerca do contexto fático do, fica o juízo cível vinculado a tais conclusões. Por outro lado, entendendo o juízo criminal ‘não haver prova da existência do fato’ ou ‘não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal’ (art. 386, incs. II e V do CPP), fica o juízo cível livre para reavaliar a questão. [...]” (SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil comentado – doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 624)
[ii] Nesse ponto, afiliamo-nos à ampla maioria da doutrina especializada, que entende pela equiparação do companheiro ao cônjuge na figura de herdeiro necessário. Por todos, cita-se: HIRONAKA, Giselda. Cônjuge e companheiro são herdeiros necessários? In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NEVARES, Ana Luiza Maia. Direito das Sucessões: problemas e tendências. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 67-88.
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