EVITANDO O ESPETÁCULO: UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA SUPRESSÃO DOS REQUISITOS ESSENCIAIS PARA PROPOSITURA DE AÇÃO E A COGNOSCIBILIDADE DO PODER DECISÓRIO FRENTE À TEORIA DA ASSERÇÃO.

21/11/2018

Esse artigo é fruto de uma série de pesquisas sobre direito processual penal. Buscou-se analisar na jurisprudência a atuação do magistrado durante o processo de cognoscibilidade e os seus reflexos no comportamento institucional do órgão de acusação. Para tal missão realiza-se uma análise crítica dos mais recentes julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, bem como, o que expressa a doutrina. Opta-se por utilizar método qualitativo com base na técnica da fenomenologia. No que tange à estrutura do artigo, esclarece-se sua divisão em três importantes aspectos, quais sejam: considerações propedêuticas, quanto às condições essenciais para propositura da ação; da presença da justa causa na peça acusatória; da interseção entre lei e teoria: peça acusatória genérica e a teoria da asserção. Cabe ainda registrar que, o estudo possui extrema relevância, em razão da sua constante ocorrência no âmbito dos tribunais. Por fim, acredita-se que ao final desse trabalho se obteve uma relevante base para tecer considerações acerca da temática, uma vez que foi promovido um estudo atual, englobando a fundamentação doutrinária dentro de um viés prático da jurisprudência.

 

CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS QUANTO ÀS CONDIÇÕES ESSENCIAIS PARA PROPOSITURA DA AÇÃO.

Os requisitos para propositura da ação incialmente foram previstos de maneira tríplice no âmbito do processo civil, são eles: a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes (ad causam) e o interesse processual. Caso não vislumbrasse o magistrado a existência de algum desses requisitos, em tese, deveria promover a extinção do processo[1].

 

Já no âmbito do processo penal, os requisitos para extinção da ação consistiam em “for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal”[2]. Todavia, tais condições foram alteradas com o advento da promulgação da Lei nº 11.719, de 2008, nossa atual legislação, que de maneira explícita estabeleceu no “Art. 395 que: “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal”.

 

Quanto a tais condições, convém destacar que a doutrina não é unânime, e, visando à qualidade científica deste artigo, entendemos por ser relevante apresentar os principais posicionamentos[3], vejamos:

 

AUTOR

ANO

CONDIÇÕES ESSENCIAIS

Julio Fabbrini Mirabete

2007

Possibilidade Jurídica do pedido; interesse de agir; legitimação para agir; justa causa.

Ada Pellegrini Grinover

2014

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido.

Fernando da C. Tourinho Filho.

2013

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido.

Afrânio Silva Jardim

-

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido; justa causa e a originalidade.

Guilherme Nucci

2016

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido.

 

 

Após tais considerações, convém esclarecer que neste trabalho atentaremos tão somente em analisar a ausência de justa causa para o exercício da ação penal. Registre-se que a doutrina brasileira não é unanime em reconhecer a justa causa como uma condição da ação, acreditando alguns,[4] que está integraria por decorrência lógica do interesse de agir, ou seria fruto de requisito ao desenvolvimento da demanda, como uma síntese das condições da ação[5].

 

Não obstante, ressalte-se que neste trabalho adotamos a primeira corrente, na qual se confere status de condição essencial para propositura de ação.

 

Sendo assim, valendo-se dos ensinamentos de Nestor Távora (2015), esclarecemos que justa causa é o pressuposto que valida o exercício da ação, lastreando a inicial com elementos probatórios mínimos, que indiquem indícios de autoria, de materialidade delitiva e da constatação da ocorrência de infração penal.

 

Cumpre ainda registrar que a mera instauração do processo não pressupõe que de fato deverá haver necessária condenação do acusado, uma vez que tanto Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quanto a Declaração Universal dos Direitos do Homem reconhecem que "Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa".

 

É importante esclarecer, entretanto, que muito embora a instauração do processo atente contra o “status dignitatis”, a presunção de inocência, por maioria dos votos do Plenário do Supremo Tribunal Federal, limita-se tão somente a condenação em primeira instância, uma vez que artigo 283 do Código de Processo Penal não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância (do que discordamos, mas que não é objeto do presente ensaio)[6].

 

Por decorrência lógica, é necessário que os Tribunais ao recepcionarem ações para exercer juízos de admissibilidade realizem minuciosa observância aos requisitos condicionantes à propositura da ação, uma vez que tal exercício não pode ser fruto arbitrariedades, afrontando os preceitos constitucionais que norteiam o processo judicial.

 

Sendo assim, não se deve admitir a supressão de tais preceitos – o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa – uma vez que dentro da ótica constitucional tais procedimentos são essenciais para a validade do resultado que se deseja alcançar. Em outras palavras, mais importante que o resultado auferido ao final do processo, é caminho percorrido pelos litigantes e demais sujeitos processuais durante toda a trajetória processual.

 

            Não reconhecer tal máxima implicaria em criarem-se juízos de exceções, dignos de narrativas Kafikanianas[7]. Portanto, a atuação dos órgãos de acusação, tal qual o Ministério Público, devem estar adstritas ao disposto em nossa Magna Carta, conforme nos ensina Alberto S. Franco (2004): “o art. 129, I, CF estabeleceu, de forma inconclusa que, entre as funções institucionais do Ministério Público, se insere como mais relevante de todas de todas a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

 

            Portanto, questiona-se: Qual procedimento adotar quando o órgão de acusação promover uma denúncia sem lastro mínimo probatório? E se o magistrado dado ao grande fluxo de processos aceitar tal denúncia? Qual o momento adequado para sua verificação? Haveria distinção na verificação dos requisitos da ação em razão de quem a promove?

 

            A relevância de tal problemática pauta-se em sua presença recorrente no âmbito dos tribunais; em rápida pesquisa em um dos mais famosos buscadores[8] voltados para o direito encontra-se pouco mais de 220.768 (duzentos e vinte mil e setecentos e sessenta e oito) resultados. Registre-se que tais resultados não se limitam somente ao ramo do direito penal e processual, abarcando diversos outros ramos.

 

            Ainda sobre o direito de ação no direito penal, cumpre também registrar que, via de regra, tal prerrogativa fica a cargo do Ministério Público. Em caráter excepcional, decorrente de lei, pode o particular promover a denúncia. Nesse sentindo, a doutrina reconhece outros tipos de ações, quais sejam: ação penal incondicionada, condicionada à representação e privada.

 

A primeira é de titularidade do órgão de acusação, conforme anteriormente mencionado, e, não se sujeita a manifestação de vontade da vítima ou de terceiros para seu efetivo exercício. Já a segunda, qual seja, ação penal condicionada também é titularizada pelo Parquet, entretanto, sua atuação estará condicionada permissividade da vítima ou do seu representante legal. Por última, apresenta-se a ação penal de natureza privada, que é transferida ao particular, para que atue em nome próprio, na tutela de direito alheio a sociedade[9].

 

De maneira mais especifica é possível ainda subdividir a ação penal de iniciativa privada, podendo ser de iniciativa privada propriamente dita, de natureza personalíssima ou ainda como subsidiária da publica[10].

 

DA PRESENÇA DA JUSTA CAUSA NA PEÇA ACUSATÓRIA.

A presença da justa causa possui certo grau de complexidade em sua identificação, isso decorre em parte, dada a sua natureza terminológica vaga pelo emprego da palavra “causa”, conforme nos ensina Madeira (2017) valendo-se das lições de Maria Thereza Rocha de Asssis Moura (2001) em seu livro Justa Causa para ação penal – Doutrina e Jurisprudência.

 

Destaca o autor que tal terminologia possui dupla perspectiva: uma de natureza positiva, que se fundamenta na possibilidade de acusar baseando-se mínima probabilidade da acusação; já a segunda, decorre de natureza negativa, na qual a falta de um dos elementos de natureza positiva torna inviável o ajuizamento da ação, e, por conseguinte a sua aceitabilidade por parte do magistrado que irá apreciar a demanda.

 

            Em razão disso, é necessário reconhecer-se que a justa causa é um elemento basilar, uma vez que os Tribunais Superiores vêm reconhecendo que sua ausência em peça acusatória pode ensejar o trancamento da ação penal. Vale ressaltar que essa, em tese, seria uma situação de excepcionalidade. Isso porque, em outras instâncias, tal como administrativa, não haveria fundamento para arquivar processo administrativo equivalente a ação de natureza judicial, pela ausência de justa causa.

 

Nesse sentido, embora seja firme o entendimento da nossa Suprema Corte de que “são independentes as instâncias penal e administrativa, só repercutindo aquela nesta quando se manifesta pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria”[11].

 

É sabido, de que uma investigação iniciada ainda na esfera administrativa, pode ensejar uma ação na esfera penal. Em outras palavras, isso acarreta em dizer que, embora seja reconhecido o caráter autônomo das instâncias, poderá ocorrer interação entre elas.

 

            Registre-se que cada instância possui um conjunto de prerrogativas e garantias que norteiam o equilíbrio lógico do nosso sistema jurídico. A título de exemplificação temos que o Direito Penal é um mecanismo de “ultima ratio”, sendo assim, sua utilização não pode ocorrer sem uma justa causa, e principalmente dada a sua natureza mais rígida, a propositura de ação em seu âmbito deve ser promovida com uma fundamentação mais concisa e com amplitude probatória.

 

            Para que não haja dúvida, possibilidade de interação através do caso que se segue. Trata-se de uma Ação Civil Pública promovida tão somente em razão de ofício emitido pelo Banco Central do Brasil. 

 

Nesse caso, a pretensão do órgão de acusação e guardião da ordem jurídica foi rechaçada, quando a própria prova basilar se desfez dentro do contexto fático. Isto porque, após apuração do próprio Banco Central do Brasil, em sede de procedimento administrativo apropriado, entendeu-se pela inocência posterior, retirando do Processo Penal a justa causa, apontada pela parte autora. Vejamos:

 

"HABEAS CORPUS". PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. REPRESENTAÇÃO. DENÚNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. ARQUIVAMENTO. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. Denúncia por crime contra o Sistema Financeiro Nacional oferecida com base exclusiva na representação do BANCO CENTRAL. Posterior decisão do BANCO determinando o arquivamento do processo administrativo, que motivou a representação. A instituição bancária constatou que a dívida, caracterizadora do ilícito, foi objeto de repactuação nos autos de execução judicial. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional referendou essa decisão. O Ministério Público, antes do oferecimento da denúncia, deveria ter promovido a adequada investigação criminal. Precisava, no mínimo, apurar a existência do nexo causal e do elemento subjetivo do tipo. E não basear-se apenas na representação do BANCO CENTRAL. Com a decisão do BANCO, ocorreu a falta de justa causa para prosseguir com a ação penal, por evidente atipicidade do fato. Não é, portanto, a independência das instâncias administrativa e penal que está em questão. HABEAS deferido. (HC 81324, Relator (a):  Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 12/03/2002, DJ 23-08-2002 PP-00114 EMENT VOL-02079-01 PP-00186)

 

Conforme destacou o Ministro Nelson Jobim, responsável pela relatoria do processo, que teve seu voto acompanhado por unanimidade, “a jurisprudência do Tribunal é no sentido de não reconhecer o trancamento da ação penal sem que exista fato evidentemente atípico”, todavia, no referido julgado ficou evidente que acusação do Ministério Público se baseou tão somente em ofício inicial do Banco Central. Quando comparamos com o caso objeto desse habeas corpus fica mais do que evidente que não deve prosperar a ação em razão da ausência de justa causa, pois, esta foi baseada tão somente em ofício do BACEN, que em momento posterior a propositura dessa ação entendeu por inocentar de todas as acusações a parte ré.

 

Ratificando tal entendimento temos os ensinamentos de Roberto Luis Luchi Demo[12] que explica o direito como uno, isto é, um sistema de prescrições jurídicas coerentes e harmônicas, as quais estão relacionadas entre si, e, portando, não faria sentido a realidade material repercutir de modo disforme. Nesse mesmo linha também aponta Diogo de Figueiredo Moreira[13], a ideia de independência entre as esferas não deveria acarretar soluções incoerentes, paradoxais, o que seria possível de ocorrer caso houvesse notória incompatibilidade entre decisões das três esferas.

 

            Cumpre ainda destacar em razão da tendência de uniformização da jurisprudência e o fomento da consolidação do sistema de precedentes, os demais Tribunais vêm ratificando o exposto, conforme se verifica na ementa abaixo:

PROCESSUAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, I, LEI 8.137/1990. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ILEGALIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO.

O trancamento da ação penal em sede de habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando restar demonstrada, de maneira inequívoca, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria, ou a existência de causa extintiva da punibilidade.

Tendo sido reconhecido pelo Tribunal a quo, em favor de corréu, o constrangimento ilegal da ação penal em seu desfavor a despeito dele não mais participar da gestão da empresa quando da prática dos fatos delituosos, outubro de 2000, impõe-se a extensão dos efeitos da decisão ao recorrente que se encontra na mesma situação fática nos termos do art. 580, CPP.

Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a ausência de justa causa da ação penal nº 001041191.2010.4.01.3200, em desfavor do recorrente, determinando o seu trancamento, o que não impede nova denúncia penal caso lastreada em novo acervo probatório. (RHC 35.876/AM, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 06/09/2016, DJe 16/09/2016)

 

DA INTERSEÇÃO ENTRE LEI E TEORIA: PEÇA ACUSATÓRIA GENÉRICA E A TEORIA DA ASSERÇÃO.

            Segundo a Teoria da asserção[14], o órgão judicial ao apreciar as condições da ação, o faz a vista do que fora alegado pelo autor, sem analisar o mérito, abstratamente, admitindo-se em caráter provisório, a veracidade do que fora alegado. Por conseguinte, em outro momento, qual seja, durante a instrução probatória, apura-se concretamente o que fora alegado pelo autor na petição inicial.

 

            Tal teoria é reconhecida pela jurisprudência, a exemplo, apresentamos as recentíssimas decisões dos Tribunais:

 

APELAÇÃO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PROGRAMA EDUCAÇÃO INTEGRAL. CONTRATAÇÃO DIRETA. SERVIÇO DE COZINHEIRO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. LEGITIMIDADE PASSIVA.

I - Não configura julgamento extra petita a condenação dos réus em artigo distinto da lei de improbidade administrativa porque os réus se defendem dos fatos que lhe são imputados. Compete ao julgador a adequação dos fatos jurídicos à norma. II - Conforme os fatos narrados na inicial - teoria da asserção - o apelante-réu praticou atos no procedimento administrativo que fundamentou a contratação direta, por isso tem legitimidade para figurar no polo passivo da ação civil pública por improbidade administrativa. III - O autor não se desincumbiu do ônus da prova quanto à existência de dolo ou culpa na conduta dos réus. IV - Apelação dos réus provida, e apelação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios prejudicada. (TJ-DF 20090110049123 DF 0043259-61.2009.8.07.0001, Relator: VERA ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/02/2018, 6ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 06/03/2018 . Pág.: 497/504)

            Tal teoria possui íntima ligação com que a doutrina e jurisprudência usualmente intitulam de denúncia genérica, conforme se verifica no caso ementado abaixo: 

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. CRIME DE PECULATO. DESVIO DE VERBAS FEDERAIS. PROGRAMA PROJOVEM. ONG SEMEAR. AQUISIÇÃO DE ITENS SUPERFATURADOS. ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE AOS SÓCIOS DA EMPRESA QUE OS VENDEU. NEXO CAUSAL NÃO DESCRITO. DENÚNCIA INEPTA. IMPUTAÇÃO GENÉRICA. 2. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. 1.

 

A denúncia, apesar de descrever a conduta delitiva consistente na compra superfaturada realizada pela ONG SEMEAR, com dinheiro público, não descreve eventual liame existente com os recorrentes. Não se observa, portanto, nem mesmo de passagem, o nexo causal entre o comportamento dos recorrentes e o fato delituoso. A acusação limitou-se a vinculá-los ao crime porque eram sócios da empresa em que foram comprados os itens superfaturados. Como é cediço, mesmo a denúncia geral deve conter elementos mínimos que preservem o direito do acusado de conhecer o conteúdo da imputação contra si. A mera atribuição de uma qualidade não é forma adequada para se conferir determinada prática delitiva a quem quer que seja. Caso contrário, abre-se margem para formulação de denúncia genérica e, por via de consequência, para reprovável responsabilidade penal objetiva. 2. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a inépcia da denúncia com relação aos recorrentes, sem prejuízo de oferecimento de nova inicial acusatória, desde que observados os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. (RHC 74.176/RJ, da minha relatoria, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2016, DJe 02/12/2016).

 

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. 2. DENÚNCIA GENÉRICA. CRIME SOCIETÁRIO. ART. 1º, INCISO I, DA LEI 8.137/1990 (CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, ECONÔMICA E CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO).

É fundamental que o mínimo de individualização da conduta esteja contido na denúncia para permitir o recebimento. Caso que apresenta peculiaridades, que demonstram que um esforço de identificação da contribuição dos envolvidos para o suposto crime seria particularmente relevante. 3. Ordem concedida, para extinguir a ação penal, por inépcia da denúncia. (HC 127415, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 13/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-206 DIVULG 26-09-2016 PUBLIC 27-09-2016)

 

Conforme se vislumbra no julgado acima, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, a promoção de peça acusatória sem o estabelecimento de lastro probatório mínimo enseja na inépcia material da denúncia, e, consequente rejeição, por ausência de justa causa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De pronto, ratifica-se o entendimento de que a justa causa é o lastro probatório mínimo calcado na prova da materialidade e indícios de autoria. Em razão disso, não é possível vislumbrar um devido processo legal diante de eventual supressão (lê-se como ausência do requisito da justa causa).

 

Portanto, defende-se, que mesmo a teoria da asserção não pode ser um “cheque em branco” capaz de possibilitar o recebimento de denúncias genéricas, pois, se assim fosse, ensejaria em afronta direta ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa, preceitos esses constitucionais, de natureza basilar e comuns a teoria geral do processo

 

De outro turno, quanto aos demais questionamentos elaborados ao longo desse ensaio, oferece-se como síntese conclusiva que, caso o órgão de acusação promova denúncia sem lastro mínimo probatório, é dever legal dos demais sujeitos processuais manifestar oposição sempre que visualizarem tal incoerência, independente do momento processual, expressando-se de maneira inequívoca pelo não recebimento de tal denúncia.

 

 Tratando-se do órgão judicial, mais especificamente da cognoscibilidade do magistrado, esse ao apreciar as condições da ação, deve voltar-se tão somente aos aspectos processuais, afastando-se em caráter temporário do mérito em si, e, voltando-se para os requisitos essenciais que ratificam ou não necessidade de propositura de ação, apresentados ao longo desse ensaio.

 

Por derradeiro, é imprescindível que tal verificação ocorra no inicio do processo, ou seja, ainda na fase de conhecimento, todavia, caso não ocorra, têm-se até o término do processo sua pertinência em verificar, pouco importando se a denúncia foi promovida pelo órgão de acusação especifico, ou pelo particular em substituição a Parquet.

   

Notas e Referências

BORGES, Edilson Barbugiani. Ensaio sobre a obra "Como se faz um processo", de Francesco Carnelutti e noções do sistema processual brasileiro. ConteudoJuridico, Brasilia-DF: 29 out. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.50388&seo=1>. Acesso em: 7fevereiro de 2018.

BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 7fevereiro de 2018.

 

BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 7fevereiro de 2018.

 

CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Campinas/SP; Editora Minelli, 2002

 

DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 3ª ed. São Paulo: RT, 2017.

 

KAFKA, Franz: Obras escolhidas. 1. Ed. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

 

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco - 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. – Salvador: JusPODIVM, 2015.

 

[1] Redação dada pelo art. 267, inc. VI da lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

[2] Redação dada pelo art. 43, inc. III do decreto-lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

[3] Levantamento realizado por Guilherme Madeira Dezem em 2017.

[4] MADEIRA apud CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. 2014, pág. 278 – 281; DINAMARCO, Cândido Rangel. GRECO FILHO, Vicente. 2002, pág. 97; DIDIER JR., Fredie. 2005, pág. 296.

[5] MADEIRA apud NUCCI, Guilherme de Souza. 2016, pág. 153 - 160.

[6] Entendimento proferido durante julgamento das liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, em 1/9/2016, onde era versava-se sobre a concessão de liminar para afastar execução da pena antes do trânsito em julgado.

[7] Referência ao livro O Processo de Franz Kafka, onde o réu é julgado sem conhecer aos fatos delituosos a ele imputados.

[8] Jus Brasil. Consulta realizada em 7 de março de 2018.

[9] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. 2015, Pág. 215 – 227.

[10] MADEIRA, Guilherme. 2017, Pág. 225.

[11] STF – TP – MS 22.438 – Rel. Min. Moreira Alves – RTJ 166/171

[12]DEMO, Luis Luchi, 2004.

[13]MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, 2005, p. 323.

[14] Também conhecida por “prospettazione”, atual entendimento do STJ.

 

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